MENTIRA TEM PERNA CURTA!!!!!!
Nem bem o sol dera seu adeus, num dia modorrento e quente de novembro, onde mal soprava uma brisa refrescante e suave. O porteiro Epaminondas se preparava pra ir embora, dando um até logo ao posto de trabalho, uma desativada usina de cana de açúcar. Um local amplo, cercado de alambrados e cercas elétricas. Muitos tratores e maquinários obseletos eram atrativos aos meliantes e gatunos. Epaminondas fizera a ronda das cinco da tarde. Um gole de café. Uma vassourada na guarita. Jogou desinfetante no vaso sanitário. Desligou a tevê preto e branco. Botou água pro cachorro Minduim, companheiro de doze horas de turno. Guardou a marmita e a garrafa térmica na mochila da Adidas. Conferiu o cabelo e o bigode no espelhinho. A botina, necessitando urgentemente de uma boa engraxada, em nada combinava com a calça social preta e a camisa verde com ombreiras amarelas do uniforme. O boné do Santos Futebol Clube completava o visual. Deu uma olhada no relógio do celular. Vinte e cinco minutos para as dezoito horas. O Monza preto entrou pelo portão grande. O porteiro da noite, Germano, era muito pontual. Chegava bem cedo ao trabalho. -" Tarde, Epa. Quais as novidades?!?!" O livro ata estava sobre a mesa. -" O chefe trouxe o vale transporte. Aumento, só de pernilongos e ratos. Nunca vi tantos!!" Germano guardou sua bolsa no armário.-" Não é correto você vender seu vale transporte e vir de bicicleta. Do serviço até em casa ainda estamos no horário de trabalho, Epa." O outro seu de ombros. -" Bobeira. Sempre vendi. Ajuda a comprar o cigarro, uma carninha!!!!" Epaminondas tirou o cadeado da bicicleta vermelha. -"Você chega, eu vou embora!! Bom trabalho." Epaminondas ganhou as ruas do distrito industrial. Teria trinta minutos de pedaladas até sua casa. Uma rua ao lado da avenida do estado. Epaminondas olhou o fluxo de veículos. Caminhões pesados e veículos a toda velocidade. Ele desceu da bicicleta. Acendeu um cigarro. Viaturas de polícia e ambulâncias. Epaminondas atravessou a avenida, se desviando de seu itinerário. As fábricas do outro lado da avenida. Epaminondas passou em frente de grandes empresas. Muitos funcionários saíam. Um grupo de mulheres uniformizadas. Rayane se destacava. Uma mulata alta de olhos verdes. Uniforme e boné da fábrica de salames e frios. Epaminondas assoviou. O porteiro de cinquenta janeiros sorriu. Feliz como criança em balcão de padaria, vendo tantas guloseimas. A moça veio ao seu encontro. Ele de pé, apoiado na bicicleta, a sombra de um ipê amarelo. Um abraço. Um beijo apaixonado. Epaminondas se derrete, de calor e de amor. -" A beleza era o verbo, o verbo se encarnou e se chamou Rayane!!!" A moça suspirou. -" Que romântico, Rafael. Quando será nosso noivado?!??" O homem engoliu em seco. -" Sei que prometi noivado. Nos conhecemos há três meses apenas. O montante de quinhentos mil reais da herança de titia ainda não caiu na conta, coração." Rayane o beijou. -" Três meses intensos!! Por sua insistência não sou mais pura!! Agora temos que casar!!!" A moça fez um biquinho. -" Minha família é do Tocantins. Minha irmã mora em Orlando, não é assim, Rayane. O passaporte, a festa, viagens, roupas... tudo leva tempo, tudo a seu tempo!!!" A moça meneou a cabeça, afirmativamente. -" Certo, paixão!!!A gente senta e organiza tudo. Meu pai amou te conhecer. " Um beijo de despedida. -" Seu pai é um lorde, querida. Bom papo. " Epaminondas olhou o celular. -" Estou atrasado, o colega está me esperando, linda. Trabalho em primeiro lugar. Bom descanso!!!!" Epaminondas subiu na bicicleta. Em segundos sumiu pelas ruas do distrito industrial. -" Que maravilha da natureza, Epa. Linda e burra igual uma mula. Acredita