NO RASTRO DA BESTA

Recuou diante da visão do cadáver ensanguentado. A vítima era um homem e seu corpo destroçado estava pousado sobre uma poça de sangue entre dois carros. Naquele momento Raví sentiu a noite mais fria do que realmente estava. No céu uma lua cheia, avermelhada, iluminava a cena tétrica como um gigantesco holofote, projetando sua luz sobre um espetáculo sinistro. Aquela era a segunda vítima da noite. A primeira fora um policial cujo corpo se encontrava dentro da viatura, a algumas quadras dali, nas mesmas condições daquele que acabara de achar. Um som gutural inumano quebrou o silêncio do estacionamento deserto. Era o assassino. Ele ainda está ali. Raví colocou a faca, que tinha na mão, entre sua pele e a cintura da calça. Segurou firme a escopeta com as duas mãos. Começou a andar ao longo da fileira de carros, pronto para atirar em qualquer coisa que se mexesse. Com o coração acelerado e os sentidos em total alerta, foi verificando, um por um, os espaços existentes entre os veículos estacionados de frente para uma mureta. Ao se aproximar do último vão, já não estava mais tão tenso. Talvez o estranho som que ouvira tivesse partido de algum cão, ou até mesmo de algum gato perambulando nas proximidades. Mas não. Subitamente uma criatura negra e peluda saltou do pequeno espaço para o teto do carro. Tinha uma grande cabeça de lobo colada a um corpo humanoide, e rosnava como um cão raivoso. Raví atirou na direção do monstruoso ser que, atingido, soltou um gemido parecido com um ganido.

___ Morra, demônio. ___ Vociferou Raví.

O lobisomem deu um pulo espetacular, passando por sobre a mureta e fugindo em direção a uma área arborizada. Raví fez mira e disparou uma segunda vez, mas a criatura já ia longe e desaparecia por entre as árvores. Depois de repor rapidamente os dois cartuchos na arma, Raví subiu no teto do carro e, passando para o outro lado da mureta, seguiu na mesma direção tomada pelo lobisomem. Estava disposto a perseguir aquele demônio até o inferno se fosse preciso. Iria colocar um ponto final no seu reinado de terror naquela noite, custasse o que custasse.

Penetrou no pequeno bosque onde vira o lobisomem desaparecer. A luz da lua cheia infiltrava-se com dificuldade pelas copas das árvores, formando no lugar uma penumbra densa, quase cegante. Raví, nesse ambiente de pouca visibilidade, procurou apurar ao máximo a visão, a fim de poder enxergar qualquer movimento ameaçador. A besta podia muito bem estar escondida, pronta para atacá-lo a qualquer momento de surpresa. Sentia as mãos úmidas em volta do cabo e do cano da escopeta, a qual segurava com força e em riste, o dedo grudado no gatilho. Atravessou o bosque sem se deparar com o lobisomem que, àquela altura já devia estar bem longe. Tinha que alcançá-lo antes da destransformação, momento em que ele se tornaria um humano outra vez, e que iria ocorrer ao amanhecer. Não ia demorar muito para que o dia clareasse. Era preciso agir rápido. Achar a criatura na forma humana ia ser muito mais difícil, para não dizer impossível, já que não fazia ideia de quem era.

Chegou a uma praça que, a não ser pela presença de um mendigo dormindo sobre um dos bancos ali existentes, estava completamente deserta. Raví aproximou-se do homem e o cutucou com o cano da arma. O mendigo, ao despertar e ver, diante de si, um indivíduo segurando uma escopeta, entrou em pânico.

___ Por favor, eu faço o que você quiser, mas não me mate, por favor.

___ Calma, por que eu iria matar você? ___ Disse Raví. __ Só quero te fazer uma pergunta.

___ Pergunta!? Claro, claro. Pode perguntar.

___ Você chegou a ver o lobisomem que saiu desse bosque? Viu pra que lado ele foi?

O mendigo encarou Raví como se não tivesse entendido as perguntas.

___ Lobisomem. ___ Repetiu, com uma expressão que demonstrava agora surpresa e medo ao mesmo tempo.

___ É, lobisomem. ___ Tornou Raví, com um gesto de impaciência. ___ Cabeça de Lobo, corpo de homem, só que cheio de pelo. Uma criatura horrenda. Você viu pra que lado ela foi?

