O Fura-Olhos

I

Heloniel teve um sonho estranho. Mais do que um sonho, foi tão vívido e intenso que poderia ser classificado como uma visão.

Antes disso, tudo estava normal. O sábado chegou depois de uma longa e cansativa semana de trabalho na farmácia. Farmacêutico de formação, ele não só atendia clientes no balcão, mas resolvia problemas nos computadores e, ocasionalmente, fazia entregas no centro de Itacoatiara (AM). Não que ele fosse apenas um funcionário versátil, mas é que seu tio, dono da farmácia, não fazia muita questão de contratar mais funcionários do que já tinham.

Decidiu visitar o pai que não via há dois anos em Manicoré (AM). Nem se lembrava da última vez que havia telefonado para ele. Estava vivendo sua vida e, de certa forma, esqueceu daqueles que lhe deram a vida, mas sentia saudades. Decidiu não avisar que iria, para fazer uma surpresa. Pediu ao tio a segunda-feira de folga, que emendaria com o fim de semana, e saiu na sexta à noite para chegar lá no sábado no horário de almoço.

Teve alguns problemas na viagem, de modo que só conseguiu chegar no domingo bem cedo. Se preciso fosse, ligaria para o tio pedindo mais um dia de folga; ele ia se morder de raiva, mas não tinha direito de reclamar. Apesar de ainda ter uma chave de casa, chamou seu pai do portão de madeira:

– Seu Jazer! Seu Jazer!

Pôde ouvir os resmungos mal-humorados, sua caminhada até a porta da casa e a porta abrindo. O rosto castigado pelo tempo se contraiu, os olhos se arregalaram, e ele finalmente correu o mais rápido que pôde para abraçar o filho, chamando sua esposa – a madrasta – para vir ver quem chegou.

Depois de dez minutos de abraços e saudações, Heloniel finalmente se acomodou para tomar o café da manhã. O domingo passou depressa, a maior parte conversando sobre o trabalho, mas também sobre política e os eventos recentes; o velho Jazer, mesmo tendo pouco estudo, gostava muito de ler e era capaz de tranquilamente dialogar com qualquer universitário.

Mais tarde, o pai contou para Heloniel ter achado algumas filmagens caseiras e convertido-as em DVD. Decidiram passar a noite assistindo aquelas recordações. Riram bastante de muitas coisas. Finalmente, cansado, Heloniel foi dormir, naquele mesmo velho quarto em que viveu por tantos anos. O sonho – ou visão – foi naquela noite.

O rapaz se viu na casa onde passou seus dois primeiros anos de vida. No sonho havia detalhes no imóvel que não estavam registrados, de modo que ele pensou que, ou eram lembranças infantis – o que seria praticamente impossível –, ou simplesmente seu cérebro preenchendo lacunas de desconhecimento.

Era Natal no sonho. Heloniel viu uma versão mais jovem de seu pai, e de sua mãe biológica. Tentou chamar a atenção deles, mas eles não podiam vê-lo. Era como se estivesse dentro de uma das filmagens, inclusive havia uma versão mais jovem dele, de cerca de 1 ano de idade, engatinhando sorridente pelo chão.

De repente, veio uma batida forte na porta, assustando todo mundo. O Sr. Jazer foi checar o que estava acontecendo, e olhou pelo buraco da fechadura. Murmurou alguma coisa, em tom confuso. Quando Jazer abriu a porta, alguma coisa atingiu seu olho direito, obrigando-o a recuar com as mãos no rosto ensanguentado, urrando de dor. Heloniel sabia que ele havia ficado deficiente no dia que sua mãe biológica morreu – o pai agora usava um olho de vidro –, mas não sabia como havia acontecido. Quando o invasor entrou, Heloniel e sua mãe não conseguiram deixar de arregalar os olhos em pavor. A criatura usava um longo manto negro com capuz, que cobria quase todo seu corpo, parecendo uma personificação da morte. A única coisa que podia-se ver era uma grande língua bifurcada, com extremidades agudas como ponta de faca, que balançavam no ar para fora do capuz, ameaçadoramente. Uma pesada corrente estava enrolada em sua cintura, com pequenas cruzes douradas penduradas.

