O IMIGRANTE DE RAALLAH – CLTS 09

O IMIGRANTE DE RAALLAH – CLTS 09

O Espólio do Sr Oskar

Cheguei à pequena casa de cômodos por volta das seis da tarde. Era uma casa pequena, porém de forma alguma pobre. Poder-se-ia mesmo dizer que havia ali um certo luxo. O motivo de minha presença era a preparação do inventário de bens do residente, que acabara de falecer. O morto era o senhor Oskar Jankowski, imigrante polonês, morador de longa data daquela vila.

Eu o conhecia desde minha infância. Sua esposa morreu quando eu ainda era menino. Eles não tiveram filhos e o senhor Oskar nunca expressou nenhum desejo sobre a destinação seus bens após sua passagem. Com sua ausência, eu, na qualidade de ex-seminarista, passei a ser uma das poucas – na verdade, três – pessoas instruídas que restaram na Vila Chateaubriand.

O Professor, como era chamado pelos moradores, gostava de olhar o céu noturno e me deu as primeiras lições de Astronomia. Ensinou-me os nomes das constelações e o reconhecimento dos planetas no céu. Apontava para o firmamento com aquele braço magro e muito branco onde eu podia ver inscrições que, segundo ele, eram marcas da maldade humana. Eu não entendia muito bem o porquê, mas durante essas lições, sua voz frequentemente assumia um tom confidente e um tanto assustado. Parecia que ele, às vezes, tinha medo do céu.

Eu já tinha juntado praticamente todos os pertences dele. Seus muitos livros, suas roupas, a espingarda de caça e as coisas normais de toda residência como louças e móveis. Estava decidido que tudo iria para escolas e orfanatos na capital. De tudo o havia ali, minha curiosidade se focalizou sobre um livro belamente encadernado. A capa ostentava símbolos que mais pareciam hieróglifos.

Abri o livro e pude ver que além daquela escrita estranha, ele também tinha ilustrações em abundância. Com uma excitação digna dos mexeriqueiros, sentei-me para ler mais atentamente aquilo que me pareceu ser um segredo bem guardado pelo Professor. Aquele livro ia ficar comigo. Não deixei que fosse levado para a capital ou qualquer outro lugar.

Os Mineradores

Por uma semana não li nada que não fosse o tal livro. Percebi que as ilustrações foram feitas pelo próprio senhor Oskar. E mais: fui reconhecendo e encaixando algumas imagens. Eram desenhos da paisagem da Vila, do bosque ao redor dela e dos morros que os envolviam. Alguns locais já estavam mudados, pois o livro era antigo e retratava algumas partes da paisagem sem as mudanças que foram feitas há tempos. Ele retratava o prédio da fábrica de vassouras demolida há quarenta anos para dar lugar ao atual necrotério. Entre as imagens havia apenas duas fotos. Uma delas mostrava o Professor bem mais jovem, todo sujo de terra dentro de um buraco ou caverna rodeado de pás e picaretas. A outra fotografia mostrava um homem que eu só conhecia por meio de imagens antigas do tempo de minha avó. Era o há muito falecido padre Jacinto. O padre foi uns dos primeiros a “inaugurar” o necrotério. Na foto, também estava enlameado e com ferramentas, mas estava ao ar livre.

Talvez os dois estivessem procurando a fortuna que diziam existir naqueles morros. O morro era tido como rico em minério de ferro. Até os dias atuais, isso ainda move multidões em direção à Vila Chateaubriand. Enquanto eu passei a semana imerso no livro do Professor, uma empresa portuguesa de mineração chegou à Vila. Era o minério de ferro outra vez. Várias casas foram alugadas para abrigar os batalhões de portugueses que estavam chegando. Máquinas, sotaques e rangidos passaram a fazer parte de nosso dia a dia. Mas... Eram os anos JK. O progresso estava acima de tudo.

Munido de minha nova paixão, o livro do senhor Oskar, fui procurar o médico legista. O Dr Moreira, como era conhecido, era meu colega de ensino médio. Para mim era apenas o Julinho, filho da Dona Berta.

– Boa tarde, Julinho! - disse ao entrar em seu gabinete no necrotério – Trago uma relíquia para você examinar!

Julinho apertou-me a mão com o habitual sorriso dentuço e apontou-me a cadeira do paciente.

– Diga lá, cabra! É livro é? Perguntou animado.

– Sim, mas não é um livro qualquer. Estava escondido entre os pertences do Professor. Achei enquanto fazia o espólio. Olha que coisa!

Julinho estendeu a mão para receber o livro com visível excitação. Ao abrí-lo, sua face assumiu um ar de profunda concentração. Examinava as páginas com atenção, estranhou nos sinais e pousou o indicador com resolução sobre a foto do Padre Jacinto.

