Fuga

Júlia Gomes piscou diversas vezes antes conseguir manter os olhos abertos. A visão turva e a sensação que o cérebro estava maior que caixa craniana, forçaram caretas involuntárias. Uma fraca tentativa de mover o rosto, colado ao chão vermelho, recomendou esperar um pouco mais. Deixou as pálpebras caírem e, antes que sua mente fosse a um outro passeio, manteve a língua forçando contra a parede dos dentes da frente.

Os dedos das mãos foram os primeiros dar o “Ok”. E, gradualmente, todos os membros recuperaram suas funções. A dor no rosto era suportável. Ela sentiu que uma parte ficou lá, arrancada a sangue frio, quando levantou. Apertou os olhos até duas lágrimas correrem pelo vale dos sofrimentos.

Com o corpo mais ou menos numa posição de noventa graus, cambaleou ao encontro de uma parede. Encostou as costas lá e ficou ouvindo a respiração pesada, entrando e saindo, alternadamente pela boca e nariz. A cabeça feito uma bexiga na mão de uma criança.

Sentou-se numa posição em que todo o ambiente estava disponível. Quatro arautos com um papel verde-claro cobrindo toda a extensão, cercavam-na por todos os lados. Haviam pequenas manchas brancas ou desenhos feitos a mão, que a fez lembrar de salas de hospitais pediátricos. O teto, naquela visão nada confiável, era branco. O piso em cerâmica vermelha, daquelas grandes. E a porta… não havia porta.

Entre os vários vestígios captados pelo nariz, um deles fez Júlia lembrar do início da noite passada. Ou será que ainda é noite?

Estava passando o pano no chão do corredor, ao som de um rock qualquer dos anos 1980. Sentou-se numa cadeira de balanço, olhando para a cama, imaginando que horas César chegaria, de novo. A vassoura numa mão e a garrafa da sexta e última cerveja da promoção, na outra. Era só continuar ali, aguardando que logo, logo sentiria o cheiro de algum perfume diferente daquele que tinha em casa. Olhou o relógio de passarinhos que cantavam uma melodia para cada hora. Em trinta minutos um canário belga avisaria 23h.

Uma chave forçando uma fechadura. Bêbado, confundindo as chaves. Devagar e perto demais para ser a porta de entrada. Têm mais alguém na casa? Não! Fernandinho estava na rua desde cedo. O César ainda está por aí, então…

Júlia a pôs o casco de cerveja ao lado e apertou o cabo do rodo até sentir que ele só sairia das suas mãos em pedaços. Deitou-se no chão, olhando para a porta.

Não tem ninguém em casa!

O som do sucesso da chave e o rangido das dobradiças pedindo socorro fez ela sentir o cabo escorregadio. Limpou uma mão de cada vez, sempre apertando com o máximo de força.

A luz da sala desligou. Faltou energia?

O corredor e o quarto continuavam bem iluminados. Deve ter queimado. Só pode ser isso. Não tem ninguém aqui. É só levantar, trancar essa porta e ir dormir. Só isso.

Passos correndo furtivamente, de um lado a outro até o breu tomar conta do corredor.

Algo que estava descendo pela garganta de Júlia travou no meio do caminho e ela tossiu. Não faz isso, sua idiota. Vai dizer exatamente onde você está! MEU DEUS! Não tem ninguém em casa. Não tem! Não teeeeeem!

Essas luzes que estão com problemas. Um bom eletricista vai resolver. O César conhece um rapaz bom, que faz um preci…

Passos lentos e pesados vindo em direção ao quarto. Estacionaram no limite de onde dava para ver apenas uma silhueta.

Ela fechou os olhos. E através das pálpebras, sentiu a escuridão engolir tudo.

Júlia abriu os olhos com um espasmo. Bateu a cabeça na parede atrás de si. Virou-se e seguiu o olhar na vertical, subindo até o encontro de uma pequena saliência. Um ponto em que estava descascando.

Levantou-se, apoiando as mãos no papel verde-claro, sentindo um inconfundível cheiro de cola. O formato retangular com um triângulo invertido, com a ponta descolada, não deixava dúvidas.

Deu um passo atrás e, um pouco acima de onde estava o envelope, havia um marcador digital. Ou talvez fosse apenas um relógio desligado. Tinha a mesma coloração repulsiva das paredes.

Girou sobre o calcanhar esquerdo até encontrar o segundo, o terceiro… Cercavam-na em todas as direções. Júlia olhava para algum ponto distante no horizonte verde-claro; o subconsciente boiando num lago escuro e frio, sob o som de gotas que guilhotinavam o silêncio.

Cinco emissários do caos, aparentemente sem nenhuma conexão, ou, pelo menos era nisso que ela estava tentando acreditar, a cercavam. Precisava enfrentá-los. Tinha que sair da zona segura. Estava bem ali, a menos de três passos em qualquer direção. Nem precisava ficar de olhos abertos. Bastava ir com um braço esticado e, quando tocasse, faria o necessário. Só uma dose de coragem. Só isso!

