A COISA NA ESTRADA

Quando o carro finalmente parou, Lucas Guibson deu graças a Deus que todos estavam de cinto. O coração pulsando como se fosse jogado em meio ao asfalto quente. Deu uma olhada para trás, conferindo as crianças. Tudo mundo bem! Baixou a cabeça em agradecimento a qualquer coisa. E desceu do veículo numa euforia que logo se transformou em desânimo ao ver o pneu estourado.

— Mas que merda! — disse, com os dedos entrelaçados atrás da cabeça, fazendo pressão com os cotovelos — Paguei um absurdo nesses pneus novos só para essa viagem e, vejam só! Esse não presta para mais nada!

Convocou os outros ocupantes a lhe fazerem companhia, sob o sol de 9h40.

Ninguém disse nada. Apenas se afastaram até uma árvore próximo; uns trinta metros a frente.

O pequeno Lúcio foi quem deu um sorrisinho e disse:

— Calma, papai.

Lucas não resistiu. Abriu o sorriso abestalhado e chamou o pequeno para dar um abraço. Quando o levantou, por sobre o ombro, a criança viu algo reluzindo no meio da estrada tremeluzente.

De volta ao chão, correu até o objeto. Todos o acompanharam com o olhar. Viram quando se abaixou e pegou algo. Permaneceu imóvel por alguns segundos, antes do grito do pai tirá-lo daquele estado. Voltou correndo. Passou pelo pai, de cabeça baixa e foi direto à mãe.

Lucas o observou passar com as mãos em concha. Teve a impressão de que o garoto passou rindo de forma estranha, como se algo contorcesse os traços de menino. Parado em frente a mãe, ainda expressava a doçura da infância. Então Lucas começou a trocar o pneu.

Haviam decidido sair bem cedo para chegarem antes do almoço. O incidente os atrasara um bocado. Ainda tinha tempo até as crianças sentirem fome. Joana havia levado a sacola com os biscoitos para a sombra.

Às 10h30 ele terminou de descer o macaco. Chamou os três, enquanto guardava o equipamento. Limpou as mãos num flanela que há muito não era limpa. A esposa já havia jogado fora umas duas vezes. Ele sempre dava um jeito de recuperá-la. Seus cúmplices estavam sempre atentos.

O restante da viagem foi calma. Lucas até puxou assuntos, mas as conversas morriam onde começavam. Será que tinha gritado demais? Mas nem tinha sido com ninguém, ora! Talvez só estivessem cansados.

Joana desceu com Lúcio e Fernanda para sondarem, enquanto Lucas estacionava. Haviam vários restaurantes próximos, e a escolha não era algo tão simples. Talvez nunca passassem por ali de novo. Lucas os acompanhou. Estavam parados em frente a uma fachada de tijolos vermelhos e pouca iluminação. Somente uma luz fraca acima de cada mesa. Algo que dava uma sensação de exclusividade.

Lucas escolheu algo simples e todos concordaram. Estranho. Pelo menos ele pode escolher o que lhe fosse mais gostoso.

O garçom entregou a conta a ele e ficou aguardando. A refeição foi irritantemente silenciosa. Algumas trocas de olhares de muita mastigação.

Lucas baixou a cabeça para pegar a carteira e não viu quando o homem de gravata borboleta se esticou e tocou nas mãos de sua esposa e filhos. Terminou de contar as notas a tempo de ver que todos ainda estavam com ar de pós-piada. Olhou-os por alguns segundos até Joana dizer para pagar a conta. Entregou o dinheiro e disse para ficar com o troco. O homem com a voz locutória pegou o dinheiro, fez um sinal de reverência e saiu. Um único olhar o acompanhou até o caixa. Depois foi atender outra e mesa e foi esquecido.

Quarenta minutos depois de chegarem, o sr. Guibison deu a partida no motor. Faltavam apenas alguns poucos quilômetros até a casa. A estrada a partir dali foi pura tranquilidade, interrompida apenas por um pequeno caco de vidro, roçando na mente de Lucas. As conclusões que teve com base nos risos e olhares entre eles e o garçom, haviam penetrado nos pensamentos dele e estavam machucando.

— O que há de errado? Por que ninguém diz mais nada?

— Nada, querido. Só estamos cansados. — respondeu Joana.

— Eu sei, eu sei. Também estou, mas… você conhecia o garçom?

— Não!

— Ok! Ok! Então o que foi aquilo com ele?

— Eu só o cumprimentei. Educação. Algum problema?

