Noturnos: Interlúdio

(Leia antes: Noturnos: os assasinatos, link nos comentários)

A trama da vida tece momentos que pregam peças em nossa alma, em nossa memória. O tempo passa e as peças tornam-se severas, as prendas a serem pagas doem como partes arrancadas do corpo vivo. Passam rápido os dias e a vida os usa para nos ferir com pequenos cortes, cesuras que pelo passar veloz dos dias não seram tratadas, elas infeccionaram e podem tornar-se expostas e ferozes minando pus sobre toda a existência, ou cicatrizarem e se internalizarem forjando barreiras intransponíveis na conveniência de quem sofre. O tempo passa e as feridas se amontoam, a consciência rude, embrutecida, passa a enxergar vida como um mar de desconsolo, um limbo, onde os sonhos só são, para serem perdidos. As pessoas tornam-se só escapes, tanto de prazer quanto de dor. O todo, agora sem sentido, segue. As vidas somente almas perambulando, inertes, sofrendo. Até os momentos de alegria tornam-se soturnos com o passar dos anos, raros, eles geralmente são só memória, e memória para o sub consciente usar em comparações com o cotidiano ediondo, escrachando para este humilde narrador, que a vida é só um mar de sofrimento, tocado por sutis e ausentes brisas de alegria.

Há ainda aqueles que foram deixados de lado pela figura divina, e que além das feridas da vida, são submetidos a crueldade de outras pessoas, que na intenção de suprir suas necessidades reprimem as dos outros, e em casos como o de Olavo, até os torturam. Para esses seres, o mundo se apresentou de uma maneira estremamente cruel, seus modos e visão do mundo se construiram de formas diferentes, o certo tem outro conceito, o bonito é outra coisa, e as formas de expressão de sentimentos as vezes se torna extremas.

Não são claros os motivos das pessoas que resolvem matar. E mesmo não claros são condenaveis socialmente os motivos pelos quais as pessoas matam. Não é fácil saber que uma pessoa próxima a você, matou. E é intrigante saber os motivos e como, ela matou. Intrigante também é observar a mudança das crenças, dos gostos, das maneiras dos praticantes desse hobbie maligno. Olavo depois de ter exterminado a inocente família, só conseguia pensar em sair pela noite de novo, e dessa vez sem critério algum cravar um machado no primeiro crânio que encontrasse.

Os corpos só foram encontrados quando o fedor de cadaverina incomodou os vizinhos. Os dias passavam, o fedor aumentava, e os vizinhos acharam estranho o movimento na casa ter cessado de uma hora para a outra. O repentino sumisso ligado ao fedor, deram corda na imaginação da gentalha, dias depois a polícia encontrou os corpos já em um inicial estado de deposição. A carnificina é claro foi noticiada e quando viu no jornal a repercussão de seu feito, Olavo, se não tivesse na sala com a mãe, teria comemorado e gargalhado bem alto. Alguém sofreu de forma gratuita, assim como ele havia sofrido a vida inteira. Mas haviam sofrido mesmo? O pensamento tortuoso seguiu, e olhando a reportagem Olavo achou que não fora suficiente, eles haviam só morrido rápido. Ele havia tomado o cuidado de que tudo fosse rápido. Cigarros foram apagados em seu corpo durante toda sua infância, a fome apertou seu estômagos por diversas noites, e o inalcançável desejo de ter um sapato sem furos torturou sua mente incontáveis dias de aula. Não havia expressado seu ódio de forma condizente ao seu sofrimento. Não havia retornado ao mundo o que em sua cabeça era sua missão retornar.

Às semanas seguiram, e ele as usou para planejar seu próximo ato, seria dessa vez atroz, cruel como um vingador tirano desses jogos de zumbis. Sua consciência construída com base em violência doméstica, cometida pelos pais, se desenvolveu para achar que a expressão mais forte de amor que se pode demonstrar é torturando com ódio. A coragem adquiririda com os primeiros assasinatos deram a ele subsídio para expressar com fervor sua forma de amar. No auge de sua adolescência os pais se separam, teve aí um fim seu martírio juvenil, restavam-lhe só três dedos na mão esquerda, mas a vida a partir dessa época o castigou menos. Ele passou a trabalhar e as coisas melhoraram um pouco, sua cabeça distraída com os novos afazeres não contemplava ainda pensamentos de morte, mas a forma com que via o mundo era de alguém que durante sua infância só teve acesso a parte podre da sociedade, logo ele desencantou do serviço, achando errado que pessoas julgassem as outras piores só por sua posição na empresa. Não queria aquele convívio podre. Olavo então viu nos jogos um refúgio, as vezes por dias não saia do quarto, jogando o que a mãe julgava herege. Seus preferido claro, eram os de tiros. Planejou minuciosamente o próximo ataque, precisaria até de uma casa mais afastada da cidade, e talvez usa-se algum critério nas próximas mortes. Sua mãe, Luíza, o observava, e como um ser inescrupuloso que não tiverá pena em deixar Olavo dois, três dias sem comer quando criança, conseguia notar que algo ali crescia, e a energia que o rapaz emanava as vezes a causava arrepios. Passou a temer por sua própria vida.