Laura estava preocupada e quem a conhecia bem já notara isso. Já ha algum tempo ela andava acordando de mau humor e com ares de cansada. Isso era estranho porquanto ela sempre fora uma pessoa cheia de energia e extremamente bem humorada. Aliás, não eram poucos que diziam que sua alegria era contagiante e sua presença em qualquer grupo, um motivo de satisfação e entusiasmo. Mas ultimamente, parecia que a pilha que a movia estava acabando e ela estava operando com as últimas fagulhas de energia que ainda restavam nela.
Algumas mudanças em seu comportamento também tinham sido notadas pelos amigos mais próximos. Ela sempre fora muito feminina. Na postura corporal, nos gestos, no modo de andar, de vestir, de falar, de se maquiar, tudo nela sempre denotava a presença de uma mulher na mais plena assunção da sua feminilidade. Mas ultimamente ela tinha assumido algumas posturas que não pareciam ser do seu padrão. Um certo viés de competição, um quê de autoritarismo e uma vontade de mandar, que nela não combinava com a pessoa meiga, cooperativa e educada que sempre foi. Além disso, um descuido na forma de se vestir e um ar de masculinidade, a par de uma linguagem um tanto viril, mais própria de um executivo responsável por uma grande empresa do que de uma psicóloga infantil, fora observada pelos seus amigos, o que já vinha, desde algum tempo, causando estranheza e constrangimento em todos eles.
 
Laura é uma psicóloga que trabalha com adolescentes, cujas histórias de vida são muito complicadas. São garotos e garotas, geralmente oriundos de famílias desestruturadas, onde a única referência é a violência, o descaso, a bebida, o desamor, o abandono, e não raramente, o crime. Distúrbios de personalidade são constantes entre os seus jovens pacientes. Ela sabe que, em muitos casos, a mente desses meninos e meninas acaba desenvolvendo escudos de proteção, na forma de fantasias, na qual elas fogem da realidade e passam a viver em mundos completamente diferentes daqueles em que estão. Não raras vezes desenvolvem múltiplas personalidades, ou até negam a si mesmas, se tornando outra pessoa, diferente daquela que elas são na realidade. É uma reação natural, que quando leva o indivíduo a lutar para superar os obstáculos e melhorar suas condições de vida, acaba sendo uma coisa boa, mas nem sempre é assim. Na maior parte das vezes, o indivíduo é guiado para uma situação de alienabilidade, onde sua personalidade se refugia num papel completamente alheio à sua própria realidade.

Sendo uma profissional do ramo Laura começou a pesquisar as razões dessa estranha mudança de comportamento que ela notou estar acontecendo consigo mesma. Chegou a conclusão que seus problemas tinham a ver com os sonhos que têm tido ultimamente.
Eram sonhos muitos estranhos em que ela se via como sendo outra pessoa, vivendo em outro país, falando outra língua. E o mais estranho disso tudo, nesses sonhos ela era um homem! 
 Esses sonhos eram freqüentes e se repetiam continuamente, de sorte que ela tinha certeza de que não eram apenas relações aleatórias que a sua mente estabelecia com os problemas do dia a dia, transformando em imagens visuais as informações desconexas que o seu inconsciente captava nas interações com os seus complicados pacientes.
Laura sabia que a nossa mente consciente trabalha com um resumo muito sucinto das informações que recebe. O que ela retém como retrato da realidade é um mapa muito incompleto da totalidade da informação recebida. Ela sabia que as pessoas, mesmo quando querem falar a verdade, e se esforçam para fazer isso, nunca informam a verdadeira realidade de um fato que viram, ouviram ou sentiram, porque nem sempre têm linguagem suficiente para retratar o que se passa dentro da sua mente. Laura aprendeu isso no seu trabalho com adolescentes e crianças. "Dê um lápis e uma folha de papel em branco para uma criança", dizia ela, "e você terá um retrato mais exato do que se passa na mente dela do que se tentar extrair esses conteúdos através da linguagem verbal."
A mesma coisa acontece com adolescentes. Dê-lhes uma forma de expressão qualquer, um jogo, uma teatralização, uma dança, uma canção, e a mente dele se solta muito mais do que em expressões verbais. Essa, aliás, era uma coisa que Laura sempre criticava nos professores, especialmente aqueles ligados à comunicação. Era absurdo, pensava ela, querer exigir da juventude uma capacidade de expressão verbal eficiente sem dar a ela as necessárias ferramentas para isso. Essas ferramentas era o desenvolvimento de uma linguagem rica, não só de expressões verbais, que estão mais ligadas aos sentidos da audição, mas também de expressões visuais, e principalmente cinestésicas, que estão ligadas á sensibilidade corporal, propriamente dita. Nós só conseguimos expressar aquilo que a nossa capacidade de linguagem proporciona. Se não temos linguagem suficiente para isso, a nossa mente precisa achar outra forma de fazê-lo. É aí que se desenvolvem as  fobias, os maneirismos, os comportamentos aberrantes, ou então ela  descarrega tudo isso em sonhos destituídos de qualquer sentido.
Pessoas frias, indiferentes, insensíveis são pessoas cuja linguagem cinestésica é muito pobre, ou que, por um motivo qualquer, a bloqueou. Na vida cotidiana parece que são autênticas máquinas, mas quando estão sozinhas desabam sobre si mesmas. Ou então sua mente as leva a viver outra vida quando estão dormindo.
 
