O monstro da escuridão

I

_ Você precisa parar de fugir da realidade. _ Disse Fernando, o psicólogo ao seu paciente Joaquim.

Joaquim, mas conhecido como Joca começou a falar:

_ Eu não...

Porém antes de terminar foi interrompido pelo erudito profissional:

_ Nós já conversamos sobre isso, Joaquim. Estamos a meses batendo na mesma tecla.

O Pobre Joca ainda tentou argumentar:

_ Mas eu...

_ Deixa eu terminar meu raciocínio.

Joca pensou amargurado: _ Deixar eu deixo. Pena que você não me deixa terminar o meu.

Fernando continuou: _ Você precisa sair do processo de negação, você precisa encarar a realidade. Você está se auto flagelando, se auto destruindo.

_ Mas, eu não estou me auto flagelando. Eu não tenho culpa. Não sou eu, entende?

_ Se não é você como se explica essas marcas de corte no seu corpo?

_ Não sou eu. Não sou eu, entende, é ele. É ele.

_ Ele quem Joaquim? Você mora sozinho. Não tem ninguém lá com você. Já falamos sobre isso muitas vezes. Você precisa aceitar a verdade.

Joaquim começa a ficar nervoso:

_ Você é que não consegue ver que eu estou falando a verdade. Esses cortes não foram eu. Foi ele. Foi ele. Você precisa acreditar em mim.

_ Joaquim já falamos sobre isso. Você já estava aceitando a verdade, mas agora está em processo de regressão. Precisamos cessar esse processo. Cortar esse mau pela raiz. E só há uma maneira de se fazer isso.

_ Como?

_ Você precisa assumir para si mesmo que é você que está se agredindo e se machucando. É sério, precisamos dar um fim no seu processo autodestrutivo. Mas, para isso você tem que querer. Tem que assumir sua responsabilidade. Entende?

_ Mas, não sou eu é ele. É meu irmão gêmeo. Ele me agride e me corta. Por que ele não me aceita, não gosta de mim, diz que eu tenho um defeito, que eu sou uma aberração. Ele me machuca muito porque me odeia. Me chama de inútil, incapaz e me bate. Ele é mais forte que eu. Eu não consigo me defender dele. Não consigo.

_ Você pode se defender dele, se você entender que esse que você chama de irmão gêmeo não existe. Ele é produto de sua mente depressiva, auto destrutiva. Quando você aceitar isso poderá enfrentar ele.

_ Mas não pode ser. Ele parece tão real para mim.

_ Parece mas não é. Lembre se Joaquim, a mente depressiva cria armadilhas para lhe confundir e te destruir. Você precisa refletir sobre o que a depressão lhe diz. Desconfia dela, Joaquim. Me perdoe o trocadilho, mas a depressão é uma puta mentirosa.

_ Então quer dizer que meu irmão gêmeo não existe?

_ Não, Joaquim. Ele não existe. Você é filho único. Não existe nenhuma evidência da existência de nenhum irmão gêmeo.

_ Então quer dizer que sou eu? Sou eu que faço isso em mim? Sou eu que me machuco?

_ Sim, Joaquim é você e quanto antes aceitar isso, melhor.

Joaquim iria falar, mas o psicólogo lhe interrompeu dizendo que havia chegado o fim da sessão.

Joaquim foi embora com a cabeça a mil. Estava cheio de dúvidas e de medo. Muito medo. Tinha medo de voltar para casa e encontrar ele: seu irmão gêmeo. Por que mesmo que para outras pessoas seu irmão era apenas uma alucinação perturbada, para ele , Joaquim, ele era real. Seu medo era real.

II

Fernando chegou em casa com uma expressão preocupada no rosto, sua esposa Rute lhe deu um beijo e perguntou:

_ Por que está tão preocupado, amor, o que aconteceu?

_ É um paciente.

Rute deu uma risada:

_ Sim, sempre é.

Ele tentou devolver o riso mas não conseguiu.

_ Qual deles é? _ Perguntou Rute.

_ É o Joaquim. Ele tem depressão profunda, fobia social e comportamento auto destrutivo. E o pior de tudo é que eu não consigo tirar ele do processo de negação. Se continuar assim, o psiquiatra dele vai acabar lhe internando novamente.

_ E não seria melhor?

Fernando estava em dúvida:

_ Talvez, mas ele já foi internado diversas vezes. Eu realmente queria ajudá-lo a fim de que ele não precisasse mais ser internado.

_ Eu sei, querido, mas você precisa relaxar. Se continuar trazendo problemas de seus pacientes para casa, acabará adoecendo. Vai tomar um banho, deitar na cama, ouvir uma música, enquanto isso vou preparar sua comida favorita. Certo?

Fernando concordou e se dirigiu ao quarto, mas continuava muito preocupado.

III

Joaquim chegou em casa mais tranquilo. Sim, Fernando estava certo. Ele precisava enfrentar a realidade. Não havia nenhum irmão gêmeo mau. Era ele o tempo todo. Precisava aceitar isso e lutar contra essa necessidade de se auto flagelar. De repente sentiu uma enorme fraqueza, um frio terrível que parecia gelar a alma e alcançar seus ossos. Correu para o quarto, deitou se debaixo das cobertas e ficou olhando para o teto até adormecer.