— Não! Tudo bem, então. Acho que também estou bem cansado. Aquele sol ferrou com a gente.

A estrada fez uma curva e virou mão única. Marcha baixa, motor berrando ao vento, ouvidos tampando pela pressão do ar. Tudo que a subida exigia. Ali, a não a mais que 30km/h, Fernanda pediu para ir mais rápido porque queria conhecer o quarto dela. Lucas não conhecia a estrada e disse que para manter a calma. Já, já chegariam. Redobrou a atenção à estrada. Joana aumentou um pouco o som enquanto a frente do carro mantinha-se erguida, seguindo por curvas desconhecidas e acentuadas.

Durante uma reta, passaram por uma casinha ao pé da estrada. Três pessoas de olhares perdidos acenaram quando a família Guibson passou. Mostraram os dentes, talvez tentando demonstrar simpatia. Lucas buzinou e acenou.

A casa que alugaram era um pouco mais a frente, meio recuada. Naquele horário, de lá dava para ver a casa dos vizinhos, no final da subida. Talvez fossem visitá-los durante a estadia.

Terminaram de descarregar o carro e guardar tudo, a lua já se escondia atrás de algumas nuvens. Ninguém teve coragem de cozinhar nada, então cada um pegou um biscoito e se trancou. Às 21h30 apenas o silêncio passeava dentro da casa. Do lado de fora, o farfalhar das folhas e algumas aves noturnas conversavam. Essa era a utilidade do primeiro dia de viagem: descansar.

Lucas teve uma noite intranquila. Na verdade ele não conseguia lembrar de nada. O simples fato de fechar os olhos e tentar, sentia a pele formigar como se mudasse de posição após manter a pressão sanguínea presa por algum tempo sobre um nervo.

Na escuridão lunar, sentou-se na beira da cama, com um leve latejar na cabeça. Olhou a esposa que dormia, ainda na mesma posição. O sono dos justos… ou não. Deu um risinho de lado e levantou-se.

Um relâmpago iluminou todos os ambientes por onde a luz conseguiu entrar. Por um instante, teve a impressão de que várias sombras disformes se esgueiraram furtivamente para dentro das paredes. Engoliu em seco. Balançou a cabeça, negativamente. Impressões da noite. Apenas isso...

Bebeu água e voltou a dormir.

Na manhã seguinte, acordou e, ainda de olhos fechados, passou a mão pela cama e não sentiu a esposa. Olhou em volta e apenas a porta estava entreaberta. Talvez tenha ido fazer o café. Ou mesmo, tomando banho… silêncio total no banheiro. O café!

As cortinas estavam abertas, deixando a luz do céu nublado iluminar o quarto. Levantou-se e foi até a janela. Lá fora a neblina deixava poucas coisas disponíveis aos olhos. O som das folhas dançando no alto das árvores era algo que eles buscavam naquela viagem. Lá fora, nem precisava ir conferir que estava bem frio. O clima perfeito para descansar.

Abriu o guarda-roupas, quase cheio – bem mais que o necessário para três dias. Haviam guardado tudo no dia anterior. Estava mais ou menos organizado como ele gostava. Pegou uma toalha branca com suas iniciais bordadas em vermelho e foi tomar banho.

Lucas gostou bastante do banheiro. Com exceção do teto, o restante era em azulejo branco. Planejava colocar um piso daquele, antiaderente. Meio granulado, o que dava uma sensação confortável aos pés. O box era grande o suficiente para ficar parado com os braços abertos. O banheiro perfeito.

Joana havia passado ali naquela manhã. Ainda haviam alguns respingos no vidro, além de um pouco de terra perto do ralo. Mas o que ela tinha ido fazer lá fora nesse frio? Seja o que for, havia recuperado a sanidade e retornado ao conforto. Terminou o banho frio, resmungando por cada gota que tocara seu corpo.

Perto da cama também havia um pouco de terra. Nada que uma rápida vassourada não resolvesse. Vestiu-se e foi olhar o celular, descarregado. Pôs para carregar e começou a descer as escadas. Deteve-se quando percebeu uma trilha de areia que se dividia: uma para o quarto do casal e outra para o das crianças. Retornou até o dos meninos. Ninguém estava nas camas. Talvez os três tenham ido lá fora.

Povo corajoso.

Os dois estavam na sala, olhando a tevê desligada.

— Por que não estão assistindo? — Lucas perguntou.

— Nada está funcionando. — Lúcio respondeu, meneando a cabeça, enquanto voltava-se para o pai.

Fernanda apenas confirmou com a cabeça.

