A Revolta do Criminólogo
Tivemos consideráveis novidades no caso “O Invasor de Velhinhas”, mas a demora na análise de evidências assomada ao crescente número de crimes torna sua resolução quase utópica. Dois anos, lembram-se? Parece mentira, porém menos de seis por cento dos assassinatos no Brasil são solucionados, sabiam? Isso se deve a uma série de fatores dos quais prefiro não mencionar, mesmo assim friso que parte destes esfria devido à falta de “confirmação técnica” no decurso das investigações. Os laboratórios de criminalística são diariamente bombardeados com materiais provenientes das cenas de crime e analisá-los a tempo de manter os casos “quentes” é quase impossível. Muito material, pouco contingente, equipamentos obsoletos, falhas na coleta, extravio de provas… e novos crimes.
Bem, vocês devem estar se perguntando por que raios entrei neste assunto e eu respondo que também não sei. Já disse que não sou escritor e a sequência correta dos fatos ainda não é clara quando começo a escrever. Estou nervoso; sei lá, talvez seja isso. Ou não. A única coisa que sei é que hoje fui ao Instituto de Criminalística cobrar pessoalmente os resultados de um obscuro latrocínio ocorrido há três meses e descobri que, por uma inexplicável razão, as provas coletadas foram solicitadas e extraviadas pelo delegado que registrou a ocorrência.
Aposto que um risinho de escárnio brilhou na mente de alguns de vocês, achando que estou falando lorota, afinal delegados não têm acesso às evidências coletadas pelos peritos e muito menos após estas estarem no laboratório. Mas podem acreditar que essas estranhezas de fato acontecem no Brasil e com uma frequência assustadora.
Só para refrescar a memória, o Caso Pesseghini ocorrido em 2013 (em que a chacina de uma família inteira foi atribuída a um garoto de treze anos sob a influência de um jogo chamado Assassin’s Creed) é para mim um dos exemplos mais absurdos do quanto as informações podem ser manipuladas e depois jogadas sob o tapete da impunidade.
Por que digo isso? O crime foi acompanhado de perto pela mídia, literalmente apresentando ao vivo diversas contradições, dados periciais revogados ou desmentidos, alteração e contaminação da cena do crime, falsos e convenientes testemunhos, suposições fantasiosas, encerramento precipitado do caso… a lista de inconsistências é imensa. Havia e ainda há uma imensidão de perguntas sem respostas e mesmo o público acreditando na inocência do garoto, ainda hoje, passados seis anos, a família luta sem sucesso pela reabertura do caso.
Por que será? Teria de fato envolvimento da polícia militar? A mãe (e pai) do garoto também era policial e meses antes denunciara esquemas de corrupção e roubo a caixas eletrônicos promovidos por membros de seu batalhão. Queima de arquivo? Não vou me alongar, mas fica a pergunta: se um caso de tamanha repercussão teve tal desfecho, quem dirá os ocorridos na obscuridade?
Enfim, peço desculpas se os fiz ler este quase desabafo, porém convenhamos que quando somos comprometidos com nossa profissão queremos que as coisas sejam feitas do modo correto, por isso deixei o laboratório de criminalística puto da vida e fui à tal delegacia. Sou um cidadão diplomático ao extremo, às vezes até idiota, mas queria saber por que infernos o delegado obteve acesso às evidências em nossa custódia e como as extraviou. Veem onde quero chegar? Isso não estava cheirando boa coisa.
Cheguei à Delegacia beirando o meio-dia, encontrando-a num tremendo alvoroço. Tinha por volta de quarenta pessoas espalhadas pela pequena recepção, entre homens, mulheres e idosos, e pelo que entendi eram passageiros de um ônibus de turismo que havia sido assaltado após um acidente de trânsito.
O lugar era um misto de conflitantes emoções, quando toda a atenção se voltou à entrada.
— Meu marido não tem culpa, meu marido é inocente! Eu fui a culpada!
A mulher tinha saído de uma viatura que parara no pátio e literalmente invadido a delegacia aos berros. Com a camisola rasgada, os olhos inchados por escoriações, o rosto cheio de sangue ressecado, a mão segurando o ventre e andando com grande dificuldade era impossível não se chocar. Eu havia trocado algumas palavras com o escrivão e me dirigia por um corredor em direção à sala do delegado; entretanto, ao ouvir a algazarra, o próprio delegado saiu e veio apurar o que acontecia.
— O que está havendo?
— Sou a esposa do Reginaldo que vocês prenderam hoje de manhã. Ele é inocente, doutor. Não teve culpa de nada…
As desculpas se alongaram e o delegado pediu que a mulher fosse até sua sala. Vejam bem, eu estava plantado no corredor e os dois passaram por mim como se eu fosse invisível ou a porra de uma mosca na parede, nem me notaram. Entraram numa saleta envidraçada ali perto e fulo da vida desabei no banco de espera ao lado da porta.