A sra. Gomes olhou para o chão e contou as cerâmicas de onde estava até chegar ao envelope à sua frente. Quatro! Aquilo não era nada de outro mundo. Se fosse acontecer algo, ela preferia não ver. Fechou os olhos esticou o braço direito. Ofegava, com o coração aproximando-se cada vez mais da garganta.

Sem levantar a perna, arrastou um pé após o outro, bem devagar, em direção a parede.

Vamos lá, garota! Você sabe o que precisa fazer. A gente precisa saber o que tem ali. Talvez, até tenha uma pista de como sair desse inferno, pensou ela.

Tocou a parede, com a inquietação de alguém que está prestes a vomitar. A semente do desespero brotou em sua mente, com raízes profundas demais para serem cultivadas.

A mão desceu mais rápido que o planejado — se é que ela realmente havia planejado algo. Existia uma sequência única de ações. Não precisava pensar muito sobre o assunto. Bastava fazer o lógico. Levantou a parte solta. Pronto! Abriu os olhos e viu um triângulo amarelo, agora virado para cima. O algarismo 2 estava escrito em vermelho.

Enxugou as mãos no cabelo, olhando para a sequência numérica.

O centro do quarto ainda era o local mais seguro. Sentou-se com as pernas cruzadas e fitou o envelope número um.

Ficou ali, com as mãos apoiadas nos joelhos por alguns segundos, observando o infinito e pensando em sua família. Será que já estão procurando por mim?, pensou, por quanto tempo será que estou longe…

Levantou-se e deu um pulo até a parede a frente. Hesitou antes de tocá-l. Com a mãos úmidas, sacudiu-as e engordou ainda mais os cabelos. Fechou os olhos, respirou forte.

No interior havia um pequeno cartão vermelho, com rosas em alto-relevo, como um convite de casamento. Isso a fez lembrar de próprio casamento.

“Júlia, pare de se enganar! Você sabe que César está te traindo com Mônica.”

E um pouco mais abaixo, uma simples e aterradora palavra:

“Fuja!”

Algo invisível e grande voltou pela garganta, pulsando e empurrando tudo. Olhos fixos nas letras embaralhadas na consciência. As mãos adormeceram e ela deixou o papel flutuar até tocar o piso vermelho, arrastando-se pelo tempo, como quando se está com dor.

Júlia passou a língua entre os lábios. Um gosto desconhecido e repleto de lembranças inundou os pensamentos. Enxugou o rosto com as costas da mão. E-ele me ama, eu sei disso!, pensou. Foi só uma vez que isso ia acontecendo. Porra! Mas a mônica… aquela vagabunda! Ele é homem e… não! Tenho que acreditar no meu marido.

— BEEEEP!, soou o relógio.

O relógio começou a trabalhar: uma contagem regressiva de cinco minutos. Júlia o olhou, não resistiu e riu. Risos falsos. Nada ali era engraçado, mas o desespero de não ter certeza de nada, era algo que valia um breve sorriso sem sentido.

Deixou-se cair e ficou de joelhos.

O contador marcando 4:49… 4:48… 4:47…

Lágrimas descarrilaram pelas curvas do rosto. A constante desconfiança que havia surgido após ela os pegar numa situação bem íntima, vinha causando inúmeras desavenças em casa, nos últimos dias. Por mais que haja suspeita, quando alguém diz, parece que a punhalada é maior.

A vontade de ficar por ali, só esperando o fim imprevisível era algo bem atraente. Mas… alguma faísca de ódio a levantou. Deu passo largo até a próxima parede – a número dois –, mas dessa vez não tocou o envelope. Examinou com afinco toda extensão, até onde suas mãos alcançaram, procurando algo que não tinha certeza. Sem tirar as mãos da parede, foi até a três e, na última, teve o mesmo resultado negativo.

Voltou e parou com a testa e mãos encostadas na parede dois. César e Mônica. Malditos! Será que mesmo? Que horas são? Porque esse quarto é verde? Aqui não é um bom lugar para morrer, não mesmo.

3:7… 3:6… 3:5…

Uma pequena dose de coragem surgiu num horizonte de nervos descontrolados. Caminhando com os dedos, alcançou o envelope número dois. Dentro havia uma folha de caderno de pauta simples, com linhas vermelhas, enrolada em forma de um cigarro. O gosto de sangue brotou no instante em que mordeu a bochecha. Engoliu e passou a língua, sentindo o local machucado. Desenrolou o papel e leu:

“Júlia, sua idiota! Pare de se enganar! Você sabe que não foi acidente coisa nenhuma. O Fernandinho matou aquele cara só para roubar e trocar tudo por drogas.

Fuja, não vale mais a pena.”

Ter um filho viciado é algo fácil de perceber, mas difícil de aceitar. Fernandinho vivia assustado. Havia raspado o cabelo. Estava magro, com dentes amarelados e olheiras que mais pareciam maquiagem. Usava quase sempre a mesma camisa vermelha desbotada e um short azul-marinho, que agora eram alguns números a mais que ele. Durante o dia, só era visto dormindo. Chegava muito tarde, só para comer qualquer coisa que sempre estava pronto na cozinha. Pegava uns trocados que ficavam soltos pela casa. Às vezes, quando não encontrava nada, algo sumia. No quarto dele, só restava o que não era possível levar sozinho.