— Já comeram? — continuou Lucas.

— Mamãe está preparando.

— Quando terminar o café, dou uma olhada.

Joana estava terminando de passar o café. Os pães já estavam sobre a mesa, aguardando para derreter a manteiga. Abraçou-a por trás. Ela abriu um sorriso ao mesmo tempo em que fechava a garrafa.

— Bom dia, sr. dorminhoco.

— Bom dia, sra. dos passeios matinais.

Os dois riram.

— Parece que nada está funcionando por aqui.

— Lúcio disse que a tevê não estava legal, mas achei que fosse só ela.

— Nem só ela. Os eletrônicos, nenhum está funcionando. Nada de nada. Nem energia tem.

— Estranho. Mas mantenha a calma, jovem! Vou dar uma olhada.

Ela virou os olhos, sentou-se à mesa e chamou os filhos.

Quando terminaram, Lucas foi até a registro de energia, do lado de fora da casa. O frio perambulava para lá e cá, buscando algo em que se escorar. Pegou Lucas em cheio. E, com quase nenhum conhecimento sobre o que estava fazendo, só olhou e deixou lá, sem funcionar. Entrou novamente e pegou a chave do carro.

— Só um conselho: não vão lá fora.

— E a energia?

— Bem, com a caixa parece que está tudo normal. Vou nos vizinhos. Devem saber alguma coisa. — ele disse enquanto subia correndo. Voltou vestindo uma camisa de manga-longa, calça jeans surrada e agasalho.

Despediu-se e fechou a porta.

Mesmo bem agasalhado, o vento frio quase o fez desistir e retornar ao conforto. Correu até o carro. Lá dentro o frio não entrava; estava blindado.

Pôs a chave na ignição, deu a partida e… nada. O carro não deu nenhum sinal de vida. Será que também tinha sido atingido? Voltou a chave e tentou novamente. Dessa vez ligou. Meteu a primeira marcha e saiu.

Dois pensamentos mantiveram o acelerador altos: a estrada molhada e a forte neblina. Nem andaria muito, os “nativos” moravam bem ali. Só a algumas dezenas de metros em meio a neblina. Dava até para ir andando, sem muito esforço. Mas nada garantia que sobreviveria àquele frio.

Passou pela subida, observando com atenção os matos. A estrada virou uma reta e, depois, começou a descer. Ele franziu o cenho. Aquela distância a neblina não seria capaz de esconder uma casa daquele tamanho. Pensou em fazer o retorno, mas… talvez só tenha calculado errado. Continuou por mais algumas curvas, placas acabadas, ondulações de árvores pálidas ao pé da via. No fundo, ele sabia que tinha passado pela casa a um bom tempo.

Parou no acostamento e ficou ouvindo o som do pisca alerta. Olhou pelo retrovisor, tentando, através da neblina, ver algum farol se aproximando. Nada. Girou a direção totalmente para a esquerda. Na troca de pedais, o carro simplesmente estancou. É sério? Quando foi a última vez que isso aconteceu? Deu na chave novamente. Nenhuma luz acendeu. Voltou a chave e tentou até ficar zangado a ponto de dar um soco na direção. Respirou fundo e desceu. Manteve a chave na ignição apenas para não travar a direção. Desceu o freio de mão e empurrou o carro ainda mais. Trancou e iniciou a caminhada, bufando de raiva e frio.

Lucas atravessou a estrada. Se a casa dos vizinhos ainda estivesse lá, esbarraria nela. Agora, mais do que nunca, precisava deles. Mais um casado não seria uma má ideia. Enfiou as mãos nos bolsos. Ao seu redor, o remexer dos matos foi a única companhia.

Em uma placa de 60km/h pichada, alguém havia transformando o 6 em 8. Algum desatento poderia não notar a diferença. Mas será que algum louco se arriscaria naquela velocidade por ali? Tem doido pra tudo. Ele até se arriscou uma risada sem graça, mas nada estava favorável a isto. Continuou andando.

Não sabia ao certo o quanto havia percorrido, ou mesmo o tempo. Passou pelas curvas que há pouco havia ultrapassado. Então era melhor basear-se por elas. Mas será que haviam tantas assim? Deu de ombros e seguiu a estrada; não havia outro lugar.

Talvez fosse bom dar uma corrida. Chegaria mais rápido, além de ir aquecendo. Era só ter cuidado com o penhasco. Nada de cair ali. Primeiro só uma caminhada mais forte; depois, correu de verdade. Passou por uma nova placa. Dessa vez ele não teve a certeza se era 30 ou 80km/h. Correndo daquele jeito, dificilmente ultrapassaria aquele limite.