Mesmo sabendo-se invisível, Heloniel ficou apavorado, assim como os pais, que agarraram sua versão infante e recuaram até ficarem de costas para a parede. Ainda assim, ele se aproximou para tentar ver o que estava por baixo daquele capuz, e pôde ver um rosto totalmente branco e imóvel, como uma máscara, mas onde havia apenas uma boca sem dentes.

A criatura não avançou por um longo tempo. Parecia um predador que não queria atacar de frente sua presa para não se ferir com sua reação. Sem aviso, uma luz branca ofuscante apareceu do nada, engolindo Heloniel completamente. Então ele acordou, por causa da luz do sol batendo na janela. A mente ainda confusa, as mãos trêmulas. Não era um mero sonho, não podia ser. Ele parecia tão real quanto aquele momento de horror acordado. Na verdade, o sonho parecia mais verdadeiro do que a realidade. Heloniel ficou tão perturbado que decidiu ir embora no mesmo dia.

II

Já em casa, na sexta-feira seguinte, Heloniel ainda buscava respostas sobre os estranhos acontecimentos que cercavam a morte de sua mãe. É claro que ele não tinha coragem de questionar junto à família a versão que sempre ouvira, de que ela havia sido morta por um assaltante. Já havia passado da meia-noite, ele pesquisava na internet, a pensão de dois andares onde morava estava completamente silenciosa, de maneira que ouviu nitidamente duas batidinhas de porta. Isso não o assustou, pois era apenas o som de notificação do seu celular. Era uma mensagem de seu amigo Kauê.

"Cara, estou aqui na frente da pensão, abre pra mim.”

Heloniel nem se moveu, sabia que era mentira. Kauê era um desocupado, vivia pregando essas peças nas noites de sextas-feiras. Certa vez ele disse que estava estacionado na rua atrás da pensão e mandou Heloniel o encontrar para saírem juntos, mas ele nem tinha saído de casa. Outro dia disse que estava na frente da pensão esperando em seu carro, mas quando Heloniel foi lá, ele estava a pé. Duas semanas antes disse que não ia sair, para dois minutos depois aparecer na porta do seu quarto.

HELONIEL: "Não vou cair nessa."

KAUÊ: "Estou falando sério, abre a porta pra mim."

Heloniel nem respondeu. Mas, alguns momentos depois, outra mensagem chegou:

KAUÊ: "Olha, alguém esqueceu a porta da pensão aberta, de novo. Estou entrando."

HELONIEL: "Tô cansado, para de perturbar."

Um minuto depois, outra mensagem:

KAUÊ: "O que tá esperando? Estou aqui embaixo, vem logo."

HELONIEL: "Já falei que não vou cair nessa, homem, sai fora!"

Quando Heloniel colocou o celular de lado novamente e ia digitar alguma coisa no notebook, ouviu. No completo silêncio daquela que há décadas atrás havia sido uma casa colonial, era fácil distinguir os sons de passos subindo as escadas. Heloniel rangeu. Era coisa da sua cabeça, ou Kauê realmente estava falando a verdade? Por um instante, até pensou em ficar irritado porque o amigo havia invadido sua casa, mas, bem, não era exatamente SUA casa.

HELONIEL: "Traz essa traseira pra cá logo, então."

KAUÊ: "Estou na porta do seu quarto."

– Tô abrindo, pera ai! – Heloniel disse bem baixo, porque estava há horas sem usar a voz, o que a fez sair fraca. Ainda temendo algum tipo de pegadinha, resolveu checar pelo olho mágico que havia instalado no dia anterior em sua porta. O que viu, entretanto, foi um rosto totalmente branco, parecido com uma máscara contendo apenas a boca, e uma grande língua bifurcada, dobrada como uma serpente pronta para dar um bote. Apavorado, ele checou se a porta estava mesmo trancada, escondeu-se debaixo do cobertor em posição fetal e esperou que a coisa simplesmente fosse embora.

