Globo de neve - CLTS 09
Ricky ajeitou os seus óculos de aro dourado que eram um pouco maior que seu rosto e seguiu com passos firmes em direção a mansão. Tinha oito anos e era menor do que o esperado para a sua idade por causa disso teve um pouco de dificuldade para carregar a sua mala, pois a neve acumulada que ia até quase o seu joelho dificultava ainda mais a situação. Todavia, mesmo com essas dificuldades achava o lugar bonito com suas arvores que ostentavam cristais de gelo e também enigmático com o silêncio da floresta que cercava a mansão.
A carruagem que o trouxe já devia está longe. Mesmo que tenham se passado somente alguns minutos desde que o deixaram o veiculo já havia sumido misteriosamente. O condutor não gostava do local, tratou de deixar isso claro durante todo o caminho, tanto que nem quis lhe ajudar com a mala e o deixou alguns metros longe da porta que parecia ser a maior que ele havia visto na vida.
Suas memórias de quando era mais novo não eram muito claras, mas pelo que lembrava a mansão do seu avô era muito diferente daquela que estava diante dele, porém sabia que não tinha muitas escolhas. Ou entrava mesmo com a sua desconfiança ou ficava do lado de fora exposto ao frio e ao que quer que se escondesse na floresta. Também havia a opção de voltar para a sua casa, mas achava que de todos essa era a opção pior, preferia entrar na floresta do que enfrentar a estrada e depois a raiva da parte da sua família que deixou para trás.
Os flocos de neve se tornaram mais intensos e pareciam que tinham como objetivo cobrir toda a totalidade de seu cabelo loiro claro. Quando estava perto da porta, como que para completar o seu dia, a alça da sua mala se soltou. Jogou o acessório longe, em direção à floresta, e foi como se o vento protestasse mais alto. Sua mão ficou parada no ar, com um certo receio de bater. Sentia que algo não estava certo. A sua mãe havia avisado que ele viria então deviam está esperando por ele, devido a isso o normal seria que os empregados ou até mesmo o seu avô estivessem vindo abrir a porta ao ouvir as buzinas do carro. Será que ele estava com raiva dele assim como a sua mãe? A voz irritada da sua mãe ecoou na sua mente no exato momento em que a porta começou a se mover de forma ruidosa cortando as idéias pela metade como uma faca bem afiada.
Olhos curiosos o encaravam da porta. Pela vestimenta se tratava de um empregado. Estranhou muito ele não lhe convidar para entrar ou se oferecer para pegar a sua mala. Era como se não o reconhecesse ou não fizesse a mínima ideia de quem era ele.
-Meu avô deve está me esperando.- falou com a sua voz baixa.- Sou o neto dele Ricky, quer dizer Richard. - muitos de seus tios haviam nomeado os filhos como Richard também. Era uma forma de homenagear o seu avô e de assim quem sabe herdar uma parte maior da herança. O pequeno Ricky, apelido dado por um de seus irmãos, se perdia no mar de tantos Richards. Achava que por causa disso nem mesmo o seu avô lembrava dele- Já vim aqui uma vez, quando era mais novo. A minha mãe mandou uma carta há algumas semanas avisando que eu vinha.
A resposta que teve foi a porta se fechando antes que pudesse falar qualquer coisa que fosse. Muito inconformado com tudo isso se sentou no batente da porta e esperou. Não poderiam lhe deixar para fora o resto da tarde, principalmente naquele frio que devia aumentar. Ao seu lado colocou o que sobrou da sua mala. Começou a pensar novamente na sua mãe e na sua constante irritação. Depois que o pai do garoto havia ido embora ela direcionou toda raiva para Ricky. A gota d’ água foi a última brincadeira que acabou quebrando um globo de neve que ela gostava demais, o último presente dado pelo pai. Lembrança de um tempo que foi amada.
-Você vai ter o que merece. Pode começar a arrumar as suas malas. – disse a sua mãe enquanto limpava os cacos de vidro e neve artificial que se espalharam pelo chão. Depois de um tempo ela segurou o que sobrou do globo de neve e pareceu encarar alguma coisa. Olhava para o que sobrou da pequena construção que tinha dentro dele.
Ricky havia pensando que ela lhe mandaria para algum internato ou algo ainda mais cruel, mas no fim ela apenas disse que ele ia morar um tempo com o avô que vivia em uma mansão afastada da cidade.