– Meu avô dizia que esse cara era um gênio. Uma inteligência mal aproveitada aqui nesse fim de mundo. Meu avô dizia isso. Eu não concordo. O padre devia estar feliz aqui. Se é que você me entende... – concluiu com um risinho irônico e um sobe-e-desce de sobrancelhas. Respondi com uma risadinha condescendente de quem sabia do que se tratava.

– Eu sei onde é esse lugar. – ele disse.

– Eu também - respondi – é na escavação da mina que nunca deu nada.

– Pois é! Mas esses portugueses têm fé que acharão algo lá.

– Mas... E esses sinais, Julinho? Que tipo de símbolos serão esses? – perguntei.

– Não faço a menor idéia... Mas tenho uma outra idéia da qaul acho que você vai gostar: primeiro passamos na casa de dona Gracinha para falar com ela e o Abraão. Talvez eles saibam de alguma coisa. E depois... Prepare a pá e a picareta! Nós vamos para a mina antes dos portugueses. Vamos ver se tem algum motivo para todo esse esconde-esconde por parte desses dois.

Segredos de Família

Chegamos à casa onde Dona gracinha vivia com seu filho Abraão. Uma casa pequena e bonita com um portão de madeira ladeado por uma cerca coberta de trepadeiras. Na parte de dentro do quintal havia um gramado muito bem cuidado pontuado por várias roseiras. Até o cachorro que veio nos receber com ferozes latidos de guardião aparentava o capricho das almas que ali habitavam.

Abraão pareceu na porta e recolheu o cão, mandando-nos entrar. Sua semelhança física com o falecido padre Jacinto era impressionante. A conhecida devoção que Dona Gracinha tinha pela paróquia em sua juventude, quando era ajudante onipresente do padre Jacinto, e a aparência de Abraão não deixavam dúvidas sobre a existência de um romance proibido.

Entramos e colocamos Abraão ao par do assunto. Ele ouviu atentamente e achou melhor chamar sua mãe. Dona Gracinha veio caminhando com dificuldade apoiando-se no filho e numa bengala. Enquanto nos ouvia, seus olhos ora piscavam, ora se arregalavam. Quando passei o livro às suas mãos, ela o folheou com interesse, detendo-se nas páginas cobertas com os símbolos estranhos. Ao chegar na página que tinha a foto do padre, ela pediu com sua voz fraquinha: – Posso ficar com essa, meu filho? – e nós concordamos prontamente.

Dona Gracinha fechou o livro e disse ao filho:

– Pegue aquele baú que fica lá no fundo do meu guarda-roupas e aquele travesseiro antigo que fica no seu quarto. Traga uma faca também

Abraão foi cumprir a ordem e voltou tão espantado quanto partiu, trazendo os objetos pedidos pela mãe. Dona Gracinha rasgou o travesseiro e retirou uma chave de dentro dele. Com a chave, abriu o baú e sob nossos olhares mesmerizados retirou um livro semelhante ao que levamos. O silêncio era total. Quando ela finalmente abriu o livro, vimos que ele continha inscrições semelhantes ao livro do senhor Oskar.

– O Padre Jacinto me pediu que guardasse esse livro até que aparecesse alguém que precisasse dele. Acho que vocês precisam...

O segundo livro continha a chave para o código que decifrava os símbolos do outro.

– Quer dizer que quando criança eu dormia sobre a chave do livro do padre, mãe? - perguntou Abraão com uma expressão divertida no rosto. – Se for um mapa do tesouro, me chamem. Se não...

Despedimo-nos e partimos para o trabalho de decifrar o nosso quebra-cabeças. Saí dali com a certeza de que abandonar o seminário foi a melhor decisão da minha vida. Não aguentaria o sofrimento imposto àquelas vidas em segredo.

Tradução

Com a informação privilegiada que Julinho possuía de que a empresa portuguesa só começaria a escavação dali a uma semana, preparamos as ferramentas e passamos à decifração do livro. Havia claramente dois autores naquele texto. Naturalmente, o padre e o Professor. O texto do padre começava com um mapa situando o local exato da escavação. Explicava que foi um achado casual, já que eles estavam procurando um depósito de minérios.

Vários desenhos feitos a mão e cobertos de símbolos detalhavam a profundidade da escavação e finalmente, havia o desenho de uma cápsula. O relato que se seguia dava conta de que os dois escavadores tentaram abrir o invólucro que segundo o texto era duas vezes maior do um homem. Feito de um metal que retinia prolongadamente e de uma forma nunca ouvida por eles.

