Escara social

Era uma manhã daquelas, regida pela lei de Murphy. E o que era para dar errado de

fato, deu. Não acordou com o tocar do despertador, algo no seu organismo já previa. A mãe

veio lhe chamar no quarto as sete. O mau humor latente lhe incomodava a mandíbula, queria

esbravejar com alguém, xingar semmotivo, gritar, até bater. Mas só estavamali suas irmãs e

sua mãe. Se conteve. Pensavaque viver não valia aquilo, e a dias esse pensamento vinha lhe

rondando, queria extrapolar,sentir o tal gosto de ferro na boca advindo de altas doses de

adrenalina. Saiu e sentou-seem uma pedra, um pedaço de meio fio à frente de sua casa para

fumar um cigarro. E sua cabeça martelava: quando as coisas vão mudar, isso é pena para

estuprador, político filho da puta, mamãe não teve e não tem nada, onde está meu pai? na

alguma casa dessas moças de família que moram aqui por perto. E a inação toma conta, pés e

mãos amarrados pela falta de dinheiro, a falta de instrução, a ignorância que estala morada na

cabeça de cada um dos que não tiveramnada. Ignorância imposta, e os meios são tão bem

enraizados no tecido social, que é herege quem tente lutar contra.

O cigarro queimava e os pensamentos de Lucas tomaram uma tônica diferente quando

viu o pai (ainda casado e morando com a mãe) descer a rua de mãos dadas com uma tal moça

de família, numa rua perpendicular à sua, aos olhos de quem quisesse ver, que o homem que

além de não por nada em casa e deixar por conta da mulher todas as obrigações para com os

filhos nas costas dela, fazia questão de rodar por ai com outras para mostrar por cima de tudo

quem era que mandava. Esse vício por status o enojava em qualquer pessoa, daí em diante

nenhuma das suas ações foi racional.O pai não espera velo e tambémnão esperava o que se

sucedeu, sabia que Lucas alimentava certo ódio dele, mas caído no chão ainda meio vivo, não

conseguiu entender o porquê daquilo tudo.

Lucas apagou o cigarro e levantou com calma, pegou a pedra em que estava sentado

nas mãos e avaliou ter uns oito quilos, foi andando em direção ao pai que olhou meio

atarantado, e amorteceu com as mãos o baque absurdo do projetil recémarremessado. A

pedrada o derrubou, mas o espanto foi maior. Seu filho já está sobre ele o socando com a

violência comque se bate em um estuprador flagrado no ato, tentou resistir, mas o rapaz era

muito mais jovem e o agredia com uma brutalidade cega. Os socos eram compassados e

pesados, o acertando e dilacerando o supercilio, e depois várias vezes no supercilio dilacerado,

como de proposito, sentia que o lábio inferior tambémtinha se partido e que, com certeza

havia algum corte na línguapoissua boca jorrava sangue. Pensou na moça de famíliaque o

acompanhava: cadê aquela vadia? Qualquer ajuda agora seria bem-vinda. Mas infelizmente

para ele, quando ela viu o semblante de Lucas andando em sua direção com a pedra nas mãos

soltou a mão de seu amante e continuou caminhando como se não conhecesse nenhum dos

dois.

A manhã era tranquila e as ruas entre quadras do Recanto das Emas, em qualquer

horário do dia, pareciam desertas e hostis. O pai sentiu um leve alivio quando se viu livre da

saraivada de golpes, tentou se levantar, mas a cabeça doía muito, tentou entender de onde

tinha vindo esse caminhão que o atropelara de uma hora para outra, sentiu um baque maciço

encima da orelha, e depois mais nada.

A irmã mais nova de Lucas sairápara deixar o lixo, bem a tempo de ver o pai escorado

na sarjeta, cheio de sangue tentando se levantar, e o irmão caminhado com calma, levantar a

pedra o máximo que podia, a abrir a cabeça do pai com ela. O grito agudo que ela soltou

acordou Lucas. A irmã correu para dentro de casa gritando. Lucas olhou para corpo recém

abatido, com a cabeça aberta à banhar de sangue o asfalto preto, o pensamento que se seguiu

foi tão frio que ele se assustou com a banalidade comque seu sub consciente tratava o momento. Onde esconder o corpo? Onde me esconder? A mãe saiu e horrorizada entrou e

fechou o portão. O que ela achava agora era o que menos importava, nem mesmo pensava em

tentar se explicar depois. Não podia era deixar aquilo ali. A coisa tinha acontecido no meio da

rua, e seria difícil que ninguémpercebesse que havia havido algo ali. Amelhor solução que o

tempo até alguémou algum carro passasse na rua, foi empurrar o cadáver para dentro de uma

“boca de lobo”um bueiro desses de drenagem de agua que parecia ter uma entrada onde

passaria o corpo, e estava perto, a uns dez metros do local. Arrastou a massa disforme rápido,

vendo os pedaços de carne mais soltos terminarem de se desprender e ficar pelo caminho,

alguns miolos até. Empurrou o corpo para dentro e com os pés foi empurrando o que tinha se

espalhado no caminho.

Não foi adrenalina que sentiu, foi um sentimento mórbido de que faria aquilo outras

vezes, de que não tinha sido suficiente. Não foi medo que sentiu quando um grupo de

senhoras dobrou a esquina e o viu com os olhos espantados de quem tinha acabado de

trabalharmuito, e a roupa cheia de sangue. Foi prazer de ver nos olhos delas o terror de quem

que vê uma fera bruta fora da jaula, pronta para atacar. As senhoras correram e ele teve

certeza de que logo viriam várias outras pessoas. Não pensou em ir para casa, sentia-se impuro

para seu lar, sua mãe, suasirmãs. Era agora um ser novo.