___ Não, eu não vi nada. ___ Respondeu o mendigo. ___ eu estava dormindo. Eu não vi nada.

Raví fuzilou o homem com os olhos. Sem dizer mais nada, girou nos calcanhares e afastou-se sob o olhar perplexo do mendigo. Caminhou por alguns metros, depois parou próximo a um pequeno parque infantil, estava visivelmente desorientado. Não fazia a menor ideia para que lado o demônio tinha ido. Parecia que sua caçada iria terminar mais cedo do que pretendia. A besta havia escapado, sumido na noite, e não havia nada que pudesse fazer para achá-la. Ficou ali, parado feito uma estátua no meio da praça, sem saber o que fazer nem para onde ir. Foi quando seus olhos enxergaram uma gota de sangue no chão. Avistou outras mais adiante. Não havia dúvidas: eram do lobisomem. Tinha sido ferido pelo disparo da escopeta e sua sangria estava indicando a direção que havia tomado.

___ Sangra desgraçado. ___ Murmurou Raví.

Seguiu o rastro de sangue, que o guiou por um longo percurso até a entrada de um beco estreito e escuro. Invadiu-o com a escopeta em riste. O pensamento, de que a criatura podia estar ali, escondida, esperando por ele, fez com que todos os seus músculos se contraíssem num espasmo de tensão. A impressão, de que a besta ia surgir a qualquer momento de algum canto escuro, o assaltava a cada passo que dava.

Chegou ao final da viela, deparando-se com uma parede. Aparentemente havia entrado num beco sem saída, literalmente. Tocou a superfície de bloco e concreto, sentindo nos dedos o contato de um líquido viscoso. Não conseguiu ver a sua cor na penumbra que envolvia o ambiente, mas podia apostar que era sangue. o sangue do lobisomem. Ele havia escalado a parede e passado para o outro lado. Raví percebeu que a construção, apesar de alta, podia, com algum esforço, ser transposta. E foi exatamente o que fez: não sem alguma dificuldade, em parte por estar segurando a escopeta, conseguiu alcançar o topo do muro e pular para o outro lado. Viu-se no prolongamento do beco cuja saída dava para uma rua transversal. Deixou a viela e parou na beira da calçada, procurando retomar o rastro de sangue. Avistou alguns pingos no asfalto da rua, indo na direção de um terreno baldio, no outro lado da pista. No horizonte o crepúsculo já começava a tingir o céu de um alaranjado vivo, anunciando o raiar de um novo dia. Raví sentia que as chances de achar o lobisomem na sua forma bestial diminuíam a cada segundo, mas isso, naquele momento, não representava necessariamente um problema, já que o rastro de sangue iria levá-lo até o monstro, estivesse ele destransformado ou não. Tinha que agir rápido. As ruas logo estariam cheias de gente, e aquela escopeta em suas mãos certamente ia incentivar alguém a chamar a polícia.

Atravessou a rua apressando os passos. Seguiu pelo terreno baldio, sempre se guiando pela trilha escarlate deixada pelo lobisomem. Não demorou muito, e uma construção de dois andares, com um muro alto e uma chapa grossa de ferro, improvisada como portão, surgiu na sua frente. A besta havia entrado ali. As manchas de sangue, nas partes inferior e superior do muro, indicavam que ela o havia pulado.

Raví atentou melhor para o lugar onde estava. Não existia nada além de uma estrada deserta de barro, e mato, muito mato. Era um local rural dentro da cidade urbana. No horizonte os primeiros raios de sol já começavam a despontar. O lobisomem devia estar voltando a ter uma aparência humana naquele momento.

Raví empurrou a chapa de ferro, que se abriu sem dificuldade. Um pequeno quadrado de área, com chão cimentado, surgiu por detrás do portão. Mais adiante, uma casa de dois andares erguia-se silenciosa, com porta e janelas fechadas. Segurando a escopeta em posição de atirar, Raví atravessou o pequeno espaço e parou diante da entrada do prédio. Ao pé da porta, um tapete com a palavra “welcome” exibia, em sua superfície, algumas pequenas gotas de sangue, o que era uma prova inconteste de que o lobisomem tinha entrado naquela construção. O pensamento, de que àquela altura a besta já havia retornado à sua condição humana, deixava Raví bastante tranquilizado. Afinal de contas, matar um ser humano era bem mais fácil do que matar um monstro. Deu duas pancadas fortes na porta com o punho fechado. Ouviu passos se aproximando. A folha de madeira foi aberta e um homem calvo, metido numa bermuda, sem camisa e de chinelos, apareceu no limiar da entrada.

___ Pra dentro! Pra dentro! ___ Ordenou Raví, invadindo a residência com a arma apontada para a cara do homem e obrigando-o a recuar de volta para o interior da casa.

___ Mas... mas o que é isso? ___ Protestou o morador, levantando instintivamente os braços diante do cano da escopeta.

Raví fechou a porta atrás de si e avançou, por um pequeno corredor, até a sala, onde o homem parara com as mãos levantadas. Uma mulher saiu da cozinha e, dando de cara com um estranho segurando ameaçadoramente uma arma de grosso calibre, teve um choque.

