AMOR DE VÔ

Eu chegava por volta da meia noite da faculdade, sempre tarde e sempre estava la meu avô, me esperando. Foi assim durante os dois primeiros anos do curso. Eu voltava de ônibus e a rua onde ficava o ponto em que eu descia, era uma rua longa e estreita nas entre quadras do Recanto das Emas, em Brasília. O ônibus entrava na rua e descia até o fim, era uma das últimas ruas da cidade e dava num muro de uma granja de grande porte, fazia o retorno e subia por ela mesma, saia por onde tinha entrado, e só aí seguia caminho. Eu ficava na penúltima parada, já bem no final da rua, um ponto onde mesmo com a iluminação dos postes naquele horário ficava bem escuro. Assim, antes de falecer meu avô sempre me esperava lá, para que eu não fosse sozinha de madrugada para casa. Na metade do quarto semestre da minha faculdade ele adoeceu, os exames acusaram um câncer de próstata já avançado. Os médicos foram realistas e nos avisaram que nosso querido avô não duraria por muito tempo. Ele faleceu no dia 24 de dezembro, as 21:00 da noite. No ano não faríamos ceia pois ele estava internado. No dia anterior ao da morte, durante a visita ao hospital o médico nos disse que ele havia melhorado bastante. A notícia trouxe ânimo e resolvemos fazer uma pequena ceia, já que em saúde vovô não deixava passar sem. Com o peru no forno recebemos a ligação do hospital avisando do óbito. Todos reunidos em casa, todos felizes. O resto se seguiu como em qualquer família comum, dos prantos ao velório.

Voltando da faculdade no ônibus da madrugada, duas paradas antes da minha consegui ver a silhueta de vovô na parada me esperando, o reconheria em qualquer lugar, já faziam dois meses que ele havia morrido, e quanto mais o ônibus se aproximava do meu ponto e a silhueta ia tomando forma, confirmando o que os olhos não queriam acreditar, mais eu me tremia sem saber se descia, se gritava, se chorava ou me escondia. Não dei sinal. O ônibus foi ao fim fez o retorno e voltou, não consegui não olhar, e lá estava meu avô. Não mexeu a boca para falar nada, só cravou os olhos nos meus e manteve virando a cabeça enquanto o ônibus subia. Desci na primeira parada da rua.

Como era uma rua longa dali não dava para ver o final, mas eu teria de andar para chegar em casa, e do ponto da rua onde eu entrava para as quadras, dava! Tudo deserto, os postes oferendo pontos fracos de iluminação de vinte em vinte metros, o vento frio e cortante, e meu avô morto me esperando na parada. Fui descendo sem querer botar os olhos no rumo do ponto de ônibus, não consegui, porém não havia mais nada lá.

A noite sonhei com ele. No sonho ele me dava uma bronca por não ter decido na parada para virmos juntos, acordei apavorada, sem conseguir entender se aquilo era realidade ou se fora só o choque da perda que me desequilíbrará a cabeça.

Passei dois meses descendo na primeira parada da rua, sempre olhava para a parada onde ele costumava me esperar, e nesse tempo ela sempre estava vazia. Resolvi que havia sido paranóia minha. No dia que decidi voltar a descer no meu ponto, de onde eu andava bem menos para chegar em casa uma moça que alguns dias havia começado a pegar a mesma linha me abordou, e perguntou se eu era a neta do senhor que sempre ficava esperando penúltima parada. Lembro dela dizer "já tem dois dias que um senhor me aborda na penúltima parada me perguntando se sua neta está nesse ônibus, que é muito perigoso andar sozinha aquelas horas". Sem reação assim que ela terminou de falar dei sinal e desci, nesse dia não olhei para o final da rua, também não dormi. Não tive mais coragem de descer na minha parada, encontrei a moça várias vezes depois daquilo mas não tive coragem de dizê-la que o senhor já estava morto. Moramos mais três anos na mesmo casa. Hoje já não desço mais naquela rua, mas sempre me arrepio quando lembro do velho me olhando com um olhar profundo e sem sentimentos. Volta e meia ainda sonho com ele me alertando que é perigoso andar sozinha na rua de madrugada.

Gostou? Leia outros contos meus, link nos comentários!