OS FANTASMAS DO CASARÃO.

Brasil. Ano de 1820. -"Corre, Januário!!! Eles estão perto!!!" O rapazote mais velho puxou o braço direito do outro. Ofegante, Ernesto ouviu os latidos dos cães. O canavial parecia não ter fim. Os braços cortados pelas folhas de cana de açúcar. Uma coceira danada. O suor escorrendo das testas. A boca seca. Olhos atentos. Uma trilha. A estradinha de terra. -" O rio Jaguari. Ele é nossa salvação!!!!" Disse Januário, de dezesseis anos. Ernesto, de quatorze, colocou as mãos na cintura. -" Estou cansado. Não aguento mais!!!" Um tropel de cavalos. Gritos. Latidos ferozes. Os dois escravos fugitivos seguiram correndo pela estradinha. Num certo ponto, pisaram em folhas e entraram no canavial. Deram uma grande volta e seguiram para o rio. Eles se abraçaram. -"Despistamos o capitão do mato, Janu!!! Liberdade!!!!" Gritou Ernesto, eufórico. Eles pularam na água, felizes. Os dois traziam nas costas as marcas do chicote, no tronco da fazenda Aliança. A mata ciliar era uma importante aliada pois serviria de esconderijo a eles. Decidiram seguir o rio, a gosto da correnteza. A noite caiu. Não escutaram mais latidos. Era sinal que os perseguidores desistiram da captura!!! Talvez sim, talvez não. O capitão Raimundo não tinha o apelido de abutre por acaso. Poucos tinham escapado dele. Por isso, os rapazes desceram o rio no mais profundo silêncio. Só as cabeças, com folhagens como camuflagem, pra fora d'água. Os olhos amedrontados. A lua cheia não colaborava muito. A noite toda dentro d'água. O dia se preparava pra nascer, quando Januário viu um casarão branco, na confluência do rio Jaguari com o rio Atibaia. Ali era a cabeceira do rio Piracicaba. Um imponente casarão em arquitetura colonial em taipa de pilão. Os rapazes ficaram admirados. -" Vamos pedir comida, Ernesto!!!! Ali têm inúmeros negros, veja!!!!" Alguns escravos arrumavam os feixes de cana sobre um carro de boi. -" Melhor a gente se virar com goiabas, irmão. Não vamos sair da água!!!!" Quatro escravas traziam cestos nas cabeças. Estavam cheios de mamão e banana. Cantavam cantos afros. Januário e Ernesto saíram do rio. Os escravos do casarão da fazenda Salto Grande se assustaram. Faziam sinais mas os rapazotes não entendiam. Eram sinais de perigo. Januário pediu ajuda e comida em seu dialeto. Os outros não entendiam. Fingiam trabalhar normalmente. Januário escutou um zunido no ar. O couro de um chicote rapidamente circundou seu pescoço. O rapaz foi puxado e jogado ao chão. Ernesto se virou. Ele caiu de joelhos, mãos na cabeça. Estavam cercados por oito cavaleiros. O capitão Raimundo, um mulato, gargalhava alto. -" Imbecis. Só poderiam estar no rio!!!" Os dois foram amarrados, enquanto levavam tapas e chutes. O senhor do casarão veio verificar o ocorrido. Seus familiares o seguiram. -" Parabéns, capitão!!! Sua fama é verdadeira." O mulato, caçador de escravos fujões, sorriu. Colocou fumo na palha seca de milho. Enrolou o cigarro com carinho. Deu um tapa em Ernesto, cortando sua boca com o anel de prata. -" São jovens e fortes. Bons corredores e nadadores!!! O amigo tem interesse????" O rico fazendeiro mediu os fugitivos. -" Tenho alguns imigrantes italianos em mira. Esses dois, porém, servirão no engenho. Quanto quer por essas peças????" O capitão olhou para seus amigos. Não poderia cobrar o preço justo visto que não era o dono legítimo deles. O capitão diria, ao seu senhor, que os dois rapazes tinham escapado!! Ele e seus homens dividiriam o dinheiro. E assim, Januário e Ernesto foram integrados àquele casarão, construído entre 1799 e 1810. Com o tempo, aprenderam a falar português. Januário se casou com Dolores, uma escrava com olhos de jabuticaba. Tiveram seis filhos. A guerra de Secessão, em 1861, nos Estados Unidos, desencadeou a vinda de famílias norte americanas pra fazenda. Eles trouxeram maquinários agrícolas e impulsionaram o desenvolvimento de outras áreas. Ernesto se casou com Mariana, natural de Angola. Tiveram cinco filhos. Januário e Ernesto presenciaram a compra do casarão por Clement Willmot, em 1886. Ele instalou uma fábrica de tecidos, a fim de confeccionar roupas para os escravos. Chamou a tecelagem de Carioba, em tupi, pano branco. Em 1901, Franz Muller comprou a tecelagem, tão importante na história do desenvolvimento de Americana!! Tombado em 1982 pelo Condephaat, o casarão hoje abriga o Museu Histórico Pedagógico Doutor João da Silva Carrão. Pedro Gabriel deu um grito assustador. Meia noite no apartamento 202. O garoto de onze anos suava frio. Os pais entraram no quarto do filho. Danielle trouxe água. Fernando acariciou o filho. -" Vamos pra nossa cama, Pedrinho!!! Vai dormir com a gente. Está tudo bem!!!!!" O filho soluçava. -" Os escravos apanhavam muito, papai!! Eu vi. Eu vi tudo." Fernando olhou pra esposa. -" Esse passeio ao casarão de Americana mexe com a gente. É um passeio de escola, lindo e emocionante. Você ficou impressionado, meu amor!!!" Disse Danielle. Pedrinho, nos braços do pai, olhou para sua cama vazia. Os fantasmas de Januário e Ernesto acenaram para ele. Danielle apagou a luz e fechou o quarto do filho. Januário e Ernesto saíram e olharam a grande cidade iluminada, com seus prédios, viadutos e avenidas movimentadas. -" Tudo começou em Carioba, Janu!!!" Disse Ernesto. Chegando na fazenda Salto Grande, atualmente um museu, eles sorriram. Viram uma grande movimentação de escravos, todos com roupas brancas reluzentes. Uma fogueira. Batuques e festa. Cantos festivos celebrando a abolição. Januário e Ernesto se juntaram aos irmãos de senzala. FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 13/11/2019
Reeditado em 14/11/2019
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