POST MORTEM VINDICARET - CLTS 09

O gravador velho fazia um som irritante e contínuo que lhe causava um tique nervoso disparando piscadelas. A palheta torta da persiana, como a gengiva escancarada de um cão rugindo, deixava passar filetes dos raios da lua, que incidiam sobre os olhos abertos e sem vida do cadáver; uma mulher, loira, aparentando uns 35 anos, a cabeça dilacerada do lado esquerdo, expondo parte do crânio rachado e um cérebro esfacelado, envoltos numa massa compacta de sangue escuro e seco.

- Crânio parcialmente fraturado, com ruptura de massa encefálica. Enfaticamente evidencia-se como a causa da morte. O objeto usado para golpear a vítima não foi encontrado, mas devido a traços ainda inconclusos a se comprovarem em laboratório, considerando serem limo e barro, pressupõe-se ser uma pedra de pelo menos cinco quilos a julgar pelo corto-contuso.

Desligou o gravador. Cansado, as vistas doendo. Tirou os óculos e esfregou os olhos. Lavou as mãos demoradamente com sabão. O lugar todo era incrustrado por uma grossa e negra ferrugem, como um navio fantasma. Terminou a limpeza desinfetando tudo com álcool, inclusive os óculos, usando um pano seco de flanela. Trancou bem o freezer, como chamava e foi até a cozinha, onde se serviu de café. Ainda estava quente, pelando na verdade. Lucimar saía as 18h e ele olhou no relógio para se certificar: 18h10. Por isso o café fresco. Sorriu ao lembrar da recepcionista, tão atenciosa e simpática. Se ela não emendasse um namorado atrás do outro com tanta pressa, ele talvez a convidasse para um café um dia. Mas ela parecia tão... tão fugaz. Espantou o pensamento com a mão, como quem espanta uma mosca. Saiu com a xícara, dando uma olhada ao redor, vendo se estava tudo ok, em seu lugar; nenhuma janela ou porta abertas. Mas ao passar pelo corredor, ouviu um baque alto e depois um grito e vinha do freezer. Com o lusco-fusco crepuscular encobrindo as coisas pegou uma lanterna e as chaves que deixou penduradas no chaveiro ao lado do arquivo na recepção.

Girou as chaves e colocou o ouvido na porta. Escutou passos ligeiros correndo e depois tudo silenciou. Tomou fôlego, esperou; depois de virar a última volta na chave, abriu. Empurrou a porta devagar e enfiou a lanterna na fresta dando aquela olhava atenta em tudo. Parou quando viu alguém agachado embaixo de uma das macas. O feixe de luz da lanterna nos pés do que quer fosse aquela criatura. O que ele imaginava ser era desacreditado imediatamente pelo seu ceticismo, mas algo estava bem errado ali, não tinha como negar isso. Os tornozelos estavam carcomidos e os ossos e tendões dos pés eram aparentes. E quando acendeu a luz, a coisa pulou erguendo e derrubando a maca e revelando a aparência aterradora de um cadáver. A loira que ele examinara à trinta minutos atrás, na sua frente, em pé, assustada e segurando uma perna cadavérica humana da qual arrancava pedaços a dentadas energicamente.

– Que negócio é esse? Você, vo-cê é humana, - disse tocando seu braço. – e tá morta. Você tá morta. Tava deitada aqui há meia hora atrás, caralho! Mas que merda fodida é essa? Como isso é possível? Eu, eu, n-não po… – João Mineiro como era conhecido em Uberlândia, sua cidade natal, desmaiou antes que pudesse concluir. Aquela que por hora poderíamos chamar de morta viva sorriu satisfeita ao pensar que podia se servir de uma perna ou um braço, talvez até parte mais substanciosa do corpo dele. Mas não, ela se controlou, sabia que aquela perna morta já supriria algumas horas extras. E depois, tinham mais corpos ali.

A loira ficou na recepção. Tinha tevê lá. Assistia um canal de esportes onde passava uma partida de beisebol. Ela pegava a perna morta e tentava imitar os movimentos do taco quando João Mineiro apareceu, branco como aquelas paredes e com os lábios roxos.

– Vai me explicar quem você é? Eu não tô de brincadeira, vem aqui. – Pegou ela pelo braço e a fez sentar no sofá ao seu lado. - Acha que eu acredito nessa porra? Eu sei que não dá pra ser. Espíritos, almas penadas. E você não está desencarnada mas também não poderia estar viva. Quero uma explicação.

– O senhor acredita em Deus?

– Eu já acreditei em Deus. Se é que quer saber. Mas hoje em dia posso dizer que não acho que ele seja a resposta definitiva. Consegue entender isso?

– Não, eu não consigo. Eu sempre fui muito fiel a Deus e seguia seus ensinamentos. Mas ele não quis que eu tivesse filhos, sabe? Deus, ele fez eu abortar os dois primeiros e quando uma vida finalmente se formou dentro de mim, - demonstrou ela fazendo um delicado gesto com as mãos como se segurasse um bebê no colo. – e eu a amei, mimei, eduquei, um maluco bêbado invade a calçada. Ela estava vindo de uma festa com as amigas, 18 anos, e passa por cima dela e daquelas que estavam com ela. Mas só ela morreu, porque foi atingida em cheio. Eu não deixei de acreditar em Deus nesse dia. Continuei tendo fé, tentando ser forte. Só que aos poucos, ao longo de anos de tratamento para fertilização e quando veio a notícia que caiu como uma bomba pra mim, que eu não poderia mais ter filhos, isso aconteceu. Eu neguei Deus, o abandonei e fui procurar o seu maior concorrente. A mulher observava com atenção uma mosca que sobrevoava em redor tentando pousar e quando teve a oportunidade agarrou o inseto com as mãos e o comeu.

