O CANTO DAS CRIANÇAS MORTAS - PT. 2

Sempre antes de dormir… e quase sempre isso acontece após as duas da madrugada, eu saio de casa e vou levar o lixo pra fora. Minhas gatas geralmente me acompanham tentando encontrar insetos e restos de comida no caminho. Desta vez, pararam quando eu abri a porta e pude sentir um breve vento gelado passando por mim como se quisesse me empurrar. O calor permanecia em 27/28 graus, mas apenas naquele milésimo de segundo meus pelos se arrepiaram como se tivesse dentro de um freezer industrial.

Quando olhei a rua o corpo estava lá… o tempo pareceu ter parado. Todos os meus movimentos pareciam incrivelmente lentos, como num sonho.

“Socorro…”, Sussurrei com voz trêmula e tão baixa que jamais conseguiria ajuda. Mas logo gritos começaram a surgir vindo bem longe, mas iam aumentando e aumentando e se aproximando… Eram vozes femininas e choros de criança. Olhei para a minha esquerda e do topo da ladeira vinha, lá ao longe uma mulher de camisola com um bebê chorando em seu colo. Ela berrava... e berrava alguma coisa como “fique aííí!!!” FIQUE AÍÍ!” como quem se sente triunfal por me pegar no ato.

Outras pessoas saíram… dessa vez uma multidão... A rua estava tomada de gente e o sol começava a disparar luzes azuis e alaranjadas no céu.

Todo esse lapso de tempo entre sair pela porta de casa e encontrar a figura morta no chão, me custou duas horas que senti como segundos. A mulher foi chegando e gritando, e ao mesmo tempo entregando o seu bebê pra uma outra mulher enquanto tentava ir em minha direção, cambaleando de fraqueza e de dor... me chamando de filho da puta e assassino. Eu me mantive sério e frio.

- Senhora, eu acabei de sair de casa… ESSA CASA AÍ… A VERMELHA, é minha casa! - Foi tudo que pude dizer antes que ela desmaiasse. Senti como se seu desmaio tivesse autorizado o sol a nascer de uma vez, finalmente...

- O que foi que aconteceu? - Perguntaram.

- Eu vinha saindo e as gatas se assustaram... Veja… olha como ele está!

O homem quase não tinha sangue no corpo e sua pele se parecia borracha ou pele de sapo. Não estávamos prontos para darmos uma de investigadores… A gente mal queria olhar. O rosto do homem estancara num grito de horror. Uma senhora idosa olhou em volta e andou em direção a esquina da rua… “Tem alguma coisa aqui”. Ela disse. E nós fomos atrás dela correndo…

Era uma bolsa de plástico. De um tipo bem duro e resistente. Muito fácil de ser visto em hospitais. Ela segurou a bolsa... Alguns fizeram imediatamente o sinal da cruz quando vira a cena… Outros simplesmente foram embora correndo. No final ficamos nós quatro... Eu, que me chamo Jorge… Juarez que trabalha como carpinteiro e eu mal o via durante a semana. Seu Chico que era aposentado dos correios e estava sempre bêbado com camisa de futebol... e a senhora idosa, Dona Sijou, uma costureira francesa que morava na rua um pouco mais a cima da nossa (parecia se recusar a falar comigo quando me via na rua, mas quando eu aparecia em sua casa lhe pedindo algum trabalho... ou quando ela passava em minha loja e comprava alguns discos, desandava a ficar horas falando sem parar).

Havia um caminho feito de bolsas de sangue idênticas a que Dona Sijou carregava. E elas faziam uma espécie de rastro… (ou caminho) na verdade uma espécie de seta… apontando pro homem que morreu.

- Morreu do quê o coitado? - Perguntou Juarez, parecendo prender o choro.

- No início me pareceu overdose. Agora com esse lance desse sangue todo aí… Mataram ele, com toda certeza… Parece magia negra…

- Pior… - Sussurrou Dona Sijou num tom de quem parecia ter alguma noção do que estava acontecendo. Ela parecia já ter visto daquilo… Na verdade, ela parecia já ter visto de tudo na vida.

Peguei rapidamente o telefone celular e chamei a polícia. No fundo eu estava muito mais incomodado com uma coisa tão esdruxula acontecendo na frente da minha casa (e loja) – e até mesmo afastando possíveis clientes – e com minha noite de sono perdida, do que com o indivíduo no chão. Meus “companheiros investigadores” ali presentes, também não sabiam o que dizer e o que pensar... e nem aparentavam sentir pesar pelo morto, tampouco conhecê-lo. Apenas a mulher caída no chão sentia algo por ele… Uma garota encostada numa casa no fim da rua segurava o bebê.

Nossa preocupação era apenas cercar o homem morto, enquanto esperávamos a polícia. E durante essa tarefa: TENTAR NÃO OLHAR O ROSTO DELE. Pois era aterrorizante. Visão do tipo que nos levaria a ficar muitos dias fechando os olhos e vendo sua imagem perfeita em nossa mente e nossos pesadelos (talvez ainda vivo e berrando em nossa direção).

Às oito da manhã eu resolvi abrir a loja e a casa. Minhas gatas ainda se recusavam a sair. Havia uma tensão no ar. Cochichos… Mas eu não participava deles. De repente... minhas duas gatas correram e pularam em meu colo, quase me fazendo cair. Como se tivessem visto alguma coisa extremamente assustadora. Não somente assustadora, mas… Algo que desestruturasse a vida delas. Sentadas no meu colo agiam como duas vigilantes... e vigiadas.

Uma menina morena, com um laço vermelho enorme na cabeça, uma bolsinha na mão e uma bola enorme na outra, vinha descendo a ladeira, pulando e cantando algo assim: “AMANHA VÃO QUEBRAR… TODO O ROSTINHO DA DONA DO BAR…vão quebrar, vão quebrar, vão quebrar, vão quebrar, vão quebrar...”.

(continua)