III

Heloniel achou uma série de lendas urbanas na internet que batiam com a visão que teve. Uma delas, ocorrida no Condado de Hezekiah, Estados Unidos, no início do século passado, lhe forneceu uma pista muito importante. Aconteceu assim: Na velha fazenda no meio do nada, a mãe havia preparado um pequeno bolo para o aniversário de oito anos de Rebecca, a caçula. Doces eram raros naquela casa pobre, então um bolinho era a sensação do ano. O problema é que, para a infelicidade de Rebecca, só lhes era permitido comer o bolo depois do jantar. Então ela ficou naquela expectativa – que durava semanas – por mais um dia inteiro.

Quando a casa já estava iluminada por velas e lampiões por duas horas, o pai chegou sujo e cansado de trabalhar na fazenda. O jantar começou depressa, ele comeu em silêncio enquanto as crianças discutiam, animadas, sobre que tipo de bolo seria. Rebecca queria framboesa, Amanda baunilha, e Tarrence chocolate.

Um silêncio e uma tensão tomaram conta da mesa quando o pai se aproximou de terminar seu prato, o que marcava o fim do jantar. As crianças olhavam entre si e para ele, animadas, enquanto o pai parecia totalmente indiferente ao que estava acontecendo, absorto na carne que devorava devagar. Quando ia comer o último bocado, parou de repente e olhou para a janela, grunhindo. O sino estava tocando, ao longe, o pai foi o primeiro a ouvir. Ele ficava a cerca de meio quilômetro da casa, e servia para sinalizar um vento muito forte, que anunciava a chegada de uma tempestade – ou de um furacão, que era razoavelmente comum naquela região.

O pai abriu totalmente a janela, mas nenhum vento entrou. O sino, entretanto, continuou tocando. Ele se sentou, mergulhou seu último pedaço no molho, e preparou-se para levá-lo à boca; só que o sino não parava de tocar, e ele não suportava isso. Finalmente, largou o bocado e apontou para Tarrence. Ele já era quase um homem, e o filho mais velho, então era naturalmente a pessoa indicada para ver o que estava acontecendo. Se não havia vento, provavelmente uma corda havia se soltado, e ele precisava ir até lá amarrar, o que o pai nem sequer precisou verbalizar, um gesto já dizia tudo.

Tarrence pegou uma vela, protegendo-a com a mão, e saiu pela porta da frente, mergulhando no mais completo breu, enquanto os irmãos se empilharam na janela para vê-lo. Passou pela varanda, que era iluminada pelo maior lampião da casa. Enquanto o pai estava sentado, apreciando o último pedaço de carne, a mãe olhava para ele com aquele ar de admiração e submissão que aquecia o duro coração do marido – mas ele não estava prestando atenção.

Tarrence se afastou até que os irmãos, da janela, só podiam ver a luz da vela. Quando chegou mais ou menos onde ficava o sino, ele parou de tocar. Um minuto depois, a vela apagou de repente.

– O que aconteceu? – Disse Ravhina, preocupada.

– Deve ter sido o vento. – Respondeu Matt, o terceiro filho. – Será que ele vai conseguir amarrar no escuro?

– Mas não tem vento! – Protestou Rebecca. Providencialmente, o sino voltou a tocar. Todos olharam para o pai, esperando uma palavra de solução. Ele resmungou, e lançou um olhar eloquente para Matt, o único menino que sobrou. Aparentemente corajoso, ele pegou uma lamparina e marchou para a escuridão, para ir ajudar o irmão. Como a luz da lamparina era mais forte, elas podiam ver a silhueta do irmão enquanto ele se aproximava do sino. De repente, no entanto, o sino parou de tocar. Elas viram-no chegar até ele e olhar em volta, mas não havia sinal de Tarrence.

– Onde será que ele está? – Perguntou Amanda. A mãe começou a ficar apreensiva, mas o pai tentava tirar alguma coisa da unha, tranquilo. Alguma coisa destruiu a lamparina, mergulhando o sino e Matt na escuridão. Ravhina foi a única que ouviu o que pensou ser um grito abafado. Elas apertaram os olhos, tentando ver alguma coisa, mas não havia nada para ver.

