A vingança nunca esquece o rumo
O mal é o que há de insano na memória.
Estacionei o carro e caminhei distraído pela Avenida. A multidão indo e vindo parecia girar na cabeça. Estava muito cansado. Esperava Cíntia para em seguida seguir até o estacionamento, subiríamos no carro e retornaríamos para o interior da cidade sombria. Era tudo o que francamente desejava. Planejava apenas retornar o mais rápido possível. Esperar é virtude tediosa. Caminhava enquanto Cíntia se divertia entre futilidades. Na frente da livraria tropecei no mendigo que esmolava. Quando recuperei o euilíbrio e me afastava depressa, ouvi as seguintes palavras: o senhor é Vicenzo. Com espanto percebi algo de familiar na voz do mendigo que acabara de pisotear.
- Como sabe meu nome?
Respondeu: se me der ouvidos digo-lhe que sei de tudo. De fato conhecia até os hábitos mais puerís de Cintia. Perdi a dignidade material e mantenho a detestável memória. Por mais que afunde lembra ainda de detalhes de todos os meus infortúnios. Fui criado na comarca. A Comarca é a fonte de todos os meus tormentos. Deu pausa para tossir dizendo: Perdoo-o por ter esbarrado em mim. Naturalmente uma alma tão simples acreditava viver despossuído sequer da própria sombra. Sorriu novamente o riso dos canalhas e tossiu.
Possuía informações sobre minha família. Número da casa onde morava. Se vivêssemos na era colonial saberia quantos escravos estariam vivendo na propriedade. O diálogo prosseguiu diante desta visibilidade inesperada encobrindo meu espanto. Aos poucos reuni os fragmentos da fisionomia descobrindo quem ele era e de qual família arruinada pertencia.
Olhei o relógio. Estava atrasado. O encontro com Cíntia Lídia deveria ser às dezessete horas e já passava das dezoito.
Preciso saber se está retornando da viagem. Respondi afirmativamente sem ajuizar o impacto. Devia mentir. A mentira que utilizamos para nos livrarmos dos infelizes. Devia ter desviado logo da sua presença. Vou parar antes em Curral das Flores, depois de meses retornarei. É assim que ocultamos o mundo em que vivemos. Solicitou com humildade a viagem gratuita.
Por que aceitei? Porque estava farto da mediocridade de Cíntia, da sua esculturalidade teatral, composta de superioridade cínica, do qual estava sempre disposta. Por que motivo recusaria carona ao conterrâneo mendigo? Cansado da ascendência de classe em que vivia, concordei.
Permiti para me divertir com a ideia de enfiá-la no carro em presença de alguém tão inusitado. Como reagiria? Respondi prontamente que o levaria para a cidade onde nasceu. Tão bom seria se Cíntia fosse limpa quanto as dores do mundo! Na estrada sonhei que a tarde era azul e a viagem sem fim.
Cíntia Flores jamais subiria no carro se soubesse. Acreditava na ocorrência da fome global graças a existência de obesos. Nos lugares-comuns de Cíntia, onde sempre extravaga oratória, a presença desde mendigo errante, quebraria o meu enfadamento de motorista forçado ao seu lado. Pude sorrir interiormente em vê-la próxima do coitado após gastar infinitas horas nos salões de estética. Desenhava cara de nojo ao falar nas pessoas que andavam de ônibus, para sua opinião de “porsche” genuinamente austríaco. Havia me subjugado à condição de motorista particular. Brindei mentalmente: tome garota este presente de final de ano. Assinado: Papai. Anexo: Para o eterno natal de sua vida num país inexistente.
Diante do noticiário sobre a grande depressão dos trabalhadores, enfraquecidos de representatividade, explanou durante a viagem confortavelmente: o crescimento de brasileiros na miséria é resultante da simples falta de vontade para vencer na vida. Espovasa a tese torta de que são vagabundos em terras de bananeira! Existia nessa alienação daninha apenas a riqueza festejante. Vamos fazer uma surpresa para querida noiva, quando lizer o sinal, esconda-se. Ela está vindo.
De relance pelo retrovisor notei a cor amarelada da pele, os dentes podres e os andrajos.
Cíntia entrou no automóvel com instintivo ar de desconfiança. Rodei alguns quilômetros e meu carona deve ter dormido porque apenas surgiu descansado qquilômetros depois na grande estrada reta. Cíntia gritou histericamente ao descobrir súbitamente a figura no banco detrás do veículo. Agarrou-se no meu braço colocando em risco a estabilidade do veículo. A morte passou de raspão junto ao caminhão carregado de gado. Peço-lhe calorosas desculpas pelo meu esquecimento. Desejo lhe apresentar um amigo a bordo.
Cíntia empalideceu como se acabasse de padecer uma condenação injusta demais e desproporcional fisicamente inerte diante da realidade fria. O carro deslizava a cento e oitenta por hora. Era impossível saltar. Extraída de adoráveis sonhos dourados, voltou a si como num banho gelado na Lagoa. Tão bom seria se compreendesse as dores do mundo. A tarde talvez fosse azul e a viagem eterna. Entretanto, é impossível percorrer a longa estrada sem transbordar algumas palavras livres de controle. Tossiu tisicamente enquanto ria fazendo em seguida um bereve comentário: há anos esquivo-me de voltar. Sempre evitei esse momento final. Rever a profunda cicatriz exige um último esforço das minhas enfraquecidas forças.