___ Minha nossa Senhora! O que significa isso? __ Disse, arregalando os olhos.

___ Olhe, Pode levar o que você quiser. ___ Disse o homem. __ Tem dinheiro no quarto, lá em cima. Pode levar tudo. Mas, por favor, não faça nenhum mal à minha família.

___ Eu não estou aqui pra roubar. ___ Replicou Raví, reparando que nem o homem e nem a mulher apresentavam qualquer ferimento de bala. __ Vim pra exterminar um demônio que se encontra aqui nessa casa, e que agora está sob a forma humana.

O casal entreolhou-se, exibindo ambos uma expressão de espanto.

___ Onde ele está? ___ Continuou Raví.

___ E-ele quem? ___ Gaguejou o homem.

___ Não teste minha paciência. O lobisomem. Ele entrou nessa casa. O sangue no tapete da porta é a prova disso, e tudo indica que a porta foi aberta pra ele, já que não há nenhum sinal de arrombamento. Portanto não tente me enganar. Eu sei que ele está aqui, agora como um simples humano. Ele está ferido por um tiro que eu dei com essa escopeta. Vamos, digam logo onde vocês o esconderam.

___ Nós não sabemos de lobisomem nenhum. ___ Replicou o homem. ___ Ninguém entrou aqui além de você, acredite. Você está cometendo um grande equívoco.

___ Pai! Mãe! ___ Gritou uma voz no andar superior da casa. __ Que falatório é esse aí embaixo? Quem está aí?

___ Então ninguém entrou aqui, não é? ___ Disse Raví, direcionando o cano da arma para o rosto do homem.

Um jovem, aparentando não mais que vinte anos, saiu de seu quarto e parou no alto da escada que dava acesso à sala.

___ Ei! O que tá acontecendo aqui? ___ Gritou ele ao se deparar com a cena que se desenrolava na parte inferior da casa.

___ Desça aqui, meu jovem. ___ Disse Raví. ___ Quero dar uma boa olhada em você.

___ Por favor, moço, pelo amor de Deus, ___ Implorou a mulher, aos prantos. ___ Não faça nenhum mal ao meu filho.

O jovem desceu as escadas, mal acreditando no que estava acontecendo, e foi juntar-se aos pais, ficando também sob a mira da arma de grosso calibre. Foi com surpresa que Raví percebeu que o filho do casal não estava ferido.

___ A pessoa que procuro está com um ferimento à bala __ Afirmou Raví. ___ Onde ela está? Onde vocês a esconderam? Será que vocês não percebem que estão protegendo um monstro assassino?

___ Mas não há mais ninguém aqui. ___ Respondeu o pai do jovem. ___ Só mora eu, minha mulher e meu filho aqui. Se quiser pode vasculhar a casa. Nós não estamos escondendo ninguém.

___ Meu marido ta falando a verdade, moço. ___ Reforçou a mulher, amparada pelo filho. ___ A pessoa que você tá procurando não entrou aqui.

Raví começou a ficar confuso. Tinha a impressão de que o casal estava falando a verdade, mas o sangue no muro e no tapete da porta dizia justamente o contrário.

___ Vocês mentem. ___ Afirmou, após alguns segundos de silêncio.

Trancou os três no banheiro, ameaçando matá-los caso não se comportassem. Fez uma busca minuciosa na parte superior e inferior da casa, mas não encontrou mais ninguém. Convenceu-se, afinal, de que não havia outra pessoa ali além dele e os três moradores. Não, não estava enganado, pensou, o rastro de sangue não deixava qualquer sombra de dúvida: o lobisomem estava naquela casa. Se não havia mais ninguém, então era lógico que o casal e seu filho passavam a ser os únicos suspeitos. O que não estava fazendo sentido era o fato de nenhum deles ter qualquer ferimento de bala. Raví tinha plena certeza de que acertara o lobisomem em cheio, e o rastro de sangue era a prova inquestionável disso. Portanto era para um dos três estar em cima de uma cama, com um buraco no corpo.

Raví arriou-se numa poltrona, num canto da sala. Estava extremamente cansado. Passara toda a noite no encalço da besta. Em sua mente uma confusão estava instalada. Como era possível não haver ferimento algum em nenhum dos três suspeitos de ser o lobisomem se tinha atingido este, há poucas horas atrás, com um tiro de escopeta? Ficou ali por algum tempo, refestelado na poltrona, arma no colo, tentando encontrar uma explicação plausível para aquele enigma. Foi com um calafrio na espinha que viu surgir de repente, de dentro da cozinha, a figura hedionda da besta, com seus olhos avermelhados incrustados numa monstruosa cabeça de lobo. Raví procurou desesperadamente a escopeta, mas ela não estava mais em seu colo. Havia desaparecido como por encanto. Paralisado pelo medo, não conseguiu mexer sequer um músculo quando o lobisomem saltou sobre seu corpo e estraçalhou sua garganta com enormes dentes pontiagudos.