O sino voltou a tocar.

O pai resmungou, olhou para as filhas. Não havia outro menino para enviar. Então falou para Amanda, a menina mais velha:

– Use o lampião e ajude-os. – Sua voz raramente era ouvida naquela casa, mas ela tinha sempre dois poderes: ou acalmar completamente, ou aterrorizar. Ele estava usando a voz calma, o que levou a mãe a rir.

– Seus irmãos são uns trapalhões – Ela brincou. – Devem estar enrolados.

Um pouco hesitante, Amanda foi até a varanda e pegou o lampião. Ela já era uma mocinha, não tinha por que temer. Ravhina e Rebecca ficaram olhando a irmã pegar a luz que iluminava a varanda e, em meio a um círculo luminoso, marchar até o sino.

– Tarrence! Matt! – Ela começou a chamar quando chegou no meio do caminho. – Vocês estão aí? Tarrence! Matt!

Quando a luz chegou ao sino ele calou. Amanda ficou olhando para a escuridão, como se procurasse alguma coisa. Ergueu o lampião e rodou seu corpo, procurando alguém por perto. Ai sim Ravhina e Rebecca ficaram apavoradas, e olharam para os pais, assustadas. Examinando o sino, Amanda viu que uma corda meio amarrada pendia do gancho, uma indicação de que alguém tentara amarrá-la. Ela colocou o lampião no chão para liberar as mãos e terminar o trabalho. Então alguém a puxou para a escuridão, e o lampião ficou ali, solitário.

– Papai! Papai! – As duas meninas restantes gritaram ao mesmo tempo. – Tem alguém lá! Alguém pegou ela!

– Parem com isso! – O homem repreendeu. – Deve ser só uma brincadeira deles. Ravhina, vai buscar seus irmãos e mande-os parar com isso.

– Eu? Não pai, por favor. – Ela começou a chorar. – Eu estou com medo.

– Eles estão brincando, garota. Vai lá mandá-los parar com isso.

– Mas, pai.

– Sem mais. – Ele não precisava levantar o tom de voz para que ela imprimisse medo nas crianças. – Pegue uma vela e vá até lá.

Nesse momento a menina olhou mais uma vez pela janela, e a luz do lampião havia se apagado. Sem nem a luz da varanda, a fazenda ficava ainda mais escura. Tremendo, ela tomou uma vela e foi até a varanda.

– Tarrence! Matt! Amanda! Tarrence! – Ela chorava. – Parem com isso, estão me assustando.

Rebecca não viu o olhar que os pais trocaram. Sorrateiramente, a mãe foi até a porta da frente e a trancou. Nesse momento, o sino voltou a tocar. Ravhina deu dois passos para fora da varanda, depois mais um, e outro. Começou a caminhar em um ritmo tal que, se continuasse assim, só chegaria lá em duas horas.

– Papai... – Rebecca começou, mas nem sabia o que dizer. O sino parou de tocar, mas Ravhina ainda estava bem longe dele.

– É só uma brincadeira, minha filha. Não se preocupe. – Embora o pai tentasse acalmar sua filha, ele apertava a mesa com tanta força que, se pudesse, a quebraria. A vela de Ravhina caiu de repente e se apagou, ela gritou, mas seu grito foi abafado por alguma coisa. Rebecca e a mãe começaram a chorar.

– O que vocês estão fazendo?! – Ele explodiu. – É só uma brincadeira!

– Onde você está com a cabeça? – A mãe gritou também. – Onde EU estou com a cabeça? Por que você continua dizendo isso?!

Ele a agarrou e gritou em seu rosto.

– Porque nós não enviamos os nossos filhos para a morte! – As lágrimas finalmente rolaram pelo seu rosto. – Isso não pode ter acontecido. É só uma brincadeira.

