LABIRINTO DE ESPELHOS
Para a maioria das pessoas, a ideia de morar em uma casa na qual houve um crime seria motivo para calafrios. Na verdade, para a maioria das pessoas, sequer adquirir um local no qual alguém tivesse morrido, seria o suficiente para despertar dúvidas. Para Ricardo, aquele era motivo de fascínio e excitação, por isso, ele havia comprado o pequeno palacete conhecido como "Castelinho", edificação dissonante dos demais prédios existentes naquela movimentada rua paulistana. Decerto, existiam outros prédios históricos no centro da cidade que se diferenciavam dos arranha-céus vigilantes e soberanos sobre os transeuntes, que imersos em seus próprios pensamentos, voluntária ou involuntariamente, não se davam conta dos horrores diários da metrópole. A cidade irradiava uma estranha magia, mesmo se erigindo paralelamente, os prédios antigos e novos se agregavam sem manter um tom de desarmonia, exceto pela construção recém restaurada, concebida originalmente em estilo medieval, no início do século XX por uma das mais ricas e tradicionais famílias da época. No ano de 1940, ocorreu um caso que para sempre marcaria a crônica policial nacional, distinguindo-se não apenas pelo fato de a dinâmica dos eventos nunca ter sido solucionada - a versão oficial apontava assassinato seguido de suicídio - e pela particularidade de que nos anos vindouros, o lugar seria conhecido como assombrado.
Os únicos habitantes, além dos viciados em crack que buscavam abrigo da chuva e do frio nas noites do rigoroso inverno de São Paulo, seriam as vozes, gritos e ruídos indeterminados que dali irrompiam nas madrugadas, os quais seriam atribuídos aos próprios moradores de rua, perdidos em seu torpor alucinógeno. Salvo eventos isolados de aparições não explicadas, quaisquer episódios fora do comum eram classificados como fruto da imaginação dos habitantes reais daquele prédio então abandonado. Após a renovação do bairro, o palacete havia sido restaurado para fins turísticos, mas o projeto não seguiu em frente, o que proporcionou a Ricardo sua aquisição sem os transtornos e a carestia de uma reforma. Como professor universitário de história e antropologia, seus rendimentos seriam insuficientes, no entanto, ele havia amealhado considerável fortuna através de investimentos com o dinheiro de sua esposa, Sílvia, que vinha de uma família conhecida no meio da representação comercial e possuíam várias concessionárias de veículos, que agora eram dela. Sua paixão por lendas e casos criminais não era compartilhada pela companheira, como ateia, era cética e indiferente a lendas e assombrações, mas após um vislumbre da charmosa morada, fora facilmente persuadida, Afinal, ela sempre flertou com a vontade de morar em um duplex, mormente um que remetia a um castelo, no qual ela seria a princesa.
Como um viajante homem do mundo e estudioso das culturas e povos, Ricardo nutria um fascínio especial pelo ocultismo. Ávido leitor sobre magia, satanismo e invocações de espíritos, a investigação sobre os grimórios e clavículas sempre ocupava seu tempo, bem como a aquisição de livros raros. Em uma de suas viagens a Cartagena, encontrara uma loja de antiguidades, praticamente escondida em um beco entre dois prédios centenários mal cuidados, como uma imagem disforme de um bairro industrial do passado, coberto pela fumaça poluída. O ancião dono do estabelecimento soube ler a chama pelo inexplicável nos olhos do comprador em potencial, quando Ricardo retirara um livro quase escondido entre as centenas de encadernações dispostas em um nicho parcialmente encoberto entre cachimbos e punhais decorados.
— Parece que foi o destino que o levou até aí, señor. Há um motivo pelo qual esse livro se encontra tão bem guardado. Eu tenho relutado durante anos em vendê-lo, uma de minhas edições mais queridas, mas posso fazer negócio se o valor for justo — disse o velho, abrindo um sorrido que transpirava ganância, pensando no que poderia cobrar, dizendo em seguida o preço da obra.
— Nem pensar meu velho. Sei do valor de uma edição de mais de cem anos de um Grimorium Verum, mas assalto a mão armada, nem pensar — disse Ricardo, um pouco mais acidamente do que o necessário.
Após uma discussão na qual o cliente havia sido um tanto quanto ríspido, acabaram concordando em um meio termo, que não fez com que o livreiro ficasse satisfeito, mas ele precisava do dinheiro. No entanto, a vingança muitas vezes não deve ser esbravejada ou mesmo testemunhada, o sentimento de retribuição seria igualmente satisfatório. O Grimorium pertencera a um conde de Cartagena, que havia matado sua inteira família como resultado de um dos rituais conduzidos por intermédio daquele livro. O velho, também ocultista, gostaria de poder presenciar os poderes, ou melhor seria dizer, “consequências” daquele compêndio em mãos não versadas nas artes negras, não protegidas pelos espíritos e forças do príncipe das trevas. Sim, ele teria sua vingança, e a essência do conde que certamente acompanharia seu precioso artefato maldito se asseguraria disso. A passagem de comunicação com as almas inquietas estava aberta, principalmente se houvessem aquelas dispostas a se manifestar.
