Olhos Negros

I

As trevas, frias e silenciosas, abraçam a cidade. Relâmpagos, trovões, um defeito no carro e um blecaute deixam um homem impotente no banco do carona. Decide esperar a chuva diminuir para buscar ajuda. Não tem pressa: melhor esse purgatório do que o inferno da sua casa, com uma anta, uma cobra e três belas sangue-sugas para atormentá-lo.

A chuva começa a diminuir sua intensidade, até parar. Suspira, se prepara para sair quando escuta um uivado. É o suficiente para decidir esperar o apagão acabar. Alguém surge na janela, começa a bater no vidro fumê. Ao longe, um apito grave, que faz a pessoa se afastar do carro. O homem dentro dele suspira. Uma pedra atravessa a janela e duas mãos peludas tentam puxá-lo para fora.

Uma luz intensa ilumina o veículo quando a cabeça do homem dentro dele passa pela janela. Ele se corta um pouco, mas consegue se desvencilhar da criatura lá fora. Ela não desiste e com um puxão arranca a porta do carro, agarra suas pernas e o puxa; no instante seguinte, um trem esmaga o veículo.

- Você salvou a minha vida! - Ele grita, o ser de capuz não responde. As luzes se acendem, seu rosto é iluminado. Ele tem a cabeça de um rottweiler, preta com marcas marrom avermelhadas, e uma grande boca salivante cheia de dentes. Os olhares se penetram por alguns segundos.

Desconfio que teria sido melhor ter sido morto pelo trem...

II

Flash. Adriano teve algum tipo de lapso de memória. Sua última lembrança é de estar passeando com sua filha Andrea. Está em um corredor, no que parece uma prisão abandonada. A única iluminação são os buracos no teto alto, por onde a luz da lua pode entrar e iluminar o suficiente para que ele dê alguns passos sem tropeçar.

Já esteve em uma prisão? Espero que não. Prisões são um dos lugares mais degradantes que se pode visitar. Imagine as paredes morfadas com algumas manchas de sangue, e marcas de unha. Buracos, por onde ratos passam de um cômodo ao outro. Há outros buracos também, por onde a luz não entra e por onde ratos não passam, que têm o tamanho exato para que alguém, talvez uma criança, te observe.

Ele vasculha o local, e chama por sua filha. Está frio, as goteiras batem no chão. Sente-se como se estivesse debaixo da terra. As celas são tão escuras que não seria possível ver nem uma silhueta se estivesse alguém lá dentro. Alguma coisa, talvez um vaso de barro, cai vinte metros atrás dele. Você iria na direção do barulho ou correria para bem longe dele? Ele decide seguir o som. A luz de um raio lá fora atravessa um buraco no teto e ilumina o cômodo onde ele está. Como nos filmes, no instante seguinte começa a chover, caindo água pelo teto.

Ao dobrar uma esquina, dá de cara com uma armadura de ferro. O susto faz suas pupilas e brônquios dilatarem, os pelos se excitam e a pressão aumenta. Mas é só uma armadura mesmo. Ela não está presa à parede, mas de pé no meio do caminho. Examina-a por alguns segundos e prossegue.

Nesse corredor em especial não há celas, apenas armaduras. As outras estão presas à parede, o que o obriga a olhar de novo para a que não está; e ela continua na mesma posição. No fim do corredor ele vê uma trilha de sangue. Fresco, e sendo dissolvido pela água que cai dos buracos. Decide seguir essa trilha: cada um tem a estrada de tijolos amarelos que merece.

Chega a uma velha porta, provavelmente de metal, que range alto quando aberta. Nesse ponto a prisão fica mais parecida com as masmorras de um castelo. Não há celas e o lugar é iluminado por tochas. Há vários lances de escada para baixo e quanto mais ele desce, mais frio fica. Continua explorando. Se sua filha estiver naquele lugar, precisa encontrá-la.

A terra treme. De pequenos buracos no chão exala uma estranha fumaça mal-cheirosa, que toma conta de alguns setores. Na verdade, ele não sabe se o solo está tremendo ou se são suas pernas. Conforme avança as tochas vão ficando mais distantes umas das outras, deixando vários trechos em escuridão completa; decide pegar uma delas.