A mãe o empurrou e voou até a porta, abrindo-a, e correu para a escuridão, gritando pelos filhos. O pai rosnou, tomou a última vela (deixando Rebecca na total escuridão) e foi atrás dela. A menina não quis olhar. O que ela ouviu foram breves gritos, um som de luta, e mais nada. Ao olhar pela janela, estava tão escuro quanto do lado de dentro da casa. A salvação da menina foi que ela não se deixou levar pelo pavor, mas tateou em direção ao abrigo de furacão, que ficava no subsolo da casa. A chave ficava sempre na porta, para um caso de emergência, então ela entrou e se trancou por dentro.

Nada aconteceu depois disso. A coisa não procurou por ela ou, se procurou, não encontrou. Havia suprimentos suficientes para a família toda passar dois dias lá embaixo, então a menina tinha tudo o que precisava por um bom tempo. No terceiro dia, entretanto, alguém bateu na porta; ela ficou bem quieta, tremendo de medo. Ouviu, contudo, a voz do seu tio, pelo que saiu e foi resgatada.

Os corpos dos pais e irmãos de Rebecca foram encontrados no dia seguinte. Eles tiveram seus olhos vazados por alguma coisa que literalmente sugou o cérebro deles pelos buracos dos olhos. A criatura ficou conhecida por um apelido que pode ser traduzido como “Fura-Olhos”. Desde então, outros relatos parecidos surgiram, não apenas nos Estados Unidos, mas também no México, América Central, e Colômbia, sempre relacionados ao ataque de uma criatura cuja verdadeira aparência não era conhecida, mas que matava suas vítimas com uma grande língua por meio da qual sugava o cérebro delas.

Se essa era mesmo a criatura que atacou sua mãe quando ele era um bebê, o Fura-Olhos chegou ao Brasil, e com toda uma Floresta Amazônica para se esconder (e esconder corpos), com certeza havia feito outras vítimas. Agora essa criatura estava, por algum motivo, atrás de Heloniel. Por quê?

IV

– Sim, foi isso mesmo que disse. – O Sr. Jazer falava, pelo telefone, com uma voz hesitante. Seu amigo Kauê estava ao seu lado, eles ligavam do telefone fixo dele. Como Heloniel desconfiou, o celular do amigo havia desaparecido na noite anterior, e foi ele que a criatura usou para enganá-lo. – Sua mãe foi morta por um monstro que sugou os miolos dela.

– E como nós dois escapamos?

– Eu peguei você no colo, nós pulamos a janela... corremos e... mas... bem, sua mãe acabou caindo...

Sentindo a emoção na voz do pai, Heloniel o permitiu parar. Já era o suficiente. Não foi tão fácil desconversar e se despedir dele, mas Heloniel finalmente conseguiu após alguns minutos. Então ele e Kauê começaram a discutir o que fazer. A ideia de Kauê era caçar o Fura-Olhos. Mas como, se ele era visivelmente inteligente, com poderes desconhecidos e possivelmente imortal? Como Kauê não tinha muito o que fazer mesmo, qualquer coisa que o amigo propusesse seria aceita. Finalmente, Heloniel teve uma ideia.

V

Eles estavam descendo o rio na pequena embarcação, que mal dava para os dois, há umas duas horas. Kauê estava com medo, já que era um rapaz mais urbano, mas Heloniel relembrava a infância e adolescência em que vivia navegando pelos rios que cortam a floresta. Eles então pararam e Heloniel arrastou o amigo por uma trilha, transmitindo certa segurança, como se estivesse andando no quintal de casa. Kauê ficaria maluco se soubesse que o amigo não fazia ideia de onde estava, nem de como voltar.

De qualquer maneira, os dois conversavam animadamente e falavam alto. Isso também fazia parte do plano de Heloniel, mas Kauê nem precisava saber disso, porque simplesmente não conseguia parar de falar perto do amigo. Heloniel ia na frente com um facão, cortando com habilidade alguns galhos finos que atrapalhavam o caminho.

Foi por volta do meio-dia que eles notaram um estranho efeito de eco na floresta. Demoraram para notar porque dificilmente calavam a boca, mas havia constantemente um eco suave. Quando Heloniel percebeu e chamou a atenção do companheiro para o fato, eles passaram a ouvir melhor. Cada pausa na tagarelice deles era seguida por uma repetição fraca e distante da última frase dita. Kauê brincou com isso várias vezes, gritando frases bobas para o eco repetir, mas Heloniel ficou mais atento e sisudo.