Ouviu algumas vozes discutirem do outro lado da porta e isso o tirou de seus pensamentos. Ouviu uma das vozes perguntar como era mesmo o nome dele e outra falar o seu nome e algo a mais que não conseguiu entender direito. Logo após isso a porta se abriu.
-Está muito frio aí fora pode entrar se quiser, mas saiba que seu avô não está aqui.- disse a voz da empregada que parecia ser a chefe das outras.- Acho que deve ter ocorrido algum engano. Ninguém nunca vem aqui há anos.
Entrou e realmente achou que havia ocorrido algum engano, pois a casa não era nada parecida com a das suas lembranças a começar pelo excesso de pó. Como tinha tanto pó se pelo que reparou havia um time completo de empregados? O seu avô e principalmente a sua avó eram muito ligados a questão da organização e limpeza. Mas achou mais seguro por hora não fazer pergunta nenhuma no momento.
-Me acompanhe vou lhe mostrar onde poderá encontrar roupas quentes e descansar um pouco.- disse o empregado que abriu a porta para ele.
-Quem mora aqui? - não resistiu à fazer a pergunta no momento em que viu um corredor cheio de quartos, mas não havia nenhuma movimentação.
-Vou lhe dá um conselho, se quiser ficar mais tempo aqui é melhor não fazer muitas perguntas e falar somente quando for solicitado.Aqui está seu quarto.
Ricky agradeceu e correu para se esquentar na lareira que ficava no quarto. Um pequeno objeto chamou a sua atenção. Em cima de uma mesinha havia um belo globo de neve. Pegou o objeto nas mãos e ficou um longo tempo o admirando, naquele momento entendeu o porque da sua mãe tanto gostar do objeto que ele quebrou por acidente. Pensou que aquilo poderia consertar tudo, se levasse um novo globo de neve a sua mãe poderia lhe perdoar. Estava colocando o objeto junto com suas roupas quando uma mão firme segurou no seu pulso vindo não se sabe de onde:
-Se eu fosse você não faria isso.- disse um empregado que Ricky não entendia como havia entrado sem ser notado.- A Lady da mansão tem muito apresso por esses globos de neve. Certa vez acolhemos um viajante e ele levou um dos globos de neve com ele, digamos que isso deixou a lady bem triste e não é nada bom ela ficar triste.
-Como entrou aqui?- perguntou enquanto colocava o globo no lugar. Aqueles objetos pareciam ter a capacidade de sempre o meter em problemas.
-Apenas vim lhe avisar que o jantar será servido durante a noite, mas se estiver com fome posso providenciar algo.
-Agradeço, mas não estou com fome- ele estava era assustado, mas não disse nada. Observou em silêncio o empregado sair.
O silêncio dominava e depois de um tempo isso começou a deixa-lo inquieto. Resolveu dá uma olhada pela mansão mesmo que soubesse que não devia fazer isso, ainda mais depois do aviso do empregado. Mas ele não conseguia ficar quieto por muito tempo, sua mãe sempre reclamava disso.
O corredor seguia deserto. Seus passos ecoavam pela casa mesmo que tentasse a todo custo andar em silêncio. Foi seguindo pelo corredor sentido que era observado pelas pinturas Entrou por uma porta que encontrou entreaberta quase no fim do corredor.
O que viu o fez recuar alguns passos, pois a sua frente estava uma grande quantidade de globos de neve, todos perfeitamente organizados. Na organização impecável havia dois lugares vazios, provavelmente deviam ser onde estavam o globo que o viajante levou e o que estava no seu quarto. Mas o que mais o assustou não foi isso, foi o fato de em um dos globos ter a sua casa dentro. Não pode se conter e segurou o objeto curioso. Começou a se questionar se dentro dos outros globos não teriam todas as outras casas da cidade.
-Mesmo pequena reconheço a minha casa.- disse para si mesmo. Girando o objeto e vendo a neve cair suavemente sobre a construção em miniatura. Haviam pequenos pontos, pessoas, que se moviam ao redor de todas as construções presas dentro dos globos e isso não era a sua imaginação, pelo menos achava que não.
Estava tão distraído que não ouviu quando a porta se trancou atrás dele com uma batida forte que quase o faz derrubar o enfeite no chão.