Para se perdoar Cíntia principiou a interrogar o indigente qual repórter idiota desejando extrair informações detalhadas de sobrevivência nas ruas. O senhor deve ter dificuldade até para beber água. Sentenciou ridiculamente. Admirei a altitude da expressão à guisa de resposta do homem: senhora, a mendicidade nem sempre retira a lucidez dos homens; apenas aniquila certa a ação da sua importância. A sentença sobreveio com clareza inesperada para suplantar a condição de desamparo. Assim como o rico num iate bebe um lindo vinho do Porto, dia e noite, bebo chuva. Somente a chuva me acalanta.
Era preciso lembrar minha noiva de que aquele sujeito havia sido um homem de classe. Por distração liguei o rádio e o locutor anunciava a prisão do Presidente da República. Continuou o mendigo: o tempo burguês acabou. Decerto subjuguei-me a tal estado por castigo duma irreverência. Neste ponto riu.
Observei pelo retrovisor algo estranho na cintura. Constatei ser mesmo um punhal preso pela faixa que servia de cinto. Sua percepção aguda percebeu. Notou que havia avistado pelo retrovisor a arma branca debaixo da roupa suja, para me acalmar revelou. Isto é para afugentar os cães da rua. Falava calmo. Seu todo era disperso entre palavras de rádio na paisagem que se desenrolava. Há duas décadas delineio retornar à terra meridional onde adquiri minha ruína. Tudo aos poucos desabou quando meu irmão foi assassinado. Único parente que lhe restava sobre à terra firme. No caso o irmão havia sido exterminado covardemente. Havia dor e mistério nas palavras desvairadas que lembravam um hotel generoso assaltado na saída pelo hóspede. Desabava a noite sem estrelas onde apenas os faróis iluminavam a infinita reta da estrada sem fim. Cortava o carro o negrume da noite quando desabou o temporal movido pela ventania.
Quem poderia imaginar ser assassinado pelo próprio advogado de defesa numa querela de gado? A empresa responsável pela aquisição do gado jamais liquidaria a dívida. Maquinações, cordelinhos e tramoias foram libadas por meios ocultos. Quando a empresa compradora descobriu que o vendedor havia procurado os serviços do advogado Benevides tomaram a decisão letal. Doutor Benevides seria o agente do crime e utilizaria tamanha crueldade que deveria ser julgado pela Corte de Haia. Benevides contratou facínoras que matariam a própria mãe por alguns trocados.
Após algumas ameaças para que retirasse a causa atearam-lhe fogo a casa. Para que abandonasse a cobrança do gado. Em seguida sequestrado veio sofreu horríveis torturas. Benevides fez questão de executar o cliente com tiros na cabeça. Benevides virou réu de uma farsa jurídica. Neste ponto da narrativa reboou o raio fazendo tremer a estrada tenebrosa, quando o mendigo revelou a ocultação do cadáver numa curva, perto da grande figueira. A investigação alcançou os culpados de tamanha atrocidade. Julgado e condenado o advogado assassino manteve-se inexplicavelmente livre. Impune no Fórum na condição humana de condenado e livre.
À medida que chegava próximo ao destino relembrava o crime que havia provocado forte comoção social. Aos poucos aquela fisionomia começou a ter algo de familiar também na minha vida. Lembrei perfeitamente. Este homem havia perdido tudo o que possuía graças ao defensor assassino que continuava atuando no Fórum. Cíntia permanecia petrificada por uma lembrança. Havia dormido com o pusilânime sendo conhecedora de detalhes sobre o episódio. Permaneceu em silêncio o resto do trajeto.
Quando chegamos abandonei fiz planos de abandonar o desçraçado debaixo da marquise mais próxima. Onde o velho mendigo haveria de ficar sem ninguém quando alcançássemos a cidade modificada pelo tempo?
Aos poucos a cólera dominou Cíntia. À queima-roupa indagou ao passageiro onde ficaria na Comarca. Respondeu laconicamente: no Fórum.
Quando descesse do carro ouviria, deselegantemente, as reclamações ofendidas da futua esposa. Calculava de antemão as amigas zombeteiras comentando a viagem ao lado da desgraçada criatura. Haveriam de se divertir com as desgraças da vida.
Já amanhecia quando desceu do carro para ocupar a estrutura da primeira página do jornal. Cíntia sem saber do ocorrido ironizou: tão acostumado a se cobrir com jornais acabou impresso neles. Debochou sem saber do fato horripilante.
Duraram apenas alguns dias para encontrar o que procurou durante sete mil e trezentos dias. Havia localizado o homicida do irmão no Fórum. A barba, os dentes podres, os andrajos impediram o mendigo de ser reconhecido pelo assassino do irmão. Benevides passara várias vezes por ele, sem a mais piedosa reverência; aquela que damos por educação aos infelizes. Alguns passos adiante Benevides ouviu a voz do mendigo: O senhor é o doutor Benevides? O bem-sucedido homicida parou surpreso e petulante perguntou: como sabes meu nome? Sim é claro que sou o doutor Benevides. Alguém por acaso recomendou meus serviços? Saiba que jamais trabalho de graça, zombou, escarnecendo saborosamente do fracasso alheio. Alguém por acaso recomendou? Foi Antero. Este nome proveniente dos mortos perturbou o advogado homicida tirando dele o tempo necessário para escapar da primeira facada mortal. Encontrou-se detido pela poderosa força da consciência do bem sobre o mal que havia causado. Punhal que há vinte anos guardara como o único pertence da lembrança do irmão assassinado.
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