Relatava, também que o Padre Jacinto após desferir várias picaretadas no objeto, recebeu uma lufada de um gás arroxeado que saiu do invólucro, que vibrou fortemente fazendo com que o padre caísse. As tentativas de abertura continuaram até que o padre passou a apresentar alterações de comportamento. Ele começou a agir de forma agressiva enquanto gritava palavras sem significado e arregalava os olhos e falava com alguém que não estava ali. O professor, percebendo que o gás era um poderoso alucinógeno, tomou uma atitude drástica: nocauteou o amigo com um potente soco no queixo.

O cheiro do gás parecia com cheiro de menta, mas muito amplificado e com um quê de corrosivo. O sr Oskar levou o amigo desacordado para uma área descampada, onde também começou a sofrer das alucinações. Nessas alucinações, via centenas de invólucros como aquele enterrados em lugares diferentes. Lugares que ele nunca visitou. E havia uma voz. Uma voz sibilante e lúgubre. Falava dentro de sua cabeça e sem precisar de tradução, fazia-se entender. Ordenava que o invólucro fosse aberto.

Após uma crise de vômitos e muito sangramento nasal, a voz e as alucinações desaparecerem. O Professor tratou de levar de volta o seu amigo, que ainda debilitado, ensaiava acordar. A recuperação do padre foi lenta. Foi ele que teve a idéia de escrever com os hieróglifos que segundo ele, fizeram parte de sua visão.

Voltaram ao local duas semanas após a primeira incursão. Enterraram novamente o objeto e combinaram de não falar mais no ocorrido. Deixariam o registro codificado daquela forma e esperariam que se alguém o lesse, que tivesse a sensatez de apenas procurar o objeto com cautela científica e não como meros caçadores de tesouro.

Finda a leitura, Julinho e eu estávamos empolgadíssimos. Tínhamos diante de nós uma aventura irrecusável. Decidimos que iríamos realizar nova escavação. A excitação dominava nossas mentes. Resolvemos chamar Abraão, pois aquilo fazia parte da história de seu pai. Além disso, seria bom ter mais um homem para cavar.

– Não sei se vocês sabem, mas o padre sofreu o resto da vida com alcoolismo. Minha mãe disse e que ele não acreditava mais em Deus e que olhava o céu estrelado com temor. Talvez tenha sido efeito desse gás que vocês falaram. O professor Oskar tinha essa mesma característica de medo do céu... – disse Abraão, que aceitou acompanhar-nos na empreitada.

– Sim, o professor tinha umas coisas assim. _ confirmei.

Abraão continuou: – Mas deve ter sido em menor grau. Minha mãe disse que meu pai gritava durante seus frequentes pesadelos. Agora sabemos que ele respirou uma quantidade bem maior do tal gás do que o Professor. E não me olhem com essa cara. Todo mundo aqui sabe que o padre era meu pai. E eu tenho espelho em casa...

– Partimos, então? – Julinho interrompeu. –

A Múmia

Chegamos ao local marcado no mapa após umas três horas de caminhada através da mata. O calor e os insetos eram um estorvo constante. Eu e Julinho, que éramos ainda jovens, levamos as ferramentas e, naturalmente, máscara contra gás. Abraão, bem mais velho que nós, leva as mochilas com comida e água para três dias. Era esse o tempo que pretendíamos gastar lá.

Cavamos monotonamente por um dia e meio. Ao fim deste intervalo, a pá de Julinho chocou-se com algo sólido. O som produzido pelo baque era quase musical, mas ainda assim, metálico. Entretanto, não se parecia com nenhum som que já tivéssemos ouvido antes. Entreolhamo-nos com um brilho afogueado no olhar. Senti meu coração bater como se quisesse se soltar do peito.

Julinho ergueu uma das mãos e apontou para a sua própria máscara. Entendemos a dica. Voltamos a escavar, agora com o objetivo de expor o invólucro. Ao fim do trabalho, um belíssimo cilindro metálico estava diante de nós. Para nossa surpresa, não houve emissão de gás. Sua superfície, embora suja de lama era polida e apresentava uma fenda no plano de simetria. Era por ali que começaríamos o trabalho de abertura.

Quando conseguimos abrí-lo, encontramos outro invólucro menor. Havia símbolos, como os do livro, gravados em toda a sua superfície. Nossas tentativas de tradução falharam. As combinações de sinais não resultavam em nenhuma palavra que fizesse sentido para nós.

– Vamos abrir a segunda casca também, ora bolas! Já chegamos até aqui – disse Abraão.

– O que será esse troço? - perguntei e olhei para os demais, que deram de ombros.

– Se a gente não abrir, nunca saberemos. - disse Julinho. – Mas isto é tão bem feito, que acho que devemos procurar uma maneira menos bruta de abrir. Não precisa ser na paulada. Na brutalidade, podemos até danificar o conteúdo.

Mas não teve jeito. Depois de muita análise sem nenhuma solução, conseguimos abrir na picareta, mesmo. O que encontramos foi a coisa mais fantástica que um homem já viu na face da Terra. Aquilo não era deste mundo. Um corpo inerte que não tinha semelhança com nenhuma forma de vida do nosso planeta.