As cortinas da janela que estavam abertas se fecharam de uma vez causando ainda mais medo no menino que ficou sem reação. Foi até a porta e notou que estava trancada. Tentou a abrir, porém não teve sucesso algum. Desistiu e pensou que talvez a janela fosse uma saída melhor, mesmo que fosse alto a neve que se acumulou poderia amortecer a sua queda.
Abriu a cortina com os dedos trêmulos e gritou ao ver que a neve estava manchada de vermelho por um rastro que vinha de dentro da floresta até a entrada da casa.Entre as árvores viu dois olhos que brilhavam entre as sombras lhe encarando. A raiva que a criatura parecia nutrir dele fez o brilho ficar ainda mais intenso. Fechou as cortinas rapidamente, pois sabia que o próximo sangue espalhado na neve poderia ser o seu. Abaixou-se e foi engatinhando para o mais longe possível, sempre fazendo o máximo de silêncio possível, planejava chegar até a porta, porém o barulho de garras que vinha do lado de fora e arranhavam a estrutura de madeira o fizeram mudar de ideia na hora. Escondeu-se embaixo da cama que tinha no quarto e fez o máximo que pode para que o seu nervosismo e o seu medo não o denunciassem.
Ouvia somente a sua respiração cada vez mais agitada e um zumbido que não conseguia identificar que vinha da direção dos globos de neve. Era como se fosse uma mistura de vários sons que conseguia ouvir por causa do silencio total.
A porta se abriu aos poucos.
-Calma, minha lady. –ouviu a voz de um dos empregados falar.- È apenas um garoto que por engano foi deixado na nossa porta. E estava muito frio aí fora, por isso o deixamos entrar para se aquecer.
-Acho que fui bem clara com a ordem que dei, mas vou repetir: Nada de visitantes por causa daquele incidente. Ainda mais nesse quarto com os meus preciosos globos de neve.- o garoto sentiu quando foi agarrado pela perna e puxado de debaixo da cama com um puxão forte. Fechou os olhos, pois teve medo do que poderia ver. Achou os olhos assustadores e se perguntou como seria o resto do rosto. – Mas não se preocupem ele não passa de um pequeno filhote e não estou mais com fome. – ela deu uma risada- Se perdeu de seus pais na estrada?
-Meu avô mora aqui perto, acho que o condutor deve ter se enganado de mansão. - falou Ricky abrindo os olhos e se surpreendendo com o que viu. A mulher a sua frente não tinha o rosto deformado ou monstruoso como imaginava, era bonita até, mas seus olhos eram assustadores por causa da mistura de sentimento que dançava neles e sua pele exibia manchas amareladas que eram notadas mesmo com a claridade reduzida.
-Acho que alguém deve ter lhe enganado, pois mesmo não conhecendo o seu avô tenho certeza que ele não mora por aqui. Nem ele e nem o avô de ninguém em um raio de quilômetros. – disse a mulher de forma misteriosa o largando no chão e pegando um dos globos de neve. Sacudiu o objeto e mostrou para ele- Mas sei onde estavam indo lhe deixar. Além da minha existe apenas mais uma mansão nessa área isolada.
Olhou intensamente, pois sentia que a resposta estava naquele globo. Fazia sentido, pois toda aquela situação começou por causa de um objeto como aquele, todavia o medo por um momento não lhe permitiu ver nada a não ser o que estava bem diante dos seus olhos, mas com o tempo sentiu que as coisas estavam girando e quando o último floco de neve falsa caiu ao desviar os olhos do globo se viu em um lugar desconhecido. A mulher e seus empregados haviam sumido.
Sua visão passeou pelo local a procura de algo que o ajudasse a compreender onde estava. Em sua mão ainda segurava o globo que agora mostrava uma réplica da mansão que estava instantes antes. Chacoalhou o objeto de forma compulsiva, mas nada ocorreu. Parecia que apenas nas mão da dona ele tivessem aquela capacidade de levar para outro lugar.
Ouvia um gotejar constante vindo de algum ponto daquele local. Se questionou obre o que era aquele som, como que para responder a sua perguntar um líquido quente escorreu nele vindo do teto. A gota escorreu pelo seu rosto seguindo em direção a sua roupa. Tinha uma ideia do que seria.