— Obrigado, e até uma próxima vez — despede-se o agora contente comprador.
— De nada, senõr, de nada!
***
A família composta do casal e um filho, discutia animadamente enquanto dirigiam-se para sua nova casa, o pai conduzia o carro enquanto ouvia o entusiasmo do filho ao descrever como iria se gabar aos colegas de faculdade, contando que agora moraria em uma casa mal-assombrada. O pai lhe assegura que não se trata bem disso, numa tentava inexitosa de dissuadi-lo de tais pensamentos.
— Não seja bobo Fernando, você sabe muito bem que essas coisas não existem, respeito as crenças alheias, mas nada nunca foi provado. Não foi você quem me disse que os caça-fantasmas daquele programa, como é mesmo...?
— TAPS, responde o filho, agora parecendo mais alheio à conversa.
— Isso, não foi você quem me disse que eles conduziram um experimento e nada foi encontrado? É evidente que as pessoas ouviam coisas por aqui, até pouco tempo atrás, essa parte do centro da cidade era tomada por cracudos, o que você esperava que eles ouvissem, hinos religiosos ou as vozes em suas cabeças?
A esposa o olha em tom de reprovação diante da pilhéria, não gostava que ele chamasse os dependentes químicos daquele jeito, ela nutria uma espécie de pena culpada, gostaria de fazer algo, mas também gostaria que eles se mantivessem a distância. Quando o que se vê de um lado proporciona repugnância, olha-se para o lado contrário, a apatia é cultivada de forma voluntária.
— Não diga isso, meu bem, um homem culto e internacional como você não devia usar essas definições — censura a mulher em tom de ironia, lançando-lhe um sorriso. Por algum motivo, ela adorava usar aquela palavra em substituição a “viajado”.
— Você preferiria que eles ainda estivessem aqui aos montes, como aqueles outros moradores ali perto da estação?
—Touché! — diz Sílvia, levantando as mãos em sinal de rendição.
— Aliás, nós não vamos ficar aqui por muito tempo, será uma espécie de casa de campo, mas no meio da cidade, apenas enquanto termino o novo livro, cujo último capítulo, como vocês sabem muito bem, trata desse pequeno castelo que será nossa fortaleza por algum tempo. — Ele não pode deixar de pensar que o mundo havia mudado, em sua época, aquilo seria motivo de chacota na escola, o moderno bullying, mas os jovens pareciam animados com aqueles temas poucos ortodoxos, ou talvez, o que mais ortodoxo do que a ideia de vida e morte?
—Eu me sinto como aquelas pessoas daquela casa nos EUA, aquela...que nós assistimos ao filme... — tenta se recordar o jovem, que redireciona sua atenção para a conversa.
— Amityville, sim, mas a família Lutz foi considerada durante muito tempo como impostores, o casal Warren investigou aquela propriedade e fizeram um grande alvoroço a respeito, mas permanecerá uma eterna incógnita — lembra o patriarca olhando-o de esguelha.
— Posso chamar os colegas para uma festinha na casa, quando vocês tiverem saído? — Pergunta o filho, esperançoso.
— Não — responde Ricardo, agora definitivamente sério a respeito — não quero nossa casa fedendo a maconha, conheço muito bem esses jovens de humanas, sorte sua que você não é meu aluno, senão ouviria meus discursos moralistas a respeito, tanto na aula como em casa.
— Por que acha que decidi fazer faculdade do outro lado da cidade? — diz Fernando, entre risos.
Um olhar de reprimenda é direcionado ao jovem no banco de trás, transmudando-se, em seguida, para amorosa condescendência, quando os três finalmente adentram os portões da bela casa com três sacadas e uma torre central, que remetia a castelos feudais e quando de sua construção, era um símbolo de poder e imponência para a distinta família que o erigira. Eles saem do carro simultaneamente e param por alguns segundos, lado a lado, contemplando aquele edifício misterioso que existia há mais tempo que qualquer um deles, e que provavelmente continuaria a existir quando eles não mais habitassem o mundo.