A estrutura corporal, embora totalmente estranha para nós, não parecia ter sinais de deterioração. Apenas parecia ressecada. Repentinamente, Julinho saiu do estado de estupefação que se abateu sobre nós e disse: – *@... Guris! Isso é uma múmia. Uma múmia de outro mundo. Uma múmia cósmica...

Autópsia

Solicitamos a ajuda dos portugueses para transportar o invólucro e sua carga - que não lhes foi revelada - para o necrotério da cidade. Chegamos debaixo de uma tempestade. Tomamos banho lá mesmo e colocamos roupas apropriadas porque Julinho, trêmulo de excitação ia realizar a autópsia da múmia. O corpo era do tamanho de uma vez e meia o tamanho de um homem mediano. A medição mostrou que tinha dois metros e meio de altura. Tinha três pares de membros inferiores, no que se assemelhava a um inseto. Na parte superior do corpo, havia três pares de membros semelhantes a tentáculos terminados em mãos com três longos dedos.

Na cabeça, de formato triangular, havia duas longas fendas enviesadas que certamente eram onde se alojavam os olhos. Mais abaixo, uma abertura em V que seria a boca. Entretanto, não tínhamos a menor idéia do que seria a protuberância ovalada acima dos olhos, no meio da testa da criatura.

– Quase tudo nesse louva-a-deus gigante tem uma função que podemos entender... Menos esse caroço na testa. – disse Julinho, visivelmente intrigado. Eu e Abraão, ignorantes da ciência médica, estávamos ainda mais perdidos. Julinho olhou para o caroço e disse: Para que você serve...? – dito isto, tocou o o caro com o bisturi e para surpresa de todos nós, o bisturi grudou na protuberância. Julinho puxou-o de volta com alguma dificuldade e aproximou o instrumento novamente do caroço cerebral da múmia. A peça de aço agarrou-se novamente a o calombo.

– Isso é magnetismo orgânico. Há algumas bactérias que se comportam assim. Mas aqui é muito forte. _ disse o médico.

Os relâmpagos da tempestade ribombavam no ar. Em certo momento, a energia elétrica faltou e ficamos no escuro, à mercê da luz dos raios e relâmpagos. O gerador entrou automaticamente em funcionamento. Não demorou muito para o gerador parar e voltarmos à escuridão entremeada de clarões de raios.

Pensei estar tendo uma miragem quando vi a mão da criatura se mover. Mas não era ilusão. Os tentáculos começaram a se desenrolar e o mais espantoso: a protuberância globosa na testa da múmia – ou do que quer que fosse aquilo - começou a brilhar com uma luminosidade escarlate.

–Está vivo! – bradou Abraão. – Está viiiivo!!!

Então, diante de nossos olhos assombrados, o cadáver extraterrestre começou a se mover e a se levantar da pedra de mármore onde o depositamos. Tentamos correr, mas o caroço brilhante em sua testa brilhou mais intensamente enquanto nossos membros perderam força. Meu coração e minha respiração atingiram ritmos insuportáveis.

O louva-a-deus imenso estava de pé diante de nós no necrotério. Abraão tentou correr, mas as pernas fraquejaram e um tentáculo o alcançou. O tentáculo enrolou-se em seu corpo quebrando cada osso e finalmente deixando um cadáver murcho e decrépito no lugar do que antes era nosso amigo.

Enquanto isso, minha mente era inundada por suas lembranças. A criatura compartilhava sua mente comigo. Eu vi milhares iguais a ela. Estavam fugindo de uma grande fome em seu habitat. Suas criações estavam sendo aniquiladas por uma praga. Foi estarrecedor ver que essa criação, seu gado, era de humanos! O povo daquele ser consumia a energia de pessoas, como fez com Abraão. Nós éramos seu gado!

.De uma forma amoral, a criatura queria apenas se alimentar. Ela parecia satisfeita, já que eu e Julinho ainda estávamos vivos. Vi padre Jacinto em suas lembranças. A transferência de pensamento daquela criatura para ele deve ter sido o que lhe entregou a chave para os símbolos que cobriam o invólucro. O padre não suportou tamanha loucura e perdeu a fé e a sanidade. Havia outros mundos habitados por humanos como nós, mas que viviam como gado daqueles monstros. E eles queriam a Terra.

Em minha mente, ouvi o nome “Raalah”. Era o nome do lar da criatura. Muitos outros acordariam atendendo ao seu chamado. Indefesos e imobilizados, apenas pudemos olhar enquanto a criatura avançava para a saída do necrotério. O pesadelo da Humanidade apenas começava.

FIM

TEMA: IMIGRAÇÃO - NECROTÉRIO