Ao anoitecer, eles se depararam com uma cabana no meio de uma clareira. Havia uma mulher sentada do lado de fora da casa, cozinhando algo em uma panela grande, que tinha um cheiro muito bom. Ela olhou para eles quando chegaram, e sorriu, um sorriso que Kauê interpretou como mera simpatia, mas Heloniel entendeu como algo tipo “eu estava esperando por vocês”.

Ele sabia que a coisa o estava perseguindo. Seu plano era ir para um lugar bem isolado com Kauê, onde o Fura-Olhos se sentisse confiante para atacar, e matá-lo. Ele sempre atacava de modo sorrateiro, então obrigá-lo a um confronto direto parecia ser a única coisa sensata a se fazer – ou passar o resto da vida apavorado com um inimigo que poderia atacar a qualquer momento. Mas agora, essa mulher, será que ela era o Fura-Olhos? Ela parecia mais baixa do que a criatura vestida de negro que ele havia visto em seu sonho e naquela noite quando quase foi atacado, mas quem sabe? Tinha algo de muito estranho no olhar dela, e uma forte intuição martelava no coração de Heloniel para que ele fosse embora.

Kauê era tão burro que nem desconfiou de nada. A mulher, que se vestia urbanamente, mas era claramente indígena, disse que seu marido havia ido caçar e não voltaria tão cedo, mas que eles poderiam ficar e passar a noite ali se quisessem. Foram alimentados com uma refeição farta, e ela parecia bastante amigável. Falava o português com certa dificuldade, e de vez em quando usava palavras em uma língua desconhecida. Sua voz era melódica e agradável.

Quando ficou tarde demais, a mulher preparou uma cama no chão para eles, colocando palha debaixo de lençóis para tornar o lugar minimamente confortável. Eles conversaram ainda bastante tempo – ou melhor, Kauê contava coisas para os outros dois, uma vez que Heloniel não parecia muito afim de falar desde que viu aquela mulher, e ela evitou completamente falar qualquer coisa sobre si mesma, limitando-se a fazer perguntas e incentivá-los a falar.

A única iluminação da cabana era uma grande vela em cima de uma mesa, ao lado da cama improvisada dos dois homens. A mulher, que disse se chamar Akna, dormia em uma grande e velha cama de madeira do outro lado da cabana, que só tinha um cômodo mesmo. Quando finalmente Kauê se cansou, eles se deitaram para dormir.

– Akna, me faz um favor? – Kauê usou a voz mais simpática que podia. – Posso apagar a vela? Eu tenho o sono muito leve, e ainda me sinto bem agitado por causa do dia que tivemos...

– Eu apago para você, querido. – Ela disse, sorrindo. Então uma grande língua bifurcada se esticou a partir da sua boca, atravessando toda a cabana, e abafou a chama da vela acessa, mergulhando-os em trevas. Antes da luz apagar eles ainda puderam ver por um instante seu rosto ficar retorcido, assustador, com grandes olhos famintos e cabelos agitados que lhe davam um ar selvagem. Ela estava olhando diretamente para eles nesse último momento, com um sorriso irônico em seu rosto.

Kauê se levantou e correu em direção à saída, mas Heloniel, lembrando-se que aquela criatura matou sua mãe, tomou o facão previamente preparado e correu na direção dela. Quando chegou lá, porém, ela havia desaparecido.

– O que está fazendo? – Kauê gritou para o amigo.

– Nós viemos aqui caçar aquela coisa, não viemos?

Heloniel saiu da cabana com o seu facão, e a mochila de Kauê, jogando-a para ele. Ela também tinha um facão amarrado, que ele desprendeu.

– Para onde ela foi? – Perguntou Kauê.

– Eu não sei... Droga! Era a oportunidade perfeita. Eu devia ter atacado ela de surpresa... Mas eu precisava ter certeza...

– E agora?