***
Na primeira noite, as expectativas foram atendidas, o entardecer havia sido tranquilo, uma pizza, um filme em família com todos debaixo do cobertor na sala de estar. Havia surpreendido Ricardo o fato de Fernando não ter saído em uma noite de sábado, o rompimento com a namorada era recente mas seria natural que já tivesse retornado à vida noturna, mas estava feliz em ver todos reunidos. Sílvia e Fernando já haviam se recolhido e às três da manhã, Ricardo escrevia freneticamente, entusiasmado em como aquelas paredes pareciam inspirá-lo. Ainda que não se tratasse de um trabalho de ficção, mesmo os casos reais deveriam ser narrados em uma prosa apurada e instigante para prender os olhos do leitor. Algo não havia escapado aos olhares de todos, a quase desproporcional quantidade de espelhos distribuídos pela casa. O arquiteto que cuidou da reforma e posterior decoração, parecia, curiosamente, aficionado por eles. A família não saberia que ele havia se enforcado naquela manhã; encontrado nu, com um cadarço de calçado envolta do pescoço e as pontas amarradas na maçaneta do banheiro. Considerando a pouca altura, a perícia chegou a cogitar a hipótese de homicídio, mas um número considerável de pessoas já haviam se suicidado em alturas menores.
Enquanto afasta a atenção do computador por alguns momentos, o escritor se levanta e segura carinhosamente o livro que havia adquirido do antiquário colombiano, e passara a ser sua obsessão secreta. Horas de estudo repetição das palavras impressas nas páginas que cruzaram épocas, foram sua companhia nos meses subsequentes à compra. Naquele momento, ele sente a temperatura lhe incomodar, o início de inverno era excessivamente frio, a tarde havia marcado 12 graus e diminuía mais com a noite, mas era algo além disso. Como uma presença em vez de uma simples corrente de ar invernal. Ricardo se vira abruptamente para se assegurar de que estava sozinho na biblioteca em estilo vitoriano, onde uma miríade de edições clássicas lhe rodeava, como lembrando que o conhecimento transmitido era imortal, e o corpo humano era frágil e precipitava-se a cada dia rumo ao fim
— Não há ninguém, Ric, porra...não escute as histórias do garoto — diz para si mesmo enquanto dirige seu olhar do computador para a coruja de cerâmica que utiliz;ava como peso de papel. Aquela maldita coruja nunca lhe pareceu tão sinistra. Retornando sua atenção para o computador, ele vê o reflexo de um homem magro, alto, trajando vestimentas de época. Num sobressalto, ele deixa cair o copo de boubon com gelo que repousava no canto da mesa de vidro.
— Mas que mer... — suas palavras são cortadas por algo que inicialmente parecia um reflexo no espelho, mas que aos poucos tomava a forma de um cenário, como um filme reproduzido em um televisor. A figura corpulenta de face pálida mantinha um olhar fixo e inexpressivo, morto, como um olho artificial, mas de alguma forma, o escritor sabia que era comandado a manter a atenção na cena que se desdobrava no espelho acima de uma escrivaninha. “Não pode ser!”, ele pensa, a imagem o mostrava dirigindo o carro que possuía anteriormente, uma caminhonete comprada há alguns anos. Lembrava-se daquele dia, rumava de volta para a capital, após uma breve pausa no litoral de Santos, e distraíra-se por um segundo enquanto acendia o cigarro. Parou de fumar depois daquele dia, sem nenhuma crise de abstinência. Contudo, o vício foi substituído pela bebida, que se acentuava vertiginosamente.
Ele via claramente o tranco do carro, como se tivesse passado por cima de um quebra-molas. Após constatar pelo retrovisor trata-se de um homem, que se mantinha estático, ele para o carro e aguarda alguns segundos. Como nota que o homem movia os braços vagarosamente, se põe de volta à estrada antes que pudesse ser identificado. Nos dias seguintes, descobriria que as pernas da vítima, Francisco, dizia o telejornal, haviam sido esmagadas pelo carro, cujo condutor fugira sem prestar socorro. Contudo, ele havia morrido afogado em decorrência das fortes chuvas daquela noite que haviam inundado a estrada e pela paralisia que o impedira de se salvar. Aquilo aconteceu há dois anos e constantemente sua memória era avivada, similar a um hábito diário, como uma oração antes de dormir.
Para a maioria das pessoas, a ideia de morar em uma casa na qual houve um crime seria motivo para calafrios. Na verdade, para a maioria das pessoas, sequer adquirir um local no qual alguém tivesse morrido, seria o suficiente para despertar dúvidas. Para Ricardo, aquele era motivo de fascínio e excitação, por isso, ele havia comprado o pequeno palacete conhecido como "Castelinho", edificação dissonante dos demais prédios existentes naquela movimentada rua paulistana. Decerto, existiam outros prédios históricos no centro da cidade que se diferenciavam dos arranha-céus vigilantes e soberanos sobre os transeuntes, que imersos em seus próprios pensamentos, voluntária ou involuntariamente, não se davam conta dos horrores diários da metrópole. A cidade irradiava uma estranha magia, mesmo se erigindo paralelamente, os prédios antigos e novos se agregavam sem manter um tom de desarmonia, exceto pela construção recém restaurada, concebida originalmente em estilo medieval, no início do século XX por uma das mais ricas e tradicionais famílias da época. No ano de 1940, ocorreu um caso que para sempre marcaria a crônica policial nacional, distinguindo-se não apenas pelo fato de a dinâmica dos eventos nunca ter sido solucionada - a versão oficial apontava assassinato seguido de suicídio - e pela particularidade de que nos anos vindouros, o lugar seria conhecido como assombrado.