Deu um pulo da poltrona com as mãos no pescoço, derrubando a arma no chão. Respirou aliviado ao tomar consciência de que tinha sido apenas um pesadelo. O cansaço e a noite perdida o haviam arrastado rapidamente para um sono profundo. Pegou a escopeta do chão e sentou-se novamente. Sentiu algo espetando sua virilha. Era a faca que carregava na cintura. Pegou-a e colocou-a junto a um telefone depositado sobre uma banqueta, ao lado da poltrona. Depois de alguns instantes de hesitação, tirou o aparelho do gancho e discou alguns números. Uma voz masculina atendeu do outro lado:

___ Alô!

___ Consegui achar a toca do lobo. ___ Informou Raví. __ A morada da besta.

___ Raví, é você?

___ O lobisomem matou duas pessoas essa noite. __ Continuou Raví, sem dar atenção à pergunta. ___ Eu peguei a arma do policial que ele matou. Eu dei um tiro no desgraçado, mas ele continua vivo.

___ Raví, onde você está?

___ Hoje eu livro a cidade desse demônio.

___ Raví, você está me ouvindo? ___ Insistiu a voz do outro lado da linha. ___ Não tente fazer nada sozinho. Me diga sua localização pra eu poder ir ao seu encontro.

___ Esse assunto só compete a mim. Eu tenho que resolver isso sozinho.

___ Não, Raví. Não precisa ser assim. Escute...

___ Eu preciso desligar

Raví recolocou o telefone no gancho, encerrando a ligação. Uma teoria que fazia todo o sentido, a respeito da ausência de um ferimento nos suspeitos, formou-se repentinamente em seu cérebro. A cicatrização, num lobisomem, devia ser quase instantânea, de modo que o corpo da pessoa se mostrava completamente incólume depois da destransformação. Era isso. Não podia haver outra explicação. Só restava descobrir agora quem era a besta assassina: o pai, a mãe ou o filho. Podia muito bem matar os três e acabar de vez com esse dilema, Só que estava curioso demais em saber quem era. Tinha o desejo irresistível de conhecer a pessoa por trás do monstro, de vê-la se transformando antes de matá-la.

Raví ergueu-se da poltrona. Esquadrinhou a sala com os olhos, depois entrou na cozinha, avistando logo o que estava procurando: Um calendário, o qual estava pendente de um prego na parede e com o ano 1985 gravado em grandes algarismos vermelhos. Consultou-o e viu que a próxima noite seria de lua cheia. Tudo que tinha que fazer então era esperar o anoitecer, e quando o satélite natural da Terra aparecesse em todo o seu esplendor, um daqueles três trancafiados no banheiro iria revelar o lobisomem que existia dentro de si.

___ Ei, cara! Minha mãe precisa tomar um medicamento. __ Gritou o jovem, batendo na porta do cômodo em que estava preso junto com seus pais.

Raví foi até à entrada do banheiro, girou a chave na fechadura e abriu a porta.

___ Que porra de barulheira é essa? ___ Perguntou, apontando a arma para o rosto do rapaz.

___ Minha mãe é diabética, cara. ___ Informou com aflição o jovem. ___ Ela precisa tomar insulina. Está lá encima, no quarto dela.

___ E tem que ser rápido ___ Completou o pai. ___ Ela está à beira de uma crise hiperglicêmica.

A mulher estava sentada na tampa da privada, amparada pelo marido. Sua testa estava úmida de suor, e seu rosto tão pálido quanto o de um cadáver.

___ Tudo bem. Vá pegar a insulina. ___ Disse Raví, se dirigindo ao filho do casal. ___ Mas não vá fazer nenhuma gracinha. Se você tentar me tapear, eu atiro em seus pais, entendeu? E vê se não demora.

O rapaz atravessou a sala e subiu rapidamente as escadas, retornando em poucos segundos com uma seringa e um pequeno frasco de vidro contendo a insulina. Ele mesmo injetou a substância na mãe que, em pouco tempo, recobrou o ânimo e a cor na face. Raví permitiu que comessem alguma coisa. Puxou uma cadeira e sentou-se afastado, observando os três enquanto tomavam café silenciosamente numa pequena mesa no centro da cozinha. Em dado momento o pai tomou coragem e, encarando Raví, perguntou:

___ Afinal de contas, o que você quer de nós?

___ Eu achei que tinha sido bastante claro. __ Replicou Raví. __ Há um lobisomem nesta casa, e eu tenho plena certeza que é um de vocês.