César tentara interna-lo duas vezes, mas Júlia sempre disse que não era preciso. Era só fase. Há dois dias que não tinham notícias do filho, mas para ela estava tudo bem. Não era a primeira vez que isso acontecia. Provavelmente teria que ir buscá-lo na boca de fumo, novamente. Era só fase!

Uma voz conhecida começou a dizer:

— Júlia, você sabe que isso tudo é verdade. Estava à sua frente o tempo todo, sua babaca! Você não quis ver. É tudo culpa sua, Júlia… O tempo está acabando!

Talvez aquela voz não fosse real; apenas fruto de uma imaginação aterrorizada. Vagando em um mundo que só fazia sentido para ela, tentava acreditar que aquela fase logo ia passar e voltariam a viver bem. Dormir todas as noites em casa e almoçar aos domingos. Visitar os avós e ver os bezerros que haviam nascido no mês passado.

— Beeep!

2:59… 2:58… 2:57…

O som do contador a libertou daquela prisão mental. As palmas das mãos dormentes, estavam semelhante a folha de caderno, antes de abri-las e o sangue voltar a correr. Naquele estado, talvez a dor seja convertida em qualquer outra sensação.

Há frente dela, o envelope três, imponente como um juiz prestes a proferir a sentença. O triângulo amarelo em meio a imensidão verde-claro era desolador. Trazia-lhe inúmeros devaneios que se digladiavam, tentando fazê-la tomar alguma atitude.

Apoiou a mão ao lado do envelope. Encarando-o como se esperando que lhe dissesse que ia acabar logo, e tudo ali era apenas uma brincadeira. Mas aquele maldito só fazia um silêncio alto demais, que ecoava em sua mente, como um pingo d’água numa caverna escura e cheia de criaturas horríveis.

Dentro, uma folha de papel branco, dobrada no meio. Uma foto dela na parte superior esquerda, alguns dados pessoais e os últimos empregos, acompanhados de comentários agressivos.

“Não sei como você teve coragem de fazer isso, sua imunda!”, “É por isso que sua vida é uma merda!”, “Nunca vai ter mais que isso, sua porca!”

E no final estava escrito: “Júlia, fuja de tudo isso!”

Ela soltou a folha, encolhendo-se e tapando os ouvidos com as mãos.

Aquilo estava doendo.

Fugir para onde? E de que?

Olhou para a direito. Lá estava ele. O último juiz. A sentença final estava decretada, faltava só ela ler.

Afastou as mechas de cabelo engorduradas e molhadas de lágrimas. Era só aquilo que precisava. Nada mais. É só ir lá e resolver isso.

Engatinhou até o último arauto. Levantou-se com a pressa de um sentenciado à morte. Enfiou apenas as pontas dos dedos um pouco por dentro da borda. Graças a Deus! Não havia nenhum papel dentro. Nada de atormentador. Um alívio! Acabou a brincadeira. Não custava nada dar só um conferida.

No fundo do envelope, algo picou um dedo, fazendo uma mancha de sangue transparecer no verde-claro. A irracionalidade momentânea a fez acreditar que todos os órgãos soltaram um uivo e cada um tentou correr para um lado.

Você não precisa confirmar o que é. Apenas tire sua mão daí!

Espere o tempo passar.

Mas se acontecer algo ainda pior?

Agarrou a parte de cima, apertou os olhos e puxou.

Enquanto não visse nada, estava segura. Somente a mente faria sugestões involuntárias.

Marido infiel, filho drogado, vida profissional uma merda… não tem porque continuar. Você tem que fugir disso tudo. Fez o que pode e fracassou feio. Não merece mais nada. Sua chance passou. VAI LOGO!

— Beeep!

Abriu os olhos e soltou o pedaço de papel que ainda apertava, como se a vida que lhe restava dependesse daquilo. Deu dois passos atrás.

No centro amarelo, em letras garrafais vermelhas, misturado a gota de sangue, estava escrito: “FUJA!”

Aquela palavra que Júlia havia lido diversas vezes desde que acordara ali, ordenava sua única saída. Aquilo que havia furado o dedo era a chave para ir embora e deixar de lado todo esse sofrimento e descansar.

0:34… 0:33… 0:32…

Com a cabeça virada para o último monstro que enfrentou na vida, em meio a um pequeno lago rubro, sentia-se leve. Olhou para a nascente no pulso esquerdo. Sem dor e a visão embaçada; sorriu, dessa vez de alívio, e agradeceu em silêncio.

Uma tranca abrindo. Uma porta forçada. Um papel rasgando.

Tentou mover o pescoço na direção de onde vinham os sons, no lado oposto. Só escuridão. Estava bem. Não tinha mais com o que se preocupar. Ela tinha fugido.

Ouviu, pela última vez aquela voz conhecida:

— Deu certo, pai.