Os únicos habitantes, além dos viciados em crack que buscavam abrigo da chuva e do frio nas noites do rigoroso inverno de São Paulo, seriam as vozes, gritos e ruídos indeterminados que dali irrompiam nas madrugadas, os quais seriam atribuídos aos próprios moradores de rua, perdidos em seu torpor alucinógeno. Salvo eventos isolados de aparições não explicadas, quaisquer episódios fora do comum eram classificados como fruto da imaginação dos habitantes reais daquele prédio então abandonado. Após a renovação do bairro, o palacete havia sido restaurado para fins turísticos, mas o projeto não seguiu em frente, o que proporcionou a Ricardo sua aquisição sem os transtornos e a carestia de uma reforma. Como professor universitário de história e antropologia, seus rendimentos seriam insuficientes, no entanto, ele havia amealhado considerável fortuna através de investimentos com o dinheiro de sua esposa, Sílvia, que vinha de uma família conhecida no meio da representação comercial e possuíam várias concessionárias de veículos, que agora eram dela. Sua paixão por lendas e casos criminais não era compartilhada pela companheira, como ateia, era cética e indiferente a lendas e assombrações, mas após um vislumbre da charmosa morada, fora facilmente persuadida, Afinal, ela sempre flertou com a vontade de morar em um duplex, mormente um que remetia a um castelo, no qual ela seria a princesa.
Como um viajante homem do mundo e estudioso das culturas e povos, Ricardo nutria um fascínio especial pelo ocultismo. Ávido leitor sobre magia, satanismo e invocações de espíritos, a investigação sobre os grimórios e clavículas sempre ocupava seu tempo, bem como a aquisição de livros raros. Em uma de suas viagens a Cartagena, encontrara uma loja de antiguidades, praticamente escondida em um beco entre dois prédios centenários mal cuidados, como uma imagem disforme de um bairro industrial do passado, coberto pela fumaça poluída. O ancião dono do estabelecimento soube ler a chama pelo inexplicável nos olhos do comprador em potencial, quando Ricardo retirara um livro quase escondido entre as centenas de encadernações dispostas em um nicho parcialmente encoberto entre cachimbos e punhais decorados.
— Parece que foi o destino que o levou até aí, señor. Há um motivo pelo qual esse livro se encontra tão bem guardado. Eu tenho relutado durante anos em vendê-lo, uma de minhas edições mais queridas, mas posso fazer negócio se o valor for justo — disse o velho, abrindo um sorrido que transpirava ganância, pensando no que poderia cobrar, dizendo em seguida o preço da obra.
— Nem pensar meu velho. Sei do valor de uma edição de mais de cem anos de um Grimorium Verum, mas assalto a mão armada, nem pensar — disse Ricardo, um pouco mais acidamente do que o necessário.
Após uma discussão na qual o cliente havia sido um tanto quanto ríspido, acabaram concordando em um meio termo, que não fez com que o livreiro ficasse satisfeito, mas ele precisava do dinheiro. No entanto, a vingança muitas vezes não deve ser esbravejada ou mesmo testemunhada, o sentimento de retribuição seria igualmente satisfatório. O Grimorium pertencera a um conde de Cartagena, que havia matado sua inteira família como resultado de um dos rituais conduzidos por intermédio daquele livro. O velho, também ocultista, gostaria de poder presenciar os poderes, ou melhor seria dizer, “consequências” daquele compêndio em mãos não versadas nas artes negras, não protegidas pelos espíritos e forças do príncipe das trevas. Sim, ele teria sua vingança, e a essência do conde que certamente acompanharia seu precioso artefato maldito se asseguraria disso. A passagem de comunicação com as almas inquietas estava aberta, principalmente se houvessem aquelas dispostas a se manifestar.
— Obrigado, e até uma próxima vez — despede-se o agora contente comprador.
— De nada, senõr, de nada!
***
A família composta do casal e um filho, discutia animadamente enquanto dirigiam-se para sua nova casa, o pai conduzia o carro enquanto ouvia o entusiasmo do filho ao descrever como iria se gabar aos colegas de faculdade, contando que agora moraria em uma casa mal-assombrada. O pai lhe assegura que não se trata bem disso, numa tentava inexitosa de dissuadi-lo de tais pensamentos.