Acordou sobressaltado. Alguém havia lhe puxado as cobertas. Já ia se cobrir novamente, quando percebeu uma presença nefasta se aproximar. E então ouviu uma risada medonha como que vinda do inferno.

Joaquim ficou apavorado e começou a gritar:

_ Vai embora, você não existe. Eu sei que não existe.

A gargalhada cessou. E de repente uma voz se materializou em um dos ouvidos de Joaquim:

_ Sim, eu existo. Olha para mim, Joaquim, olha para mim.

Joaquim deu um pulo da cama e começou a gritar:

_ Vai embora, vai embora.

Mas a voz bradou ainda mais grossa que antes:

_ Eu não posso ir, Joaquim, eu estou dentro de você. E vou estar para sempre. Olha para mim. Olha para mim.

_ Não, Nãooooo.

Joaquim se encaminhou até o interruptor e de um salto acendeu a luz. A voz cessou e não havia nada no quarto. Aliviado ele se aproximou do espelho e ficou olhando para seu rosto pálido e magro. Os olhos vermelhos e a imensa tristeza e cansaço, presente no reflexo de seu espelho, lhe deu um nó na garganta. Por que aquela dor não passava? Lágrimas rolaram de seus olhos, quando sentiu uma presença ao seu lado. Já ia saindo correndo do quarto, quando sentiu alguém lhe apertando o pescoço com força. Olhou para o espelho e viu com espanto, a criatura se materializar diante de seus olhos. Ela tinha o mesmo rosto dele. Mas no lugar dos olhos havia apenas escuridão. Horrorizado, Joaquim deu um grito e conseguindo com esforço se desvencilhar da horrorosa criatura, correu em direção a sala.

IV

Fernando tinha acabado de jantar e estava na sala conversando com a esposa quando o celular tocou. Era seu paciente Joaquim. Atendeu e ouviu ele gritar:

_ Ele está aqui. Ele vai me machucar. Vai me machucar muito eu sei. Por favor, me ajude.

_ Calma, Joaquim, não faça nenhuma besteira, eu estou indo. Me espera.

Desligou e olhou para a mulher:

_ É aquele paciente Joaquim. Está tendo uma crise séria. Preciso ir lá. Tenho medo que atente contra a própria vida.

Rute o encarou decidida:

_ Tudo bem mas você está nervoso demais. Melhor não dirigir, eu te levo.

_ Sim, então vamos.

E assim Fernando e Rute entraram no carro em direção a casa de Joaquim. E Fernando torcia para que conseguissem chegar a tempo.

V

Assim que desligou o celular, Joaquim viu novamente a criatura horrorosa se materializar na sua frente.

_ Me deixa em paz. Me deixa em paz. _ Joaquim gritava desesperado.

Ele gritava como nunca gritou na vida:

_ Por favor, vá embora, vá embora.

Mas a criatura apenas disse:

_ Eu não posso ir, Joaquim. Eu estou dentro de você. E jamais poderia sair.

Joaquim berrava desesperado:

_ Eu lhe imploro vai embora. O que você quer de mim? O que você quer de mim?

Houve um silêncio e então a criatura disse:

_ Eu quero um abraço, Joaquim. Vem me abraçar, Joaquim. Abraça a escuridão, Joaquim, abraça a escuridão.

E dizendo isso a criatura hedionda abriu os braços e foi em direção a Joaquim.

Desesperado ele correu para a cozinha, chegando lá, ele olhou para a mesa e a viu. Então teve certeza do que faria. Aquela era a única maneira de acabar com seu tormento. Mas, antes de fazer aquilo, precisava fazer uma última coisa. Pegou o celular e digitou uma mensagem.

VI

Ao chegar na porta da casa de Joaquim, Fernando e Rute escutaram Joaquim gritando: _ Me deixa em paz. Me deixa em paz. Não, não se aproxime de mim. Não se aproxime de mim.

Fernando começou a gritar e pedir que Joaquim abrisse a porta, mas de repente os gritos cessaram. Então, ele arrombou a porta. Assustados, ele e a mulher entraram chamando por Joaquim. Mas nada dele responder. Silêncio total. Foram até a cozinha, Rute foi a primeira a ver e deu um grande grito, no chão da cozinha jazia o corpo de Joaquim, com uma faca suja de sangue ao lado e um enorme corte no pescoço.

VII

Por causa do grande choque, Fernando ficou um tempo sem olhar sua caixa de mensagens. Mas depois do enterro, enquanto se preparava para tomar um banho resolveu olhar suas mensagens e foi então que viu a mensagem , que Joaquim escrevera antes de morrer. Dizia ela:

"Eu sei, que talvez você nunca vá entender, porque eu fiz isso. Mas, eu só quero que você entenda, que eu não queria morrer. Eu só queria matar o monstro que havia em mim. Eu só queria matar o monstro que morava em mim.

Marcos Welber
Enviado por Marcos Welber em 03/01/2020
Reeditado em 03/01/2020
Código do texto: T6833062
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