A LENDA DO CARRO DE BOI MAL ASSOMBRADO!!!
As águas escuras e silenciosas da lagoa do bagre guardam, até hoje, segredos horripilantes em suas profundezas. Retornamos ao Brasil colônia. Início do século dezoito. A senzala da fazenda da Gruta é visitada pelo feitor e capitão do mato Gusmão, antes do dia raiar. -" Acordem, acordem!! Hoje tem capinação no lado leste, na cerca do coronel João Pedro!!!" Homens e mulheres despertaram, assustados. Justino, o negro mais velho, argumentou. -" Capitão. Desculpa mas hoje é sexta-feira santa!!" Francisca das Chagas, que trabalhava de ama na Casa Grande, também tomou a palavra. -" Capitão, é o dia da morte de nosso sinhô, Jesus Cristo!!! A sinhá nem devia varrer a casa nesse dia santo!!!!" O capitão tirou o chapéu. Olhou para o alto. Fez o sinal da cruz. -" E eu num sei disso??? A sinhá Mariana foi categórica, todos pra lida. O mato está alto naquela área. Simbora!!!!" Os quarenta e seis escravos se levantaram. As mulheres abriram as janelas. O negro Benedito mexeu na cabeça de um adolescente roncando. -" Acorda, Bentinho! Soneca!! Você não é branco pra ficar dormindo até meio dia!!!" O outro mal abriu os olhos. Bocejou. -" Me deixa!!!! É feriado santo!!!" O capitão do mato veio e chutou a perna de Bentinho. -"Deixa ele dormir mais um pouco, Dito!!! Daqui há pouco chegará o novo sino que a sinhá Mariana mandou vir de Diamantina. Bentinho irá levar o sino, no carro de boi, até a igreja de Santana!!! Vai ter que ir sozinho!!!!!" Os demais escravos riram da situação. A distância da fazenda até a matriz da cidade era de vinte e dois quilômetros. O pobre Bentinho teria que atravessar morros e matas até o destino final, a bela igreja barroca. Passaria a margem da lagoa do bagre, que os escravos diziam que era mal assombrada. A rica dona da fazenda obrigava seus escravos a trabalharem nos domingos e dias santos. A chegada de um padre novo a vila foi um acontecimento. Afeito a dinheiro pra reforma da igreja e da casa paroquial, o padre novo rasgou elogios a rica fazendeira, durante a missa dominical. -" Aplausos a dona Mariana. Os seus negros não sofrem violências!!! É uma alma dadivosa e o céu tem um lugar reservado a querida dona Mariana!!!!" A fazendeira prometeu doar um grande sino a igreja, além de um bom valor em ouro. -"Acorda, preguiçoso. Vai ter que levar o sino pra vila!!!!" Gritou o capitão do mato ao sonolento Bentinho. Ele jogou um balde de água na cabeça do pobre escravo. Bentinho deu um pulo. -" Anda, lesma. São onze horas!!! O carro de boi está pronto!!!!" Bentinho foi pra fora. Chapéu na cabeça. Pés descalços. Cara de sono. Olhou as duas juntas de bois no carro . Seis escravos colocaram, com muito esforço, o sino no carro de boi. O negro Benedito deu a ele a longa vara de tanger os bois. -" Já sabe carrear, Bento. Esse sino tem que chegar lá em bom estado!! Cuide bem dele!!!!" Bentinho sorriu. -"Sei disso, diabos!!!!" A sinhá e suas seis filhas observavam tudo, do alpendre da Casa Grande, protegidas do sol. O capitão se aproximou. -"Dê água pros animais. Vai com Deus, Bento!!!! O padre e o povo da vila esperam ansiosos o sino!!!" O Bentinho tocou os bois. As rodas rangeram ao se movimentar, numa melodia ruidosa e constante. Bentinho esperou a fazenda ficar pra trás, longe da vista. Então, deitou-se no carro, escorado no sino. Os bois já estavam cansados pois o sino era pesado demais. A marcha era lenta. Bentinho pegou no sono. Chapéu no rosto. Os bois frearam a marcha. O sol castigava. Os bois sentiram a presença da água da lagoa. Estavam sedentos. O escravo acordou, duas horas depois. Deu um chute, sem querer, no balde de água. -"Diabo!!! Eita ferro. Água foi pro chão. Dourado!! Trovão!!! Andem, andem!!!" Cutucou os animais. -"Diabo. Sinhá louca de mandar trabalhar hoje!!! Diabo!!!" O negrinho pegou no sono. Já era tardinha quando despertou. A noite chegando. O dia se despedindo. -" Diabo. Dormi demais!!!" Resolveu cantar. Tinha que se manter acordado. Cantos da senzala. Os bois tomaram o rumo da vila mas logo pararam pois Bentinho pegou no sono novamente. Era meia noite quando despertou. Os bois parados. Sedentos. Cansados de carregar aquele sino pesado. -" Diabo!!! Animais tontos!!!" Bateu nos animais com violência. A coruja passou por cima da cabeça dele. Ela pousou numa árvore. -"Diabo!!!! Oh, vida!!!" Um raio caiu perto dele. Um cheiro forte de enxofre. -" Você me chamou????" Bentinho olhou para os lados. Tremendo de medo. Olhou a lua. Não viu ninguém. O diabo apareceu e tomou a vara. Ele começou a conduzir o carro de boi. -" Se me chamam, eu venho!!!! Ainda mais em dias ditos santos!!!" O tinhoso deu uma gargalhada. Bentinho estava duro, inerte. Sem reação, sem coragem de rezar. A voz não saía. Tremia de medo. O carro de boi entrou na lagoa. Cada vez mais fundo. Bentinho, o carro e os bois submersos. Era já de manhã, no outro dia, quando a charrete do padre chegou a fazenda. O vigário viera acompanhado do farmacêutico, que era também o sacristão. Eles foram até a Casa Grande. -" Como assim, o sino não chegou???!??? " Disse a sinhá, antes de desmaiar. O capitão reuniu seus capangas. Auxiliados pelos escravos, eles procuraram o carro e Bentinho por toda a região. Nas vilas e fazendas ninguém vira nem sombra nem rastro do escravo Bentinho. Nenhum sinal das rodas do carro nas estradas de terra. -" Aquele sonso deve ter sumido e vendido o sino!!! De tonto só tinha a cara!!!" Repetia o capitão. Bentinho e o carro tinham sumido, como por encanto. A história se espalhou. A sinhá viu nesse fato um sinal pra guardar os domingos e festas da santa madre igreja. A carga de trabalho dos escravos foi diminuída. O sino nunca chegou até a vila. Bentinho ainda está no fundo da lagoa, carreando. Ainda hoje, no tempo da quaresma é possível ouvir o ranger das rodas do carro, a meia noite. Na sexta feira santa, alguns escutam o sino tocar. Um canto triste. Um lamento!!! FIM