— Não seja bobo Fernando, você sabe muito bem que essas coisas não existem, respeito as crenças alheias, mas nada nunca foi provado. Não foi você quem me disse que os caça-fantasmas daquele programa, como é mesmo...?
— TAPS, responde o filho, agora parecendo mais alheio à conversa.
— Isso, não foi você quem me disse que eles conduziram um experimento e nada foi encontrado? É evidente que as pessoas ouviam coisas por aqui, até pouco tempo atrás, essa parte do centro da cidade era tomada por cracudos, o que você esperava que eles ouvissem, hinos religiosos ou as vozes em suas cabeças?
A esposa o olha em tom de reprovação diante da pilhéria, não gostava que ele chamasse os dependentes químicos daquele jeito, ela nutria uma espécie de pena culpada, gostaria de fazer algo, mas também gostaria que eles se mantivessem a distância. Quando o que se vê de um lado proporciona repugnância, olha-se para o lado contrário, a apatia é cultivada de forma voluntária.
— Não diga isso, meu bem, um homem culto e internacional como você não devia usar essas definições — censura a mulher em tom de ironia, lançando-lhe um sorriso. Por algum motivo, ela adorava usar aquela palavra em substituição a “viajado”.
— Você preferiria que eles ainda estivessem aqui aos montes, como aqueles outros moradores ali perto da estação?
—Touché! — diz Sílvia, levantando as mãos em sinal de rendição.
— Aliás, nós não vamos ficar aqui por muito tempo, será uma espécie de casa de campo, mas no meio da cidade, apenas enquanto termino o novo livro, cujo último capítulo, como vocês sabem muito bem, trata desse pequeno castelo que será nossa fortaleza por algum tempo. — Ele não pode deixar de pensar que o mundo havia mudado, em sua época, aquilo seria motivo de chacota na escola, o moderno bullying, mas os jovens pareciam animados com aqueles temas poucos ortodoxos, ou talvez, o que mais ortodoxo do que a ideia de vida e morte?
—Eu me sinto como aquelas pessoas daquela casa nos EUA, aquela...que nós assistimos ao filme... — tenta se recordar o jovem, que redireciona sua atenção para a conversa.
— Amityville, sim, mas a família Lutz foi considerada durante muito tempo como impostores, o casal Warren investigou aquela propriedade e fizeram um grande alvoroço a respeito, mas permanecerá uma eterna incógnita — lembra o patriarca olhando-o de esguelha.
— Posso chamar os colegas para uma festinha na casa, quando vocês tiverem saído? — Pergunta o filho, esperançoso.
— Não — responde Ricardo, agora definitivamente sério a respeito — não quero nossa casa fedendo a maconha, conheço muito bem esses jovens de humanas, sorte sua que você não é meu aluno, senão ouviria meus discursos moralistas a respeito, tanto na aula como em casa.
— Por que acha que decidi fazer faculdade do outro lado da cidade? — diz Fernando, entre risos.
Um olhar de reprimenda é direcionado ao jovem no banco de trás, transmudando-se, em seguida, para amorosa condescendência, quando os três finalmente adentram os portões da bela casa com três sacadas e uma torre central, que remetia a castelos feudais e quando de sua construção, era um símbolo de poder e imponência para a distinta família que o erigira. Eles saem do carro simultaneamente e param por alguns segundos, lado a lado, contemplando aquele edifício misterioso que existia há mais tempo que qualquer um deles, e que provavelmente continuaria a existir quando eles não mais habitassem o mundo.
***
Na primeira noite, as expectativas foram atendidas, o entardecer havia sido tranquilo, uma pizza, um filme em família com todos debaixo do cobertor na sala de estar. Havia surpreendido Ricardo o fato de Fernando não ter saído em uma noite de sábado, o rompimento com a namorada era recente mas seria natural que já tivesse retornado à vida noturna, mas estava feliz em ver todos reunidos. Sílvia e Fernando já haviam se recolhido e às três da manhã, Ricardo escrevia freneticamente, entusiasmado em como aquelas paredes pareciam inspirá-lo. Ainda que não se tratasse de um trabalho de ficção, mesmo os casos reais deveriam ser narrados em uma prosa apurada e instigante para prender os olhos do leitor. Algo não havia escapado aos olhares de todos, a quase desproporcional quantidade de espelhos distribuídos pela casa. O arquiteto que cuidou da reforma e posterior decoração, parecia, curiosamente, aficionado por eles. A família não saberia que ele havia se enforcado naquela manhã; encontrado nu, com um cadarço de calçado envolta do pescoço e as pontas amarradas na maçaneta do banheiro. Considerando a pouca altura, a perícia chegou a cogitar a hipótese de homicídio, mas um número considerável de pessoas já haviam se suicidado em alturas menores.