Ensanguentado pelo sangue da vítima, correu para um espaço de mata depois da

última rua da quadra, sentou-se no meio fio. Os pensamentos agora rolavam como numa

enxurrada. Se não voltaria para casa para onde iria?Olhou para as mãos ensanguentadas, não

se arrependia do ato. Seu pai lhe batia constantemente durante a infância, nunca havia lhe

dado nada, e sua presença em casa nunca fora sinal de segurança, muito pelo contrario...

Lembrava de forma clara, de apanhar enquanto escovava a privada do banheiro sem luvas com

uma escova minúscula escutando do crápulaque era para isso que ele tinha nascido, e que não

passariadisso. Morrera quem tinha de morrer, pensara. Mas o destino mais uma vez foi cruel

com ele.

Com uma velocidade nunca vista naquela região ele viu o carro da polícia virar de

forma brusca e esquina mais próxima, o extinto o enrijeceu os músculos, e o gosto de ferro na

boca denunciava as altas doses de adrenalina que seu corpo liberarápara que levantasse e

corresse para dentro da pequena mata que havia ali perto. Uma pontada de angustia apertou-

lhe o coração, estava de sandálias e correr naquele terreno seria difícil, mas a pontada

evidenciava a certeza de que seria pego. Era preto, e a certeza do que fariam com ele dentro

daquela mata o turvava as vistas. Seria bem mais fácil para eles explicar essa morte, seria

muito mais fácil para eles nem explicar essa morte. Era preto, era assassino, e estava fugindo,

pronto, era um prato perfeito para a maldita corporação que mata e prende preto e pobre.

Ouviu o latir dos cachorros já bemperto. Não importaria o porquê, para eles nem teria um

porque, foda-se se o morto era violento, bêbado,faltava para com a mãe, faltavapara com os

filhos, os torturara mentalmenteanos e anos, se impondo pela violência, afinal fazia parte da

classe a quem era esse o conceito de riqueza, sua indignação não era motivo. Sentiu a

mordida forte do pastor alemão rasgar seu calcanhar, caiu com o baque do segundo cachorro

pulando em suas costas e mordendo sua orelha, segundos depois o coturno preto o acertou na

boca, os estilhaços dos dentes cortaram sua língua, não se preocuparam em parar os

cachorros, que se animavam com a condescendência de seus donos, e cravam os dentes nas

partes onde a pele estava exposta, pernas, braço, pescoço. Os chutes e pisoes dos abutres se

concentraram na cabeça, depois do segundo apagou.

No outro dia a sensacional mídia publicava a seguinte manchete “ Assassino é morto

com um tiro na virilha após entrar em confronto com polícia: a polícia conta que recebeu o

chamado de algumas senhoras de que um rapaz surtado havia acabado de matar um homem

na quadra 802, do Recanto das Emas, uma viatura de plantão que estava por perto atendeu o

chamado, e seguindo algumas pegadas de sangue encontrou o homem descontrolado, que

tentou agredir um dos policiais e depois de uma intensa luta corpórea, atiraram em sua perna

para tentar mobiliza-lo, como o homem estava ensandecido o tiro acabou atingindo alguma

artéria importante e infelizmente levou o rapaz ao óbito”

Não houve investigação de nenhuma das mortes, morreram só mais dois. O que ficou

para mãe foi o vazio e o desamparo. Na lembrança o marido cruel e vil, e o filho molestado e

morto. Para ela cada um foi vítima da sua maneira, nenhum de maneira mais cruel que outro,

tinha de conversas antigas com o filho o conhecimento de que certas situações não acontecem

de forma natural, não são um “fato social” como definira Durkheim, são sutilezas do estado,

estratégias delicadas que impedem pessoas comuns do acesso ao básico, do direito a vida,

fértil e produtiva, de longos e vitoriosos anos. Induzem pensamentos do tipo “todo mundo

passa por isso antes chegar ao sucesso”, “é difícil para quem vem da favela se manter numa

faculdade, afinal de contas, importante e o trabalho”, e derramam crack, cocaína, álcool e

armas nas mãos desses que eles usurparam a identidade. Forjam disputas contra o tráfico.

criado por eles, campanhas de desarmamento para tirarda rua as armas fabricadas por eles,

Choice canta com razão “nos dão armas e drogas e nos perguntam por que somos bandidos, e

por que nós atiramos? Fiquem bem longe de nós temos tudo que precisamos”. Lucas era só

um rapaz comum, que não teve acesso a outra coisa a não ser o mal branco, o desprezo

branco. Seu ódio alimentado pelas fraquezas do pai foi somente um gatilho, a mão que

assaltou sua infância e sua inocência é branca, a mão que o tirou o parque, o cinema, o relógio

da hora e ceia de natal farta, é branca. Marta, sua mãe, agora é solteira e tem duas filhas, e a

única coisa que vai a impedirde conseguir sustenta-las, é a mão branca. Mão que mata dentro

da lei, que usurpa consciência do pobre e ainda o faz achar que o culpado, como Lucas foram

vários, que mataram por muitos menos, depois de passarem por um incrível tudo que só aos

olhos do capeta deve ser normal, morrem aos montes e são os culpados, bodes expiatórios

usados pela mão branca para te enganar, te fazer achar que é dá favela que emana o mal. E

mata e rouba a mão branca, porém, dentro da lei.