Do sétimo andar

Ao abrir a galeria de fotos do celular, um calafrio percorreu a espinha de Flávia e ela o deixou cair. Havia cinco anos que morava só, há dois não namorava ninguém, a uns três meses não recebia uma visita, mesmo assim, havia uma foto sua dormindo em seu celular. Reacalmados os nervos, foi direto as informações da foto, havia sido tirada naquela mesma noite. Paralisou, não tinha como isso acontecer. Alguém entrou em minha casa, em meu quarto, podia ter me matado, ted não latiu, eu não vi nada, como alguém entrou? Pensava. Morava no sétimo andar de um prédio, lembrava de ter trancado a porta, podia muito bem ter sido algum vizinho. Ela não mantinha intimidades com nenhum vizinho. Apagou a foto, tomou seu café e saiu para o trabalho. Não conseguiu esquecer. Também não disse a ninguém. Quando chegou em casa se sentia bem, era seu abrigo, seu refúgio, conquistará aquele apartamento com muito esforço, sua vida estava lá e não era uma vida turbulenta. Não tinha com que se preocupar. Jantou sozinha, como de costume, tomou banho, e antes de deitar-se trancou as portas e fechou e travou todas as janelas. Deitou, dez minutos depois levantou e conferiu todas as trancas, até a do banheiro. De novo deitada resolveu de vez que aquilo era besteira.

A noite ia embora pela madrugada e Flávia rolava na cama sem conseguir dormir. Hora ou outra olhava o celular, que deixava num criado mudo ao lado da cama. A escuridão densa, quase palpável, instigava seus instintos, a audição captava o mínimo ruído que cortasse o breu do quarto, porém, não havia nada. Pegou o celular, acendeu a lanterna, e procurou o cigarro e o isqueiro. Com eles em mãos deitou na cama de barriga para cima, colocou um na boca. Como estava tudo fechado na primeira riscada a chama acendeu, revelando a um palmo de seu nariz, outro nariz, branco e sem narinas, compondo um rosto seco de olhos brancos frios, e estranhamente brilhantes a olhando de cima. A chama apagou num átimo, e a escuridão se fez presente e parecia agora lhe esmagar. Acendo o celular? Mas na claridade havia alguém, e a solidão da vida que levava se fez cruel e impiedosa, não tinha a quem gritar, não tinha a quem recorrer, não tinha ninguém ali, só algo que ainda não lhe fizera mal, mas que apareceu no meio da noite e tornava o quarto silencioso e vazio, sempre aconchegante, numa câmara de tortura.

O que é isso, meu deus o que é isso? Vou para sala, levanto correndo, saio e vou lá para o sofá, pensava enquanto chorava baixo. Que isso Deus? Eu tô só aqui, eu tô sozinha, se não for nada Deus manda um sinal, me mostra que é só paranoia minha. A mão fria e pétrea apertou seu braço com uma força sob humana. Ela levantou e correu para sala. Pupilas dilatadas, respiração ofegante, coração aos solavancos, uma marca rocha com formato de quatro dedos longos em um dos braços e o celular na mão. Sentada abraçada as pernas no canto do sofá da sala escura, Flávia nunca havia sentido tanto medo. A alguns meses seu vizinho de andar (casado) dera em cima dela, foi rude como tinha de ser, e depois só o dedicou olhares de escárnio. Nem cogitou em pedir-lhe ajuda. Os vizinhos dos outros andares sempre a trataram de segunda, achava que por que era uma mulher só, num prédio de famílias. Não sabia o que falaria a porta deles. Que havia um espírito maligno a rondando em seu AP? Loucura! Felizmente aquela noite não lhe reservará mais nada.

Às vezes, nossa mente, nos prega peças criminosas e seria melhor para Flávia, ter sido atormentada por mil almas satânicas que submetida ao turbilhão de memórias enterradas que o susto engatilhou. Não levantou do sofá, se quer para ligar as luzes. Qualquer sopro de brisa lhe esfrangalhava os nervos. A solidão noturna a transportou para seu quarto de infância, seu infame pai lhe acariciando, e a espancando para que não resistisse. Os olhos brancos que não saiam da cabeça, olhando-a sem ação, traziam de volta a sombra da mãe, condescendente, que sempre lhe omitira ajuda, mesmo não faltando pedidos. No canto do sofá, a noite a abraçou com suas asas sombrias e tristes, esmagando-a sob o peso excruciante solidão. O apartamento se tornava cada vez maior, o silêncio mais maçante, a realidade mais distante. Só.

Quem nunca passou pelos tormentos da noite, não pode avaliar com exatidão como são prazerosos para os olhos, e sutis para o coração, os primeiros clarões do alvorecer. Ao raiar das primeiras luzes Flávia levantou, sua aparência parecia a de alguém que não dormia a dez dias. Tinha de ir ao trabalho, e foi. Lá não conversou com ninguém. Não queira voltar para casa. Só tinha sua casa. Quando chegou, tudo estava como sempre, mas hoje dormiria no sofá e de luz acessa. Às 4:33 a tv ligou, ela foi puxada de seu sono sem sonhos, para realidade hedionda. Sentou-se e por alguns segundo não entendeu porque a tv havia ligado sozinha. Depois não teve mais reação. Como fora ligada ela desligou, e no escuro de sua tela ela viu refletida a imagem fria da criatura branca atrás do sofá, a levar para mão tocar-lhe o ombro. Sentiu o toque. Frio. Sentiu um sentimento vazio e sóbrio. Levantou do sofá, calma. Andou até a janela, abriu e pulou.