Enquanto afasta a atenção do computador por alguns momentos, o escritor se levanta e segura carinhosamente o livro que havia adquirido do antiquário colombiano, e passara a ser sua obsessão secreta. Horas de estudo repetição das palavras impressas nas páginas que cruzaram épocas, foram sua companhia nos meses subsequentes à compra. Naquele momento, ele sente a temperatura lhe incomodar, o início de inverno era excessivamente frio, a tarde havia marcado 12 graus e diminuía mais com a noite, mas era algo além disso. Como uma presença em vez de uma simples corrente de ar invernal. Ricardo se vira abruptamente para se assegurar de que estava sozinho na biblioteca em estilo vitoriano, onde uma miríade de edições clássicas lhe rodeava, como lembrando que o conhecimento transmitido era imortal, e o corpo humano era frágil e precipitava-se a cada dia rumo ao fim
— Não há ninguém, Ric, porra...não escute as histórias do garoto — diz para si mesmo enquanto dirige seu olhar do computador para a coruja de cerâmica que utiliz;ava como peso de papel. Aquela maldita coruja nunca lhe pareceu tão sinistra. Retornando sua atenção para o computador, ele vê o reflexo de um homem magro, alto, trajando vestimentas de época. Num sobressalto, ele deixa cair o copo de boubon com gelo que repousava no canto da mesa de vidro.
— Mas que mer... — suas palavras são cortadas por algo que inicialmente parecia um reflexo no espelho, mas que aos poucos tomava a forma de um cenário, como um filme reproduzido em um televisor. A figura corpulenta de face pálida mantinha um olhar fixo e inexpressivo, morto, como um olho artificial, mas de alguma forma, o escritor sabia que era comandado a manter a atenção na cena que se desdobrava no espelho acima de uma escrivaninha. “Não pode ser!”, ele pensa, a imagem o mostrava dirigindo o carro que possuía anteriormente, uma caminhonete comprada há alguns anos. Lembrava-se daquele dia, rumava de volta para a capital, após uma breve pausa no litoral de Santos, e distraíra-se por um segundo enquanto acendia o cigarro. Parou de fumar depois daquele dia, sem nenhuma crise de abstinência. Contudo, o vício foi substituído pela bebida, que se acentuava vertiginosamente.
Ele via claramente o tranco do carro, como se tivesse passado por cima de um quebra-molas. Após constatar pelo retrovisor trata-se de um homem, que se mantinha estático, ele para o carro e aguarda alguns segundos. Como nota que o homem movia os braços vagarosamente, se põe de volta à estrada antes que pudesse ser identificado. Nos dias seguintes, descobriria que as pernas da vítima, Francisco, dizia o telejornal, haviam sido esmagadas pelo carro, cujo condutor fugira sem prestar socorro. Contudo, ele havia morrido afogado em decorrência das fortes chuvas daquela noite que haviam inundado a estrada e pela paralisia que o impedira de se salvar. Aquilo aconteceu há dois anos e constantemente sua memória era avivada, similar a um hábito diário, como uma oração antes de dormir.
***
No andar de baixo, Fernando assistia a um vídeo no notebook em seu quarto, um pornô leve, que não lhe provoca qualquer entusiasmo. Ele não conseguia se relacionar com uma mulher há meses, ou mesmo se aliviar sozinho. Não quando pensava no que havia acontecido da última vez. Ele participava de uma festa na casa de um amigo, os pais não estavam e os jovens haviam contratado uma prostituta. Era cara, mas prometera fazer de tudo; ele e o outro rapaz estavam se divertindo por último, um strip antes de a mulher ir embora. Haviam notado que ela bebera muito e sua fala cada vez mais enrolada no decorrer da noite, até que Fernando começou a penetrá-la...
Ele é subitamente desperto de suas lembranças pelo reflexo de um homem na tela do notebook, o terno de modelo ultrapassado parecia sujo e amassado, estranhamente, pensou que fosse uma brincadeira de seu pai, mas quando a criatura lhe estendeu as mãos, pode notar as manchas do que pareceria ser algo enegrecido, como lama ou sangue seco. Libertando um grito e levantando-se da cama, é impedido de emitir ulteriores sons, ao passo que teve ciência, como que por uma mensagem telepática, de que a entidade que se amoldava diante de seus olhos queria que ele olhasse para o espelho próximo à janela fechada. Entre a moldura do vidro, seu reflexo é substituído pela cena que há poucos segundos era reprisada na sua mente. Ele via a si próprio, estocando cada vez mais forte por trás da loira meretriz, que vomita sobre o sofá e aos poucos, por demais embriagada e já semi-inconsciente, morre, sufocada em sua última ceia, um hambúrguer parcialmente digerido, vodca e sêmen. Ao se deparar com o quadro dantesco, os jovens já também desnorteados pelo êxtase consumido no início da noite, se desesperam e após breve discussão, chegam à conclusão de que ninguém daria falta de uma puta.