-Que não seja mais sangue, por favor.- disse de forma suplicante, mas ao passar os dedos pelo local teve a confirmação. Estava tão chocado com a sequencia de fatos que nem conseguiu gritar. Apenas olhou para o alto e constatou que haviam várias manchas de sangue no teto. Era como se houve um rio de sangue no andar de cima que gerava uma vazamento para o andar de baixo. A medida que sua visão se acostumava notava as poças de sangue seco no chão bem debaixo de seus pés, porém não foi isso que mais o assustou.
Haviam gaiolas penduradas um pouco mais afastadas. Pelo tamanho logo soube que elas não eram destinadas a prender pássaros. Aproximou-se com passos trêmulos. Sentiu que algo pegajoso grudou no seu pé quando estava somente há alguns passos de uma das gaiolas. Olhou para baixo e dessa vez realmente gritou, pois estava pisando no que parecia ser o que sobrou de algum órgão. Parecia que quando mais balançava o pé mais grudava e o cheiro do local ficava ainda mais forte. Lembrava muito o cheiro que ficava logo após abrirem a barriga de uma galinha para retirar as vísceras e limpar.
Começou a pensar que sua mãe realmente não gostava dele. As lágrimas começaram a se formar, primeiro apenas uma solitária e depois várias que molhavam todo o seu rosto e turvavam a sua visão. Sentiu tudo se distanciar.
-Acho que visitar o local foi um pouco demais para ele.- ouviu a voz de um dos empregados ao longe e soube que havia voltado para a mansão inicial. Sentiu um alivio tão grande que seria capaz de abraçar cada um dos empregados que abriram a porta para ele.
-Era para onde ele iria se o condutor não tivesse provavelmente tido pena dele e o largado perto da minha porta. Mas me diga garoto porque teria esse destino? Os seus pais não tem dinheiro e por isso lhe venderam para aquele lorde que mora lá ou foi algo diferente disso? Sei que ele sempre dá um jeito de conseguir carne nova para as suas diversões cruéis. Já tentei intervir, pois mesmo que não acredite gosto de crianças, mas não sou tão forte quanto pareço. - disse dessa vez notou um tom triste pela primeira vez.
-Minha mãe queria me punir por ter quebrado o globo de neve dela.
-Depois falam que o monstro sou eu. – disse com o toque de sarcasmo, depois mais calma.- Pode ficar aqui se quiser, mas fique o mais longe possível dos meus globos de neve e da floresta quando eu estiver lá dentro. Ou pode voltar para casa.
Ele já havia decidido ficar no momento em que viu o que tinha na outra mansão e que reparou o quanto sua mãe havia sido cruel com ele. Um silêncio se instalou logo após ele confirmar que queria ficar, mas era como se faltasse algo. Uma questão do passado que não foi resolvida. Olhava fixamente para o vão do globo de neve que faltava.O vento que uivava lhe sussurrava uma pergunta e a cada segundo lhe obrigava a perguntar:
-A senhora conheceu o meu pai?
-Porque pergunta isso?
-Porque ele deu um globo de neve de presente para a minha mãe. Pensei que poderia ser o que está faltando.
Ela lhe olhou por um momento como se fosse a primeira vez que o visse e pensou ter visto a sombra de um sorriso.
-Sim, conheci o seu pai e muito bem por sinal. Até que ele me deixou, mas isso é passado.
-Ele deixou a minha mãe também.- disse como uma forma de consolo, para que ela soubesse que não tinha sido a única. Ela lhe olhou longamente e sorriu como se aprovasse a sua intenção.
Depois desse momento seus dias seguiram normais, até que uma noite acordou de madrugada e a vela ao lado de sua cama estava apagada, talvez fosse o vento. Mas sentia que não estava só. Talvez fosse a lady na forma que ficava quando ia para floresta. Tinha quase certeza que ela não iria lhe machucar, mas ficou o mais quieto possível a medida que ouvia passos. Parecia ter alguma coisa no ar que lhe dava uma sonolência e amortecimento. Acordou no dia seguinte e notou manchas amarelas no seu braço que nem as que a lady tinha. Devia está querendo que ele ficasse que nem ela. Sorriu, talvez logo pudessem fazer uma visitinha para o malvado lorde.
Tema: Magia