Um vento ao mesmo tempo forte e frio lhe empurrou mata a dentro. Por um breve momento teve o vislumbre de uma construção do outro lado da via. Apertou os olhos, concentrando-se, descrente de que era a casa onde estava hospedado. Atravessou caminhando, soltando fumaça pela boca, com a respiração misturando-se aos batimentos cardíacos numa sintonia natural. Realmente era a casa. Isso foi bom de constatar.

Ninguém o ouviu chegar. O giro da maçaneta lubrificada não o denunciou. Aos primeiros passos casa adentro, ouviu Joana contando:

— Foi quando disse para irmos vê-lo. Nós precisamos se arrepender de tudo, e talvez Ele nos perdoe. Ele é o dono de tudo. Não há porque mentir. Disso eu tenho certeza. Eu já vi onde é…

— Oi? – Lucas interrompeu.

Os três viraram-se e, apenas por um segundo, ali não era sua família. Não tinham feições que ele se lembrasse. Não eram traços humanos. Algo que, naquele momento, não conseguiu associar a qualquer criatura que vira. Nenhum se moveu em sua direção, mesmo assim ele recuou um passo. Um deles abriu a boca e disse:

— Papai?

Então ele reconheceu o filho, sentado ao chão. Joana e Fernanda estavam a seu lado, o encarando.

— O que vocês estavam fazendo?

— Nós? Só conversando. Por algum acaso você viu algo que não deveria? – Joana disse, então continuou — E você, onde estava, ofegante desse jeito?

— A droga do carro deu algum problema. Deixe-o mais adiante, pouco depois da casa dos vizinhos.

— Conseguiu falar com eles?

— Não. Acho que ele deram uma saída.

— Você parece muito cansado, papai. — disse Fernanda.

— Realmente, to precisando de um banho e descansar um pouco.

Talvez a imaginação dele estivesse trabalhando mais que o necessário para o momento. Muito provavelmente foi só isso. Nada mais. Estava quase acreditando, mas… quando cruzou com os três, no limite da visão, viu três sorrisos extravagantes. Com a boca enxuta, um comichão na nuca perguntou-lhe se teria coragem de virar e conferir.

— Algum problema, amor? – Joana disse, mas essa última palavra soou numa voz diferente da companheira de tantas conversas. Foi mais aguda e abafada, como um grito dentro de um quarto escuro.

Lucas engoliu em seco e recomeçou a andar, com as mãos engorduradas deslizando pelo apoio da escada. Ao passar pela porta do quarto, trancou-a e pôs uma cadeira, reforçando a segurança. Pediu a Deus que o celular estivesse carregado. Deu um salto até ele, mas estava da mesma.

Foi até o banheiro e ligou o chuveiro. Deixou a água correndo enquanto despia-se. Tomou um novo banho frio e… relaxante.

Enrolado no roupão, foi até a janela e viu a neblina girando, divertindo-se com as folhas caídas. Sentou-se na cama, pegou um livro de capa amarela, sem ler o título e começou a ler quase na metade. As pequenas letras sem sentido saltavam nas páginas, embaraçando os pensamentos de Lucas. Esfregou os olhos o quanto pode, antes das pálpebras pesarem o suficiente para não conseguir mantê-las abertas. O restante do corpo começando a adormecerem, até perder os sentidos e o sono levantar o punho de vitória.

Um barulho estático, baixo, como se fosse um eco de dentro de uma caverna, fez ele se remexer na cama. Piscou três vezes antes de abrir os olhos e despertar completamente. Estava escuro e a neblina ainda cercava a casa. Supor as horas era apenas uma mera conjectura. Mas, se fosse para dar um chute, algo em torno de 18h.

Com a visão turva, em meio a várias sombras projetadas pelos móveis, três mexeram-se. Era quase possível perceber que estavam… vivas? A anatomia inumana das criaturas injetou algo frio e duradouro em suas veias. Os olhos dos intrusos eram de um verde opaco, como o das folhagens da floresta em meio a neblina. Tinham a estatura semelhante a família, apesar de saliências corporais discordassem disto.

Virou-se de lado para acordar a esposa, mas ela não estava lá. Quando voltou o olhar para frente, estava só em casa. Apenas restava uma luz fraca, verde que entrava pela porta entreaberta. Será que as crianças estavam lá?