— Davi, você tem uma mala grande...? — pergunta Fernando – enquanto a saliva escorria por seu queixo anguloso.
— O que você está pensando em fazer? Tá louco?
— Alguma sugestão? Você quer chamar a polícia e tentar explicar isso? Como iremos convencê-los de que não a matamos de propósito, tão doidões que estamos, ou porque ela se negou a liberar o rabo ou algo assim? Venha, me ajuda a levantá-la — ordena Fernando, parecendo agora mais resoluto. Os dois levam o cadáver magro e agora totalmente flácido da prostituta até o banheiro, aconchegando-o dentro da banheira antiga, comum àquele tipo de edificação.
— Temos que limpar essa bagunça — diz Davi — agora já totalmente ciente de que não havia outra escolha, passando a auxiliar o companheiro.
Após ligarem o chuveiro e deixarem a água envolver o cadáver durante alguns minutos, os inusitados cúmplices o depositam numa grande mala utilizada pelos pais do anfitrião em viagens internacionais. Acondicionando o corpo sem vida dentro da mala, dobram suas pernas sobre o quadril, até que a estrutura óssea impede o cerrar da tampa. Fazendo uma força já intensificada pelo efeito da droga, conseguem dobrar os joelhos do cadáver depois de várias tentativas, fechando a mala em seguida. Um olhar pesaroso é a última coisa de que Fernando se lembra, antes de arremessarem a mala de uma ponte no rio Tietê.
Eles nunca checariam jornais, nunca procuraram lembrar seu nome, apenas uma promessa velada de nunca mais tocar no assunto. Obviamente, eles se lembrariam de tudo, de forma recorrente, conscientemente ou não, sozinhos, sem qualquer tipo de verbalização a não ser por uma memória contínua, uma agulha que penetra a consciência em um flagelo constante e profundo, clamando por uma derradeira e indulgente misericórdia
Ele é subitamente desperto de suas lembranças pelo reflexo de um homem na tela do notebook, o terno de modelo ultrapassado parecia sujo e amassado, estranhamente, pensou que fosse uma brincadeira de seu pai, mas quando a criatura lhe estendeu as mãos, pode notar as manchas do que pareceria ser algo enegrecido, como lama ou sangue seco. Libertando um grito e levantando-se da cama, é impedido de emitir ulteriores sons, ao passo que teve ciência, como que por uma mensagem telepática, de que a entidade que se amoldava diante de seus olhos queria que ele olhasse para o espelho próximo à janela fechada. Entre a moldura do vidro, seu reflexo é substituído pela cena que há poucos segundos era reprisada na sua mente. Ele via a si próprio, estocando cada vez mais forte por trás da loira meretriz, que vomita sobre o sofá e aos poucos, por demais embriagada e já semi-inconsciente, morre, sufocada em sua última ceia, um hambúrguer parcialmente digerido, vodca e sêmen. Ao se deparar com o quadro dantesco, os jovens já também desnorteados pelo êxtase consumido no início da noite, se desesperam e após breve discussão, chegam à conclusão de que ninguém daria falta de uma puta.
— Davi, você tem uma mala grande...? — pergunta Fernando – enquanto a saliva escorria por seu queixo anguloso.
— O que você está pensando em fazer? Tá louco?
— Alguma sugestão? Você quer chamar a polícia e tentar explicar isso? Como iremos convencê-los de que não a matamos de propósito, tão doidões que estamos, ou porque ela se negou a liberar o rabo ou algo assim? Venha, me ajuda a levantá-la — ordena Fernando, parecendo agora mais resoluto. Os dois levam o cadáver magro e agora totalmente flácido da prostituta até o banheiro, aconchegando-o dentro da banheira antiga, comum àquele tipo de edificação.
— Temos que limpar essa bagunça — diz Davi — agora já totalmente ciente de que não havia outra escolha, passando a auxiliar o companheiro.
Após ligarem o chuveiro e deixarem a água envolver o cadáver durante alguns minutos, os inusitados cúmplices o depositam numa grande mala utilizada pelos pais do anfitrião em viagens internacionais. Acondicionando o corpo sem vida dentro da mala, dobram suas pernas sobre o quadril, até que a estrutura óssea impede o cerrar da tampa. Fazendo uma força já intensificada pelo efeito da droga, conseguem dobrar os joelhos do cadáver depois de várias tentativas, fechando a mala em seguida. Um olhar pesaroso é a última coisa de que Fernando se lembra, antes de arremessarem a mala de uma ponte no rio Tietê.