O homem balançou a cabeça:

___ Que espécie de maluco é você?

___ Acho bom você maneirar suas palavras. ___ advertiu Raví __ Eu não sou muito tolerante com insultos, e, aliás, essa sua dissimulação já está me irritando. Mas a próxima noite vai ser de lua cheia. É ela que vai desmascarar vocês, que vai libertar o demônio que vocês escondem nessa casa. E eu vou estar aqui esperando pra acabar com ele.

O filho do casal tinha parado de comer e olhava fixamente para Raví.

___ E você, garoto, tá me olhando por quê? Tem algo a me dizer?

___ Eu te conheço de algum lugar, mas não me lembro de onde.___ Declarou o jovem.

___ Talvez seja do estacionamento, na noite passada, ___ Aventou Raví. __ Quando eu atirei em você e te persegui até aqui. Era você, não era?

O jovem não respondeu nada. Baixou o olhar e continuou a tomar o seu café em silêncio.

___ Deixe o meu filho fora disso. ___ interviu bruscamente o homem.

Raví levantou-se da cadeira num repente.

___ Esse jogo de gato e rato já está me cansando. ___ Declarou.__ Todos três de volta pro banheiro, agora.

Sob a mira da escopeta, o trio foi obrigado a obedecer. Casal e filho foram conduzidos de volta ao dito cômodo, onde novamente ficaram trancafiados. Raví retornou à cozinha, tomou café, depois foi acomodar-se na mesma poltrona em que sentara antes, num canto da sala. O silêncio sepulcral que pairava na casa foi, juntamente com o cansaço, anestesiando a sua mente até submergi-la num completo e irresistível torpor. Mergulhou num sono profundo, porém agitado, povoado por pesadelos terríveis, a ponto de fazê-lo acordar tão suado e resfolegante como se os tivesse realmente vivenciado. Percebeu de imediato que a casa estava dominada por uma penumbra sufocante. Levantou-se e cambaleou à procura de um interruptor, que achou sem dificuldade. Sentiu um enorme alívio quando ligou a lâmpada e viu a luz expulsar instantaneamente as trevas da sala. Julgou que já era noite, o que o fez lançar um olhar assustado em direção à porta do banheiro. Foi até à janela. Abriu-a e constatou que não era noite ainda, mas que o dia já estava declinando. Havia dormido por mais de oito horas. Faltava pouco para anoitecer de fato. Logo a lua cheia iria surgir. O show estava prestes a começar. Foi para a cozinha e acendeu a luz. Queria a casa toda iluminada a fim de ter uma visão nítida da metamorfose em todos os seus detalhes. Os holofotes e o palco já estavam prontos para receber o hediondo espetáculo.

Retirou os prisioneiros do banheiro e os conduziu para a sala, fazendo-os sentarem-se no sofá. A mulher estava visivelmente debilitada, tanto que caminhou sustentada pelo filho e pelo marido. Sentou-se e permaneceu imóvel como uma catatônica, a cabeça apoiada no ombro do jovem, o olhar fixo.

Raví pegou uma cadeira e acomodou-se nela de frente para os moradores da casa. Com o cano direcionado para eles, perguntou:

___ O que há com ela?

___ Ela, além de diabética, é hipertensa. __ Informou o marido.___ Essa situação absurda deve ter feito a pressão dela ir parar lá nas alturas. Ela precisa de atendimento médico urgente. Por favor, se ela não for pra um hospital agora, ela vai morrer.

___ Ninguém vai sair daqui até que eu acabe com esse demônio que se esconde em um de vocês. A lua cheia vai surgir daqui a pouco, e a besta fera vai ser obrigada a se revelar. Hoje ela não me escapa.

Raví ajeitou-se na cadeira, observando, tão atentamente seus três prisioneiros, que sequer pestanejava. Dez minutos, carregados de um doloroso silêncio, se passaram.

___ Até quando você vai continuar com essa loucura? __ Indagou o marido, a voz ligeiramente rouca. __ Esperando uma coisa que nunca vai acontecer?

___ É o que nós vamos ver. ___ Desafiou Raví, levantando e chegando na janela.

Observou rapidamente o céu estrelado. Sentiu um estremecimento quando viu a metade da lua cheia erguendo-se no horizonte. A hora de encarar o demônio nos olhos finalmente havia chegado. Retornou para o local anterior, postando-se de pé com a escopeta apontada para os três alvos humanos no sofá. Estava tenso e ansioso demais para esperar sentado. Agora era só questão de minutos, ou de segundos para a coisa acontecer.

___ Pelo amor de Deus, cara, minha mãe precisa de um médico.___ suplicou o jovem, com lágrimas transbordando dos olhos. ___ Ela vai morrer se não for socorrida agora. Pelo amor de Deus, tenha piedade.