Uma brisa traz com ela um cheiro estranho. Um odor desagradável, talvez... Não, com certeza é sangue. Respira fundo, mas com esforço. Chega a um longo corredor perpendicular. Pensa por um instante se vai para direita ou esquerda, e nota que, à esquerda, tem alguma coisa lá. Nessa direção que Adriano vai. Um vulto se afasta, dobra a esquina. Ele o segue, com a tocha na mão, que quase se apaga. Dá em outro corredor. Nem nota que o mofo nas paredes formam rostos agonizantes. O vulto dobra a esquina no fim do corredor, segue-o. Esse pique-esconde continua por algum tempo, com o vulto sempre distante o suficiente para Adriano não ver quem é e perto o bastante para saber que tem algo ali.

Enfim vê algo diferente. Ao dobrar uma esquina, três portas fechadas. Não sabe qual entrar e escolhe qualquer uma. Mais corredores, só que agora mais estreitos, seus ombros quase encostam nas paredes. Todas as tochas se apagam de repente e ele é engolido novamente pelas trevas. Toca a parede mais próxima, suja sua mão. Tateando, avança alguns metros. Imagine o frio, a total escuridão que parece viva.

As tochas se acendem de novo. Ele está agora no cruzamento de dois corredores bem longos, repletos de portas de metal reforçado. Um pouco enferrujado, mas ainda bem fortes. Como toda masmorra essa é uma prisão e esses longos corredores são as celas. Ele para e avalia a situação. Talvez não seria melhor voltar? Mas e se a saída for por ali mesmo? O que está acontecendo? Por um momento se pergunta se não é um pesadelo.

- Corre! - Adriano ouve uma voz infantil gritar. - Corre, ele está atrás de você!

Prontamente o homem obedeceu, correndo sem saber para onde.

- Ele te achou! - Não tem certeza se foi outra criança que gritou ou a mesma, mas não se importa. - Não olhe para trás! Não olhe para trás!

- Não tenha medo! - Grita outra voz infantil, e agora Adriano começa a pensar se não tem algo pregando uma peça nele. Mas o medo não o deixa diminuir o passo. Tanto é que ele dá de cara com uma parede, o fim do corredor. Há uma porta na sua frente, aberta. Talvez seja mais uma cela que, vazia ou não, o deixaria cercado por seja lá o que estiver atrás dele. Talvez outro corredor. Só o que dá para saber nos poucos instantes que ele tem para pensar é que lá dentro é completamente escuro.

III

Adriano acorda aliviado na sua cama. As estrelas brilhando no céu. Ainda está sonolento, mas foi tudo um sonho. Respira aliviado, o terror acabou, e... Espera, estrelas brilhando no céu? Ele... Só então percebe que não está na sua cama, mas em uma placa de mármore. Os seus pés e as suas mãos presos com pesadas correntes. Está no meio de uma floresta escura e densa.

Tenta lembrar do que aconteceu, sua mente ainda confusa. Estava passeando com sua filha Andrea, nascida de uma traição, no domingo à tarde. Depois ele a levou para casa e tudo correu normalmente até a terça-feira. Foi na terça que aconteceu aquele blecaute, o quase atropelamento pelo trem e o aparecimento do homem de cabeça de cachorro. Foi quando olhou em seus olhos que teve aquele estranho pesadelo, provavelmente um poder sobrenatural da criatura.

Crianças com olhos totalmente negros surgem e se reúnem à sua volta. Salivando, com facas afiadas nas mãos. Ele é o bolo de chocolate. Grita, mas no fundo sabe que é inútil. Elas olham para algum canto escuro, de onde logo vem um curto latido. É o sinal, como se alguém estivesse dizendo que o jantar está serviço. Elas se lançam sobre ele e começam a cortá-lo e devorá-lo vivo. Em meio à dor excruciante, ele demora vários minutos a morrer, mas não pôde ver o banquete porque uma menina enfiou garfos em seus olhos e os arrancou. Morreu com a plena certeza de que a menina era Andrea.