Eles nunca checariam jornais, nunca procuraram lembrar seu nome, apenas uma promessa velada de nunca mais tocar no assunto. Obviamente, eles se lembrariam de tudo, de forma recorrente, conscientemente ou não, sozinhos, sem qualquer tipo de verbalização a não ser por uma memória contínua, uma agulha que penetra a consciência em um flagelo constante e profundo, clamando por uma derradeira e indulgente misericórdia
***
No quarto do casal, a bela mulher se encontra deitada na cama, uma camisola branca envolvia seu corpo bem torneado. O estado letárgico do quase adormecimento a envolve quando sente a temperatura do quarto diminuir ao ponto ver sua respiração. Em sobressalto, percebe que mais alguém a acompanha naquele recinto; ela não queria acreditar que a casa havia sido penetrada por um invasor. Sílvia olha ao redor com um desespero crescente, até que finalmente enxerga uma figura no canto do quarto mal iluminado. O silêncio se prolonga por alguns segundos que parecem durar uma eternidade, até que uma senhora de aparência septuagenária se materializa em formas mais distinguíveis ao pé da cama. A mulher ostenta um olhar severo, condenador, uma surpresa genuína por alguém estar em sua morada, ansiosa por explicações.
O espírito quase transparente estende o indicador até o espelho contornado por uma moldura dourada, transmitindo a imagem de uma anciã prostrada em uma cama, um olhar agonizante, estagnado, fragilmente dirigido ao nada. À porta entreaberta, surge uma adolescente, aparência fria e resoluta, que traduzia a face mais jovem de Sílvia. Ela se aproxima da cama segurando um travesseiro, que aplica com leve pressão sobre o rosto da velha moribunda, depois com mais força e durante muito tempo, até que a mulher para de se contorcer, ceifando seu sofrimento e os pesares de cuidar de uma doente. Era uma vontade que não queria admitir durante muito tempo, mas que seria uma libertação para ambas. Ela não odiava sua avó, apenas aquilo que a doença havia feito com ela, mas não a amava para continuar a dedicar-lhe cuidados exaustivos por muito tempo, então, ela resolveu matá-la. Durante muito tempo já até sabia como. As pessoas morriam tão rápidos daquela forma nas películas de mistério, “mas seria assim na vida real?” ela se perguntava. Ora, aquilo não tinha importância...
Aquele dia permanecia claro em sua memória, mas não havia qualquer vislumbre de arrependimento. Nesse momento, o filho do casal trespassa a porta do quarto segurando uma faca de cozinha, de maneira veloz e alucinada se dirige à mulher deitada na cama e golpeia seu pescoço com um só movimento de mão. Seu olhar de descrença vai perdendo o foco, enquanto o gorgolejar do sangue de sua carótida seccionada se espalha pela cama como uma aspersão macabra. Alheio ao seu derredor, Fernando se dirige à biblioteca, onde Ricardo se mantém inerte observando o espelho, como se auto flagelando mentalmente pelo que havia feito, pela culpa, pelas lembranças, quando é surpreendido não por uma nova aparição, mas pelo filho, que lhe estoura o globo ocular com a faca, introduzindo-a até a base do cérebro, deixando-a lá repousar enquanto o corpo de seu pai desliza até a base da mesa do escritório até atingir o chão.
O rapaz anda até a sacada do segundo andar, vagarosamente, como em estado catatônico, de onde uma voz o convidava para a beira da varanda. A bela São Paulo se descortinava ao fundo, um bairro que exalava maior imponência quando da construção do castelinho no século passado, mas que assim como a garoa, apenas remetia a um estado efêmero, como a aceitação de que nada permanece obscurecido para sempre. Ele sorri, chora, grita, até quando se lança do segundo andar e seu corpo atinge o chão, rompendo sua caixa craniana.
Eles haviam pecado, cada um a seu modo, e suas ações os perseguiriam em morte como haviam perseguido em vida, de modo similar às três almas naquela fatídica noite no ano de 1940, quando uma briga em família havia feito com que o mais jovem dos filhos alvejasse a mãe e o irmão, encerrando a própria vida, na sequência. Fratricídio e matricídio eram palavras horrendas. Decerto, não as palavras em si, que são receptáculos voluntários de seu significado, mas o ato de violência, que assim como qualquer ato de violência, havia deixado uma sequela, uma trilha num labirinto que se estendia pelas décadas, para as almas aprisionadas naquela casa e a família extinta naquela momento. Para sempre, os mortos de forma não natural habitariam o castelinho, às vezes, cientes de seu fim, outras não, afinal, a expiação era a eterna repetição, como um purgatório que não apresentava a possibilidade da prometida redenção.
O Grimorium, até então aberto na mesa da biblioteca, se fecha como que guiado por uma mão invisível, num baque resoluto como o ímpeto do final de uma leitura, ou um encargo do qual alguém se desincumbe satisfatoriamente. Quem seria o próximo proprietário?