A mulher falava depressa, repetitiva, e mesmo se quisesse, seria impossível não ouvir sua ladainha. Toda a delegacia ouvia.
— Doutor, meu marido está preso por minha culpa. Eu não deveria ter feito aquilo.
— Qual seu nome?
— Fátima Aparecida Siqueira, mas o senhor tem que entender que ele foi preso injustamente. Eu é que deveria estar naquela cela…
— Puta que pariu!, como tem coragem de dizer isso na minha cara?
— Por que é a verdade, doutor.
— Verdade? Vai falar que ele é santo também?
— Santo não, mas não tem motivo para estar preso.
— Ah, não?
— Posso explicar tudo, doutor. Foi apenas um mal entendido.
— Seu marido foi pego em flagrante, pulou do segundo andar para fugir, populares o alcançaram e lhe meteram o cacete… e digo mais, só não deram para ele um paletó de madeira de natal por que a guarnição da GCM estava nas proximidades… e ainda me diz que pode explicar tudo? O sujeito apanhou tanto que nem dá para ver a cara dele.
Não vou mentir, cheguei bufando de raiva, porém àquela altura a curiosidade já me sedava os nervos, me acalmando e despertando o interesse. Não sabia bulhufas do que tinha acontecido e bastava ficar ali tomando meu chá de cadeira para descobrir.
Vou aproveitar para mencionar um pormenor que talvez alguns tenham notado e outros não. A delegacia é uma delegacia. O delegado é um delegado. A mulher é uma mulher e por ai vai. Há escritores (coisa que não sou) que costumam mencionar detalhes como localização, porte físico, estilo de roupas, modo de falar e essas coisas. Na maioria das vezes sou genérico neste quesito, então se eu mencionar um frentista, por exemplo, tratem de imaginá-lo por conta própria. Se ele é alto, baixo, gordo ou feio fica a critério de cada um. Só abordarei minúcias como estas quando compreender sua relevância à correta interpretação dos acontecimentos. Caso contrário, necas.
— Doutor, já explico e tenho certeza que o senhor vai entender.
Acho que o delegado recostou-se na cadeira, resignado, pois pude ouvi-la ranger longamente.
— Pois comece, mas já aviso que nada do que disser justificará o que ele fez… Aliás, me esclarece uma dúvida: Reginaldo, seu marido, é o dono da adega que fica aqui perto da pracinha do Amaro? Estamos falando da mesma pessoa?
— Sim, é este mesmo, e sei que o senhor o conhece por que uma vez já deu uma “mãozinha” para ele, não lembra?
Não fazia a menor ideia do tipo de “mãozinha”, porém suspeitava de alguma troca de favores, afinal o delegado se apressou em mudar de assunto.
— Ok, ok… iniciei o plantão quase agora e soube do caso por alto, mas sei de quem se trata. Explique o que houve e vamos ver o que posso fazer. E, por favor, mantenha a calma e fale um pouco mais baixo.
Foi inacreditável. Bastou citar a palavrinha mágica “mãozinha” para o comportamento do delegado se alterar. Logo imaginei que boa coisa não sairia dali.
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A mulher passou quase quinze minutos rasgando elogios ao marido, destacando como era esforçado e cumpridor dos seus deveres.
— … — … Mas Reginaldo também é muito fogoso, doutor… Ele é insaciável, precisa “fazer” todos os dias, pelo menos duas vezes por dia. Não aguenta ficar sem. Ele fica louco se não transar… O senhor tem uma cabeça boa e deve lembrar que no ano passado tive que fazer uma viagem às pressas para Pernambuco e quando voltei aquela travesti toda montada no silicone, a tal “Sheila Boca de Seda”, disse que meu Reginaldo tinha ‘abusado’ dela, deixando ela apaixonada. Rolou toda aquela bagunça e Reginaldo ainda deu umas facadas naquele projeto de biscate, quando perdeu a cabeça… e o senhor até deu uma mãozinha para livrar meu marido… Até hoje Reginaldo nega, mas duvido que os dois não tenham transado. Ele é louco por sexo... e não vou mentir, o traveco deixa muita mulher no chinelo.
Obs: Pararei por aqui, porque são 00:35hs (22 de dezembro), e entro no plantão às 02:00hs. Preciso tomar um bom café e me preparar. Essa época do ano é uma das mais terríveis para nossa profissão. Parece que as pessoas enlouquecem, querendo se matar o tempo todo. Assim que possível escrevo o restante.