Deu uma rápida olhada do lado de fora do cômodo. Não havia nada próximo. Foi até o quarto das crianças para testemunhar o vazio: elas também não estavam lá.

Quando ele começou a descer, algum movimento furtivo se intensificou lá em baixo. Suspendeu os passos, sentindo criaturas minúsculas e invisíveis caminharem no mesmo lugar sob sua pele. Tinha que manter o pensamento firme de que estava tudo em ordem.

Retomou a descida.

Fernanda estava parara à porta.

— Fê?

Ela virou a cabeça na direção dele, rápido demais para um ser humano, como se tivesse apertado o botão de aumentar a velocidade. Se não estivesse tão impressionado com tantas coisas, teria sentido medo dela. Olha só, medo de sua menininha. Mas então ele viu que os olhos dela não eram os mesmos que vinha acompanhando a doze anos. Sua face, à penumbra estava com dimensões que o fizeram sentir vontade de correr para o mais longe dali. Tinha algo na boca que reluziu quando virou para a saída. Ela colocou as mãos no chão e correu.

Lucas terminou os últimos degraus e correu até a porta. Ainda conseguiu ver por onde ela tinha entrado na mata.

Com os pés quebrando galhos e escorregando vez por outra em folhas já se decompondo, ele seguiu o caminho dela. Por sorte, não era tão rápida.

Ao longe ele viu uma iluminação no meio da floresta, com luzes bruxuleantes. Talvez uma fogueira. É bem provável que Joana e Lúcio estejam lá, a espera de Fernanda.

Uma clareira abria-se na mata. Era circular e sem grama; apenas areia. Ficou observando até ter certeza que eram eles e o que estavam fazendo. Os três estavam virados em sua direção, mas sem fixarem no ponto onde estava. Haviam outros três de costas. Ainda bem que ninguém percebeu, ainda. Todos tinham feições normais e usavam mantas escuras e rasgadas. Estavam com as mãos para cima, como se adorassem alguma coisa. Ao centro, em cima de um tronco havia aquele maldito objeto que sua filha levara até ali. O fogo queimava em alturas inacreditáveis para tão pouca lenha. As chamas pareciam dançar numa sincronia delirante.

— IACHIH IOLAR! – todos gritaram. Talvez não tenha sido exatamente isso, mas foi o que ele conseguiu escutar.

Mesmo escondido, deitado no chão a uma distância quase imperceptível, seis olhos fixos no local onde estava escondido. Levantou-se num solavanco e correu. Pediu a Deus que o guiasse até a casa. Nem mesmo percebeu o rastro de sangue que estava deixando em meio as pedras, galhos, areia, folhas e restos mortais de algo que há pouco deixara este mundo,

A porta estava fechada, mas não trancada. Entrou e, por um canto de olho, viu que algo verde e brilhante estava na estante. Com o ácido lático trabalhando nas pernas sujas de lama e restos da mata, foi até os quartos. Todos dormiam?, como se não houvessem levantado naquela noite interminável. Levou as mãos ao rosto e, de costas, voltou, tropeçando nos próprios pés até encontrar o apoio da escada. Desceu pulando os degraus, de três em três, testando a sorte de chegar mais rápido. Na sala, foi direto a estante. Ali, uma presença ao mesmo tempo conhecida e sinistra o observava.

— Algum problema, amor? – Joana, ou quem tenha assumido aquele corpo, perguntou.

Ele sentiu as pernas procurarem o chão. Apoiou-se na estante, fazendo tudo ali balançar, mas nada caiu. Sem olhar para trás, pegou aquilo e não olhou. Não era seguro. Virou-se e viu Joana, Lúcio e Fernanda. Os três estavam com sorrisos insanos estampados. As feições quase irreconhecíveis. Voltou-se a frente, ofegante o suficiente para encher um saco de bexigas. Arremessou o objeto contra o chão, mas não chegou a soltá-lo.

Manteve a posição de lançamento, de cabeça baixa. Abriu um sorriso. Não de felicidade, nem de simpatia. Um sorriso tão obscuro que transparecia apenas dor e ódio. Ódio de lugares onde jamais havia reinado amor e felicidade. Lugares além da imaginação humana. Onde criaturas sedentas por almas lambiam os lábios nas cerimônias de apresentação.

Ele pôs o objeto na boca e olhou para a porta.

Os nativos entraram, mas não andando com os pés. Vinham apoiando-se como quadrúpedes. Eles olharam para Lucas e, em resposta, meneou a cabeça, afirmativamente.

Todos saíram correndo com pés e mãos no chão, em direção as profundezas da mata.