que eu trabalho a noite!!!" Sorriu malicioso. O celular tocou. Ele parou a bicicleta. -" Sou eu, Jussara. Amor, hoje fiz feijoada. Não se atrase!!!!" O homem tirou o boné. A foto da esposa sorrindo, ao lado do filho de seis anos. Mentira a ela, anteriormente, que se matriculara no Supletivo noturno, a fim de concluir o ensino fundamental. Era seu álibi para os encontros com Rayane, a qual conhecera na quadra da escola de samba. Jussara trabalhava na cozinha de um restaurante português. O ciumento e possessivo Epaminondas permitiu que a esposa trabalhasse fora só depois que o orçamento apertou. O aluguel subira dez por cento. As horas extras diminuíram. Epaminondas olhou pra avenida movimentada. Lambeu os lábios, pensando na feijoada saborosa da esposa. Couve, costelinha, bacon, pernil, carne seca, orelha e rabo de porco, laranja, caipirinha, farofa, torresminho, arroz branco e molho de pimenta. Uma iguaria dos deuses, ao som de Raça Negra, samba da melhor qualidade. Os carros passaram. Um caminhão bem longe. Epaminondas a beira da avenida. Olhou bem. Teria tempo pra atravessar. Empurrando a bicicleta, apertou o passo. O homem e sua bicicleta no meio da via. O celular tocou. Vibrou. Caiu das mãos. Epaminondas se abaixou. A carreta em alta velocidade. Sem tempo pra frear ou desviar. -" Virgem Maria!!!!" Foram as últimas palavras dele, antes de ser arremessado para o alto. O homem caiu no asfalto. Fraturas múltiplas. Múltiplas paradas cardíacas. O sangue no asfalto quente. A magrela toda torta. A avenida interditada. Epaminondas inconsciente na maca do SAMU. O porteiro morreu ao dar entrada no hospital. Velório simples, enterro no mesmo dia. Jussara foi atrás dos direitos do esposo. Câmeras da empresa revelaram que ele saira mais cedo que o previsto. Por receber vale transporte, não deveria utilizar bicicleta. Além disso, desviara-se de seu trajeto costumeiro do trabalho até sua casa, já que fora atropelado no outro sentido da rodovia. Por tudo isso, Jussara pouco recebeu em dinheiro. Epaminondas se levantou. O corpo dolorido. -" Maldita cadeira de alpendre da guarita. Ai minhas costas!!!!" Ele colocou o boné do Peixe e ergueu a bicicleta. Andou por um bocado. -"Jussara. A feijoada saborosa!!! Aí vou eu!!!!" Entrou na casa, sem perceber que passara por dentro da parede. A mesa vazia. O filho dormia tranquilo. -" Jussara, desnaturada!!! O menino tá sozinho????" Foi só quarto e viu a sogra vendo a novela. -" Cobra!! Sai da minha casa!! Vive botando idéias modernas em Jussara. Tem que estudar, filha. Tem que trabalhar, filha. Epaminondas não presta!!!! Velha caduca!!!!" Ele apertou o pescoço da sogra, que nada sentiu. Epaminondas ouviu o barulho de um carro. Sorrisos. Um som alto de música. Jussara e Fagundes de mãos dadas. Ela com um buquê de rosas. Um sorriso de orelha a orelha. Epaminondas nunca dera uma flor pra esposa. -" Jussara, o que faz com o dono do restaurante??!?!?" Ele gritava e ninguém o escutava. O português deu um abraço e uma caixa de bombons pra mãe de Jussara. Epaminondas riu da cena. -"A gente se casa em janeiro, dona Clotilde!!! Festa de arromba!!! Jussara me ama!!!!" Epaminondas segurou o português. Um soco que nada fez de efeito. Jussara chorando. -" Seis meses sem o Epa!!! Mentiroso Epa!!!" Fagundes a abraçou. Um beijo apaixonado. Epaminondas aproximou-se dela. Tinha um brilho diferente no olhar. Estava linda. Estava radiante. -" Seis meses?!??? Eu estou morto?!?!?" As lembranças do acidente. A carreta. As luzes. O hospital. O velório. Tudo veio a sua mente. Epaminondas saiu dali. -" Bem que meu pai dizia que mentira tem perna curta!!!!!" Rayane ainda não entende porquê seu amado nunca mais apareceu!!!! FIM