Mas Raví não estava ouvindo o dramático apelo do filho do casal. Toda a sua percepção concentrava-se em captar algum sinal que anunciaria a terrível metamorfose que estava prestes a se desencadear. Particularmente não achava que a mulher pudesse ser o lobisomem. Estava convencido de que a besta se escondia dentro do pai ou do filho. Suspeitava mais do filho. Tinha quase certeza de que o monstro que enfrentara na noite passada era na verdade ele. Não precisou voltar à janela para saber que a lua cheia, naquele momento, já se mostrava totalmente, em todo o seu esplendor. Podia sentir a fulgurante presença dela na abóbada celeste, a sua influência maligna impregnando o ambiente no interior daquela casa. Toda a sua atenção estava agora voltada para o jovem filho do casal, e consequentemente o cano da escopeta também. Era dele, estava convicto, que iria surgir a besta sanguinária, a mesma terrível criatura em quem atirou e feriu na noite passada. Mas dessa vez seu disparo iria ser fulminante. A situação agora estava totalmente sob seu controle. Pretendia assistir, por curiosidade, a transformação até certo ponto. Antes que ela se completasse iria explodir a cabeça do fedelho com a escopeta.

Alguns eternos segundos se passaram sem que nada de anormal acontecesse. A aparência do choroso jovem, assim como a de seus pais, continuou tão humana quanto antes. Raví começou a sentir certo desconforto, e a duvidar de seu próprio julgamento. Não podia ter se enganado. Vira o lobisomem entrar naquela casa. Vira o sangue dele no tapete, ao pé da porta. Só havia aquelas três pessoas morando ali. Tinha que ser uma delas. Seus pensamentos ficaram em desordem. Sua certeza e autoconfiança começaram a se estilhaçar, ocasionando uma hesitação que o fez baixar a arma. Foi nesse momento que a mulher passou a gritar enquanto era sacudida por violentas convulsões. Com os olhos esgazeados como os de uma louca, ela rasgou as próprias roupas, deixando à mostra um corpo já repleto de pelos negros crescidos instantaneamente. Raví ficou paralisado pela surpresa, sentindo aumentar ainda mais a confusão em sua mente, mas esse estado não durou mais do que alguns segundos. Apontou a escopeta na direção da mulher, percebendo, com euforia, que ela estava se transformando. Finalmente estava acontecendo. Era a pessoa que menos suspeitava, mas o importante é que não se enganara. Sua teoria estava se confirmando. Ali, bem diante de seus olhos, a moradora da casa foi perdendo suas feições humanas enquanto se debatia e gritava como se estivesse sendo acometida por uma dor insuportável. Seu rosto começou a desfigurar-se grotescamente ao mesmo tempo em que seus dentes cresciam e se tornavam pontiagudos. Raví estava entre apavorado e fascinado. Nunca vira algo tão fantástico, tão fabuloso. Era diabólico e divino ao mesmo tempo. A transformação estava quase completa. Não restava mais quase nada que lembrasse a mulher que, até há poucos minutos, estivera ali, sentada no sofá. Em seu lugar havia, agora, uma criatura horrenda, que a cultura popular denominava lobisomem. Raví precisava agir rápido. Já tinha presenciado o suficiente. Fez mira e puxou o gatilho. A cabeça de lobo da besta explodiu uma fração de segundos depois que o estrondo da arma ecoou pela casa. Respingos de sangue e pedaços de cérebro grudaram na parede, tingindo-a de vermelho. Pai e filho, também ensanguentados, gritavam apavorados diante do corpo morto no sofá.

___ Seu desgraçado, você matou minha mãe. ___ Berrava o jovem, em desespero.

___ Não era sua mãe, era um monstro assassino. ___ Replicou Raví.

___ O monstro aqui é você. ___ Rebateu o marido, com uma voz estranhamente modificada.

Raví percebeu, com assombro, que o homem estava, tal qual a mulher, se transformando também num lobisomem. Como numa reação em cadeia, o jovem começou a se debater em meio ao choro, sofrendo, assim como o pai, a terrível mutação. Raví recuou, tomado de um medo que fez um calafrio percorrer sua espinha. Entrara naquela casa para matar um lobisomem, agora teria que exterminar toda uma família de demônios.