VI

Existem centenas de maneiras de morrer em uma floresta. Heloniel não era nenhum índio caçador, mas tinha experiência com a mata suficiente para saber disso. Ele havia subestimado o perigo de se estar perdido na selva em face de um perigo ainda maior, um sobrenatural. Na hora de retornar, entretanto, não apenas havia a possibilidade de um ataque furtivo do Fura-Olhos, mas todos os outros perigos de se andar na floresta à noite. Mas eles sobreviveram. Seu predador não tinha pressa.

O sol da manhã acordou Heloniel de um sono inquieto. Kauê estava bem atento, de guarda. Ele havia tido outra visão, mas não conseguia se lembrar. Depois de comer algumas frutas e beberem água de um riacho, caminharam por mais uma hora – em que notaram que aquele efeito de eco havia retornado, provavelmente provocado pelo Fura-Olhos –, até encontrar uma estrada de terra, grande o suficiente para passar dois caminhões lado a lado. O sinal do celular ainda não funcionava, então eles caminharam para qualquer direção, esperando chegar em qualquer lugar.

Mais adiante encontraram uma carroça abandonada, com duas mulas mortas. Mais do que isso, elas estavam deitadas sobre uma cama de suas próprias entranhas. As línguas negras e inchadas para fora da boca. Alguma coisa as havia atacado, comido alguns de seus órgãos, depois desistiu e as abandonou ali.

– Será que foi ele? – Perguntou Kauê.

– Talvez ele se alimente de animais quando está com muita fome. Mas essa carroça com certeza tinha um dono. Onde está o corpo?

– A pessoa pode ter conseguido escapar, e ele resolveu comer a montaria.

– Ou ele desapareceu com o corpo para não chamar a atenção. Essa criatura é muito furtiva e inteligente.

– Ou ele pode só estar brincando com você. – Kauê disse e não conseguiu segurar uma risadinha.

– Qual é a graça?! – Heloniel ia explodir de raiva, mas teve uma intuição. Ou, talvez, uma memória reprimida do sonho que teve. O companheiro estava bem ao seu lado, mas ele não quis olhá-lo. Apenas agarrou firmemente seu facão e esperou. Kauê percebeu.

– Até que enfim você descobriu.

– Há quanto tempo?

– Desde o começo.

– Desde que viemos para a floresta?

– Antes.

– Desde o dia em que você se passou pelo Kauê no celular?

– Não, antes.

– Ora, então desde quando? Desde quando finge ser o Kauê?

– Desde antes de você conhecê-lo. Há dez anos. Eu estive te espreitando por todo esse tempo, brincando com você.

– Por que eu?

– Vingança. O teu pai matou o meu pai.

– Pai? Como assim? Você é humano, então?

– Claro que não! Nós, como a maioria das criaturas, temos pai e mãe. Quando o meu pai matou a tua mãe, o teu o caçou por dias e conseguiu matá-lo. Eu era só um filhote na época. Então eu resolvi me vingar, da...

– Pera ai, nós? – Heloniel apertou o facão com ainda mais força. – Vocês são vários?

– Somos uma legião. Somos muitos.

Heloniel rapidamente virou o rosto para não ser atacado nos olhos e tentou acertar a cabeça da criatura com o facão, mas o Fura-Olhos desviou e tentou atingi-lo com sua língua bifurcada, fazendo dois furos na nuca de sua vítima. A ponta de sua língua não era afiada o suficiente, de modo que o ferimento não era tão grave. Então Heloniel fez a única coisa razoável em uma situação como essas, saiu correndo com todas as forças.

Mas seu predador não tinha pressa. Fura-Olhos, anhangá, doppelgänger, como quiser chamar, ele pode se transformar no que quiser, de modo que tem muitos truques na manga quando decide aterrorizar alguém. Bastava esperar a hora que fosse mais divertida. Por isso, ele se contentou em se transformar em uma curica, de cabeça negra e plumagem verde e amarela, e levantar voo. Rapidamente, seus irmãos assumiram a mesma forma e saíram de dentro da mata, formando um grande bando que voou em direção à cidade mais próxima.