Laura andava preocupada com seus sonhos porque sabia que a nossa atividade mental se processa, em grande parte, no inconsciente, e não na consciência. Quer dizer, quando estamos acordados, raciocinando, pensando ordenadamente, isso representa uma parcela muito ínfima dos nossos processos mentais. O pensamento final é um produto que passou por um longo processo de produção. Se percorrêssemos no sentido inverso a longa cadeia de relações que a nossa mente estabelece até fazer surgir, na tela interna dos nossos olhos, ou na modulação dos nossos órgãos fonadores, ou ainda na mímica das nossas expressões corporais, nos surpreenderíamos em ver que espécie de matéria prima ela usou para confeccionar esse produto. Então saberíamos como é que um artista como Micheangelo, por exemplo, foi capaz de pegar um bloco de pedra e tranformá-lo num ser quase humano.
Laura sonhava constantemente que ela era um executivo á testa de uma grande empresa. Sua vida como dirigente dessa companhia não era nada fácil. Trabalhava cerca de quatorze horas por dia e não raras vezes tinha que levar trabalho para casa. Lembrava-se vagamente que seu duplo, no sono, era casado, mas parecia que tinha tão pouco tempo para a família, pois ela não conseguia se lembrar do rosto da mulher e dos filhos que ele tinha. Sabia que ele tinha filhos porque a referência a eles em sua mente, quando acordava, era muito forte. Ele falava dos filhos e da esposa, mas nunca os mostrava.
 
Já ela, na vida real, era solteira. Tivera alguns relacionamentos mais sérios, até já morara algum tempo com um dos seus namorados, mas a relação não progrediu. Nunca se sentira segura o suficiente para oficializar uma relação, por isso estranhava que em seus sonhos ela fosse uma pessoa casada, embora esse casamento parecesse ser uma coisa secundária em sua vida, de tal forma que nenhuma imagem dele conseguia ser recuperada pela manhã, quando acordava.
Laura pensava, com algum sarcasmo, que gostaria de pelo menos ver o rosto da sua esposa em sonhos. Como seria ela? Seria parecida com ela? Seria bonita? Qual o grau do seu relacionamento com ela? Como seria a sua vida sexual com ela? E sua vida com os filhos? Que tipo de relação manteria com eles? Seria um paizão amoroso como ela gostaria de ter tido, ou um pai ausente como foi o dela?
Embora já até tivesse procurado auxílio profissional, Laura continuava a ter esses sonhos cada vez mais frequentemente. E para dizer a verdade, já se acostumara tanto com eles, que esses sonhos passaram a fazer parte da vida dela. Já não os via mais como um problema, mas como uma forma de pesquisar o seu inconsciente. Por isso ia para a cama regularmente ás dez horas da noite e mantinha ao lado um caderninho de notas. Pela manhã anotava tudo de que se lembrava ter feito no sonho. Já descobrira que seu “outro eu” era um executivo australiano que morava em Sidney, na Austrália,comandava uma empresa que fabricava equipamento hospitalar, era casado, tinha dois filhos, jogava cricket e adorava mergulhar.
A verdade é que, depois de algum tempo, Laura começou a gostar dessa vida dupla que ela vivia em seus sonhos. Gostava de ser George Dellaney, o executivo australiano que comandava uma empresa produtora de equipamentos hospitalares, tinha uma família, que embora ela nunca tenha visto os rostos deles (ou pelo menos não se lembrava, pois esse era um bloqueio que ela ainda não conseguira romper), jogava cricket e gostava de praticar mergulho. Sentiu-se tão integrada no personagem que procurou saber tudo sobre esse esporte esquisito que os australianos tanto gostam. Já sabia o que era um batsman, uma wicket, runs, over, etc, e até conseguia acompanhar um game inteiro e entender o que estava acontecendo. Até se matriculou numa escola de mergulho para ver se conseguia sentir, na pele de Laura, aquelas sensações que sentia como George, quando estava mergulhando. Falar inglês ela já falava razoavelmente. Mas agora percebera que estava muito mais fluente e até já falava com um acentuado sotaque australiano.
 