Apressou-se em pegar mais um cartucho no bolso da calça. Enfiou-o nervosamente no compartimento de disparo, ao lado de outra munição intacta. Suspendeu a escopeta e atirou na direção do homem já transformado em lobisomem, e que avançava em sua direção. A criatura, ferida mortalmente, foi lançada, pelo impacto da bala, de volta para o sofá, onde caiu sem vida. Raví apontou, em seguida, a arma para o outro monstro ainda em processo de transformação. Mas antes que apertasse o gatilho o ser híbrido saltou agilmente por sobre os corpos do casal, que já tinha voltado à forma humana, e alcançou a escadaria que levava ao andar de cima. A arma estrondou outra vez dentro da casa, mas o tiro errou o alvo móvel, atingindo a parede sobre os degraus. Procurando escapar de seu implacável algoz, o ser entrou em um dos cômodos superiores e trancou-se lá dentro. Raví subiu os degraus, aos saltos, mas parou no meio para recarregar a escopeta. Foi então que percebeu que restava apenas um cartucho. Era seu último tiro. Quando tivesse que dispará-lo teria que ser certeiro. Galgou o que restava da escadaria e, com um violento pontapé, escancarou a porta do quarto em que a besta havia entrado. Encontrou-a encolhida contra a parede, ao lado da cabeceira de uma cama de solteiro. Não havia mais nenhum traço humano visível. A transformação se completara. O lobisomem moveu a bocarra, emitindo um som gutural por entre poderosos dentes pontiagudos, capazes de estraçalhar uma perna com uma só mordida. Raví esperava ouvir um rosnado, um urro ou até mesmo um uivo, mas, estranhamente, o que saiu da garganta do monstro foi uma suplicante e bem articulada voz humana.

___ Pelo amor de Deus, não me mate. Eu não quero morrer.__ Implorou a besta.

Tomado pela surpresa, Raví ficou observando aquela aberração pateticamente disposta numa posição fetal à sua frente. Nunca poderia sequer imaginar que os lobisomens possuíam a habilidade de falar. Era algo completamente ignorado no folclore, na literatura e nos filmes. Mas isso não mudava nada. Não mudava o fato de serem criaturas sanguinárias, assassinas, e que precisavam ser exterminadas de uma vez por todas. Com a escopeta apontada para a cabeça do monstro, puxou o gatilho com a determinação de extirpar aquele mal da cidade e do mundo. Mas não chegou a disparar o tiro. Um barulho, de porta sendo arrombada, vindo do andar de baixo interrompeu o seu intento. Raví não se moveu do lugar onde estava. Ficou parado, como que paralisado, apontando a arma para a criatura. O som de vozes, na parte inferior da casa, chegou aos seus ouvidos. Não demorou muito para ouvir, também, passos se aproximando pelas escadas. Um policial assomou na entrada do quarto.

___ Ainda bem que é a polícia. ___ Disse Raví, sentindo-se aliviado. ___ Pensei que fosse mais algum demônio que tinha invadido a casa. Tinha três lobisomens aqui. Eu consegui matar dois. Restou esse aqui. Vamos, venha aqui. Me ajude a acabar com essa besta-fera de uma vez por todas.

O policial olhou para o ser encolhido e acuado contra a parede, e tudo que viu foi um jovem, de uns 18 ou 19 anos, apavorado e chorando copiosamente com a iminência da morte.

___ Largue a escopeta e deite no chão, agora. ___ Ordenou o recém-chegado, apontando uma PT para seu interlocutor.

Um segundo policial chegou e colocou também Raví sob a mira de sua arma.

___ Socorro, não deixe ele me matar. ___ Clamou o jovem, desesperado.

Raví estava completamente surpreso com o fato de o policial ter lhe ordenado que soltasse a escopeta. Isso só significava uma coisa: que a polícia estava mancomunada com aqueles demônios; a força policial da cidade sabia da existência dos lobisomens e os protegia, ao invés de combatê-los.

___ Largue a arma, rapaz, e deite no chão. É o último aviso.

Aquele momento era crucial. Raví estava decidido a ir adiante com sua missão, que era divina afinal de contas. Lembrou de um provérbio chinês que lera, não se recordava onde, que era assim: “Sempre existe uma parte do caminho em que não se pode mais voltar”. Havia chegado a essa parte do caminho. Não existia mais volta. Tinha que seguir em frente. Apontou a escopeta para os policiais, mas antes que pudesse puxar o gatilho foi atingido por vários disparos, desabando de costas sobre a cama. Um homem chegou nesse exato momento. Estava esbaforido, como se tivesse corrido por várias léguas. Ao avistar o corpo ensanguentado de Raví sobre a cama, ficou visivelmente consternado.

___ Ah, não! Chegamos tarde demais. ___ Lamentou, passando a mão pelos cabelos completamente brancos, embora aparentasse ter pouco mais de 40 anos.

___ Quem é você? ___ Perguntou um dos policiais.

___ Ele é o Dr. Evandro Barbas, ___ Respondeu, com voz firme, um sujeito barbudo, que acabava de chegar ao último degrau da escada. ___ O psiquiatra do homem que vocês balearam. E eu sou o detetive Lessa, do 12º Distrito.

O barbudo mostrou sua identificação aos dois agentes.