– Você, é. O que você acabou de fazer, quer dizer, eu, – João Mineiro estava confuso com as palavras, apontava para a mulher atônito como se acabasse de acordar de um coma.

– Ah, isso. Toda a vida me interessa, doutor. Se entendeu a referência.

– Apesar de você mesma não estar viva, não é?

– Eu quero lhe explicar tudo que aconteceu comigo, de verdade. Mas sabe, estou tendo um problema aqui. Eu estou me desmanchando e minhas nádegas grudaram no sofá. Partes do meu corpo estão se decompondo e se eu não encontrar um lugar frio o bastante para poder frear esses efeitos naturais não vou durar mais muito tempo.

João a levou para a cozinha, fechou a porta, ligou o ar-condicionado e posicionou uma cadeira em frente a geladeira aberta, onde ela estava sentada agora. Pegou uma coberta grossa e sentou numa poltrona a uma distância confortável para que o ar da geladeira não o atingisse também.

– Eu descobri que meu marido estava me traindo e planejava me matar para ficar com toda a minha herança. Ele era um homem insensível e ganancioso. Não chorou a perda de nenhum dos nossos filhos. Eu sofri muito com isso. Até que conheci um homem misterioso em uma festa beneficente que a minha empresa estava promovendo. Nos falamos por um longo tempo. Ele me levou pra casa dele. Morava numa casa tão antiga que parecia ser de outra época, ele próprio parecia ser, por causa das roupas que usava e do jeito que falava. Contei toda a minha vida pra ele, as intenções maléficas do meu marido, as perdas dos meus filhos, nosso relacionamento conturbado. Nos encontramos outras vezes e ele me revelou que era seguidor de uma seita que promovia a vida saudável baseada numa alimentação livre de carnes, leites e laticínios, produtos industrializados e exercícios para promover a longevidade entre seus membros. Mas apenas isso não era o suficiente. Pois haviam pessoas ali que com mais de 200 anos. Ele manipulava a magia também, esse meu amigo. E certa noite ele me contou que tinha a solução para o meu problema. Que me tornaria imortal para que eu pudesse voltar e me vingar do meu marido caso ele atentasse contra a minha vida.

– Ele iria tornar você imortal? Nossa, isso é mesmo possível? Como? – Questionou João colocando café na xícara. Andava com o cobertor nos ombros, pois estava se sentido travado ao ficar sentado muito tempo.

– Magia. A magia dele era muito poderosa. Contou-me um dia que o primeiro homem a dominar esse encantamento que dá a imortalidade as pessoas, recebeu tal poder do próprio Salomão em pessoa, que ele mesmo o teria invocado dos mortos depois de ler o livro. – Disse ela coçando a cabeça. Uma parte da pele que estava pendurada soltou em suas mãos e ela a comeu com gosto. João segurou a náusea e virou para não olhar.

– Salomão? Sei, o cara que pediu sabedoria pra Deus né? Esse cara ficou bitolado, sabia? Pirado das ideias.

– É, eu sei umas coisinhas de Salomão que não te deixaram dormir à noite. Mas isso não vem ao caso agora. Quero concluir minha história. Na noite em que Renato, meu marido, decidiu colocar meu assassinato em prática eu já estava nessa condição, de imortal. Mas ainda assim meu corpo físico poderia ser afetado, machucado, morto. Porém minha alma ficaria presa nele e não poderia mais sair. O único jeito de reverter isso era se eu lançasse um outro feitiço que transferisse de corpo a alma desencarnada de alguém que eu acabasse de matar e quando você me surpreendeu lá eu estava tentando escapar para fazer isso. Vou matar aquela vaca da amante dele que tirou tudo de mim e vou possuí-la. Vou tornar a vida dele um inferno e só vou descansar quando ele finalmente estiver morto. De preferência o faria tirar a própria vida. E quer saber, João? Se quiser entrar comigo nessa, poderá me ajudar. O que acha? - João deixou a xícara de café cair no chão e se desesperou ao finalmente se dar conta que tudo aquilo era um fato e que na sua frente um cadáver falante lhe propôs cumplicidade num assassinato.

*******FIM******

TEMAS: Necrotério e Magia

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Gostaria de aproveitar o prestigiadíssimo CLTS do qual faço parte como integrante desde o segundo concurso, para divulgar meu livro na plataforma digital da AMAZON. O LIVRO DOS QUATRO. Deixarei o link ao final. É uma história envolvente de loucura, mistério e morte, sobre um livro com 4 histórias perturbadoras que encontrarão nas mãos de seu possuidor, Reinaldo, um professor de filosofia nada confiável, o instrumento perfeito para a perpetuação de sua maldição.

Segue o link:

https://www.amazon.com.br/LIVRO-QUATRO-Anderson-Roberto-ros%C3%A1rio-ebook/dp/B081DD5GN9/ref=sr_1_1?__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&keywords=o+livro+dos+quatro&qid=1573905554&sr=8-1

Anderson Roberto do Rosário
Enviado por Anderson Roberto do Rosário em 16/11/2019
Reeditado em 21/11/2019
Código do texto: T6796094
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