Sé havia um problema em tudo isso. O cansaço. Laura acordava mais cansada do seu sono do que quando trabalhava o dia inteiro. Viver a vida de George não era nada fácil. O homem trabalhava quatorze horas por dia e vivia num estresse contínuo. E como todo australiano que se preza, ele gostava muito de uma bebida.Laura acordava todo dia como se tivesse tomado um pileque na noite anterior. No entanto ela nem bebia. E uísque era coisa que odiava.
Ela se sentia cada dia mais cansada. Quando terminava seu trabalho na clínica onde trabalhava, ela corria logo para casa para enfiar-se na cama e passar a viver como George. Sentia extrema necessidade de viver essa vida dupla, por isso passou a ir para a cama cada dia mais cedo, e a sua vida como Laura se resumia agora às horas que passava na clínica. Os amigos dela não a viam mais fora do trabalho. E no trabalho, o que viam era uma pálida sombra daquela que fora um dia a moça mais bonita da clínica e a mais elegante, faceira, cheia de energia e bem humorada. Agora era uma criatura desleixada, preguiçosa, esquecida e mal humorada. E parecia que também andava bebendo muito. Era natural que ninguém quissesse mais a companhia dela. Por isso passou a viver uma vida reclusa e misteriosa, que a todos causava estranheza.
E ela parecia se preocupar muito pouco com isso. Na verdade ela só queria mesmo era dormir. Já há algum tempo andava recorrendo a soníferos. Em doses cada vez maiores, ela os tomava regularmente, de tal maneira que os colegas andavam muito preocupados com sua saúde. A impressão que eles tinham é que Laura estava se matando aos poucos. Mas quando alguém tentava puxar esse assunto, ela se fechava e dizia que estava muito feliz e não queria saber de ninguém se metendo na vida dela.
 
Por isso ninguém estranhou a notícia de que Laura fora encontrada morta em seu apartamento alguns meses depois. Uma superdose de soníferos, acompanhado de muita bebida, havia sido a causa do colapso cardíaco que a matou.  Algumas garrafas de uísque, vazias, foram encontradas no apartamento dela. Sabiam que esse seria um desfecho provável, dado á vida que ela estava levando. A única coisa que eles lamentavam, de verdade, era o fato de ela ter apenas trinta anos.
Laura foi enterrada no cemitério da Vila Esperança ás dez horas de um sábado muito chuvoso. Cerca de vinte pessoas acompanharam o caixão até o túmulo onde seu corpo foi encerrado.
 
Em Sidney, Austrália, eram cerca de onze horas de um domingo muito ensolarado. Mais de quinhentas pessoas acompanharam o corpo do executivo George Dellaney, que foi sepultado no Walker’s Ridge Cemetery, morto na noite anterior por um enfarto no miocárdio. Ele tinha cerca de trinta e cinco anos. Alguns amigos diziam que ultimamente ele andava muito esquisito. Dizia que sonhava constantemente ser uma moça brasileira que trabalhava com crianças. Era uma coisa tão real esses sonhos que ele até começou a falar português, assim de repente. Dizem que ele tentou fazer um tratamento psiquiátrico, pois achava que estava sofrendo de algum distúrbio de personalidade. Ultimamente andava sonolento, esquecido, mal humorado e descuidado com sua aparência. Era muito esquisito isso, pois ele sempre fora um homem elegante e muito vaidoso. Seus amigos suspeitavam que ele andava tomando muito remédio para dormir. E como gostava muito de uísque, essa combinação acabou lhe sendo fatal. Houve até quem dissesse que ele era um homossexual enrustido, que não tinha coragem de assumir a sua feminilidade. Por isso, em seus  sonhos, ele sonhava ser uma moça chamada Laura, brasileira, solteira, que morava em São Paulo e trabalhava como psicóloga infantil em uma clínica.

Disseram a mesma coisa de Laura. Que ela talvez fosse lésbica e não gostasse da sua condição de mulher. Por isso sonhava ser um homem e até assumira uma postura masculina.
Que os dois descansem em paz. Oxalá, na próxima encarnação, se isso existir mesmo, eles possam nascer com os corpos que seus inconscientes desejam. Assim não precisarão viver e morrer nos sonhos de outra pessoa
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