___ Vocês chegaram rápido. ___ acrescentou, guardando a carteira.

___ Alguém, que estava passando aí na rua, ouviu tiros e gritos aqui dentro, e resolveu fazer uma ligação anônima pra polícia.__ Explicou um dos policiais. ___ O alerta foi dado e, como nós estávamos próximos daqui, decidimos atender a ocorrência. Ao entrar na casa demos logo de cara com os dois corpos no sofá, como vocês devem ter visto. Quando chegamos aqui em cima, encontramos esse indivíduo apontando uma 12 pra cabeça daquele jovem, que deve ser filho do casal de mortos lá embaixo.___ O agente indicou o sobrevivente sentado no chão e encolhido contra a parede. Estava agora mergulhado numa apatia profunda, ocasionada pelo estado de choque em que se encontrava. ___ Eu mandei ele depor a arma, mas ele ignorou, e ainda reagiu. Tivemos que alvejá-lo. Não teve outro jeito. O importante é que chegamos a tempo de impedi-lo de fazer outra vítima.

___ Eu poderia ter convencido ele a se render, se tivesse chegado a tempo. ___ Lamentou o psiquiatra.

___ Este homem estava sob tratamento psiquiátrico com o doutor Evandro. ___ Informou o detetive. ___ Ele fugiu da clínica na noite passada e parece que esfaqueou duas pessoas antes de chegar aqui. Uma delas é um policial, de quem provavelmente roubou a arma calibre 12. Eu e o Evandro somos amigos de longa data. Quando ficou sabendo da fuga de seu paciente, ele ligou pra mim e me pediu para ajudar a encontrá-lo. Sabendo do perigo que o fugitivo representava para as pessoas, devido aos seus delírios, nos empenhamos ao máximo para achá-lo antes que uma tragédia acontecesse, mas infelizmente isso não foi possível. Ele chegou a fazer uma ligação para o Evandro, provavelmente quando já estava aqui dentro. Falou um monte de coisas sem nexo, mas não deu sequer uma pista de sua localização. Depois de uma caçada incessante, ouvimos o alerta pelo Rádio da viatura, e então viemos a toda velocidade pra cá. Mas vocês agiram bem. Pelo menos impediram que esse louco fizesse mais uma vítima.

O detetive aproximou-se da cama e checou o pulso de Raví, constatando o que já estava supondo.

___ Levem o garoto pra o hospital. ___ Disse aos dois agentes.___ E mandem vir o rabecão. Digam que tem três corpos pra eles recolherem.

Os policiais saíram do quarto conduzindo o traumatizado jovem. O psiquiatra, vendo-se sozinho com o detetive, aproximou-se do corpo inerte de Raví e o fitou com um ar desolado.

___ Eu podia tê-lo curado. ___ Disse. ___ Podia tê-lo livrado dessa ideia fixa de um lobisomem aterrorizando a cidade. Isso não era nada mais que um mecanismo de sua mente doentia para livrá-lo do sentimento de culpa, provocado por seus impulsos assassinos. Ele precisava transferir essa carga, mesmo que fosse para um ente fantástico, irreal, como um lobisomem. Eu estava quase conseguindo curá-lo. Só precisava de um pouquinho mais de tempo.

O detetive chegou mais perto e pousou a mão sobre o ombro do doutor.

___ Permita-me discordar de você, amigo. Eu não sou um especialista como você, mas acho que você não ia conseguir curá-lo. Quando uma pessoa perde o elo com a realidade, jamais consegue recuperá-lo. Seja qual for o método ou drogas que você estava usando, só iriam proporcionar dias ou até meses de lucidez, mas sempre ele iria mergulhar no abismo de novo, e de novo, e de novo, até que finalmente não conseguisse mais voltar à superfície. A loucura é um labirinto sem saída. A prova disso está aí, diante de você. Vamos descer? Não há mais nada que possamos fazer aqui.

___ Vá na frente. Daqui a pouco eu desço.

O detetive saiu do cômodo, deixando o doutor a sós com seu paciente. Ninguém poderia sequer imaginar que na cabeça do psiquiatra estava acontecendo um verdadeiro tsunami. Tinha fracassado miseravelmente. Sim, a loucura era um labirinto sem volta, mas havia conseguido penetrar nesse labirinto através da mente de Raví, e estava quase conseguindo achar a saída, tanto para si quanto para seu paciente. Agora não havia mais como sair. Raví era a chave, era o fio condutor para a sanidade. Mas agora ele jazia morto, bem ali na sua frente. Ainda assim estava lhe indicando uma última saída, a única que restava.

O doutor Evandro Barbas inclinou-se, pegou a escopeta sobre o corpo de Raví, Enfiou o cano na própria boca e, sem hesitar, apertou o gatilho.

Bia Borges
Enviado por Bia Borges em 20/12/2019
Código do texto: T6823516
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