A jóia de sangue - CLTS 09

O vento gélido lhe castigava a face e fazia doer as orelhas. Desde que, começou a subir sentia que estava sendo observada. Os ruídos na noite são poucos, mas muito audíveis. A fraca luz do lampião permitia enxergar pouco. Ouviu um barulho na mata, a sua esquerda, bem próximo. Parou para ouvir e tentar enxergar, uma fina névoa atrapalhava ainda mais a visão. Ouviu o barulho novamente dessa vez mais próximo. O frio na barriga, coração batendo forte, pronta para reagir. As histórias daquele lugar ocuparam sua mente, e não eram nada boas. Era melhor se preparar, sacou a machadinha que usava como arma principal.

Os arbustos se mexiam a sua frente. Decidiu não avançar, a cautela e o sangue-frio sempre foram seus pontos fortes.

Saiu da mata um rápido vulto. Saiu se debatendo em suas pernas um enorme roedor. Respirou fundo seguiu em direção ao topo da montanha.

-Falta pouco — Resmungou.

O vento no topo da montanha era bem mais intenso e dificultava a caminhada, mesmo assim já era possível ver o casebre de pedra a beira do precipício. Também se via fumaça saindo pela chaminé. Foi um sacrifício enorme chegar até ali, não podia desistir agora. A última semana viajando, praticamente sem parar a havia deixado exaurida.

Chegou a porta da pequena casa muito bem feita de pedras sobrepostas. Bateu uma vez, não houve resposta. A sensação de estar sendo vigiada lhe incomodou tanto que se virou para todos os lados. Nada enxergou.

— São os fantasmas do passado — Pensou.

Bateu tão forte na segunda vez, que a frágil porta de madeira se abriu fazendo um ranger de dar arrepios.

Com a porta aberta foi entrando. O cômodo era pequeno, nele havia apenas um baú, uma cama, duas cadeiras e uma lareira com uma caldeira no fogo. Ao lado da lareira havia uma espécie de forja e materiais para tal. Fechou a porta e foi se aquecer. Pegou uma das cadeiras de balanço e se sentou em frente ao fogo. Acabou adormecendo.

Alguém entrou pela porta, despertou com um salto já se postando de pé, coração acelerado, olhos vidrados. Realmente era ele.

O homem tinha uma aparência centenária e se apoiava em um cajado. Sua voz cortou o silêncio:

— Não se pode nem tirar a água do joelho, que o velhote tem sua casa invadida. Só poderia ser você, ou alguém que tivesse roubado a sua joia, só por isso entrou aqui.

A jovem olhou para os cantos do casebre, sua voz era doce e aveludada:

— Bela casa mestre. Você não perde essa mania de ter como segurança homens-lobos? Eram eles lá fora? Perguntou agora desconfiando do que a observava lá fora.

— Não posso deixá-los desamparados, ninguém os quer por perto. O alto de uma montanha me parece um bom lugar para viverem. Eles são ótimos seguranças. Só essa porcaria de joia que eu mesmo forjei para repeli-los. — respondeu o homem.

— Com certeza não foi para falar de homens-lobos que está aqui. — continuou

— Você já foi mais hospitaleiro mestre Cig. — retrucou a jovem.

— Você invadiu minha casa, sentou em minhas cadeiras e quer mais hospitalidade? — Agora o tom do velho era zangado.

— Bom já que perguntou um chá seria bom. Disse a moça, tentando descontrair.

- Fray, não sei se você reparou, mas estou velho e cansado. Você não atravessou a região inteira para me perguntar sobre homens-lobos, então o que é? — Insistiu.

Disse isso entregando uma caneca de chá de morangos negros.

— Bom, ela voltou. — disse a moça com ar sério.

Sem dar muita importância o velho disse:

-Você não pode com ela?

A moça desviou o olhar e depois de uma longa pausa respondeu:

— Na verdade, Cigmun, nenhum de nós pode, só sobrevivi por causa da joia. Não sabemos o que fazer, você é a nossa última esperança, nos ajude por favor. Ela está mais poderosa do que nunca.

— Deixe-me ver a joia.-disse o velhote.

Tomou em suas mãos o cristal em forma de gota. Tinha um líquido escuro dentro.

— Minha nossa. Não vai aguentar muito tempo.

Exclamou Cigmun.

— Durma Fray, partiremos ao amanhecer. Não temos tempo a perder. — ordenou o homem.

Na manhã seguinte, desceram a montanha. No sopé, Fray teve uma surpresa:

— Onde estão os cavalos?

— Com sorte fugiram, esqueceu que tenho homens-lobos como segurança? Respondeu o homem visivelmente desapontado.

— Tomara que tenham conseguido escapar. — choramingou Fray, seu olhar era desolador.

— Vamos ao vilarejo lá conseguiremos tudo o que precisarmos. — Disse o pequeno senhor movendo-se depressa.

O dia estava chegando na metade quando chegaram ao lugar, rapidamente compraram provisões e cavalos, partiram.

A viagem demorou uma semana, nela Cigmun não falou praticamente nada, e tudo o que falava, ele mesmo respondia.

Se aproximaram da cidadela, podiam vê-la ao longe. Pararam em um posto de vigia avançado.

— Ouça bem Fray, preciso de alguém sem pecado para usar a joia.

— E essa pessoa não sou eu? — Disse a jovem um pouco contrariada.

— Não seja tola, você se rendeu aos pecados mundanos, até tomou o sangue da joia para ficar jovem, ou pensa que não observei quanto tempo passou? — Resmungou o homem.

— Isso diminui consideravelmente o poder dela. — Continuou.

— Vá e consiga alguma criança, a menor que conseguir caminhar sem se apoiar e que tenha problemas para dormir. — Ordenou.

- Porque? — disse a moça sem entender.

— Deixe de perguntas e vá menina. Disse o velhote rosnando.

Ao entardecer Fray chegou com um pequeno menino aos prantos, não devia ter mais que cinco anos.

Quando viu o velho o menino se acalmou, alguma coisa nele emanava paz.

— Como se chama garoto? — Disse Cigmun.

- Stélio, senhor. — Disse o garoto enxugando o rosto.

Tudo ficará bem, o velho passou a mão bastante endurecida pelo tempo no rosto do rapazinho que pegou no sono de imediato.

— Como sabe que esse vai servir? Indagou Fray baixinho.

— Apenas sei, e você faz perguntas demais. Vamos colocar em prática o plano. Vou lá pra dentro com ele. Fique de vigia, quando o menino sair abra a carta, você não vai vê-lo, mas sentirá sua energia. — Orientou o velho rigorosamente.

A cidadela estava vazia, ninguém na rua ao cair da noite. O vento frio balançava as janelas das casas mais simples. Calmamente o garoto caminhava pela avenida principal carregando um cajado, sem ser visto. Chegou ao fim da rua. Lá estava a Igreja. De dentro dela ouviu um barulho. O menino contornou a igreja desviando a porta da frente. Quando entrou na igreja pela porta lateral observou que havia uma linda garotinha, olhos cor de mel. Um calafrio percorreu sua espinha, e o fez tremer. Seus lindos olhos se transformaram ardentes em fúria, seu corpo se movia estranhamente, objetos voavam por todos os lados, a menina gritava palavrões horríveis, e mordia o próprio corpo até sangrar. Aquela frágil menina sobreviveria tanto tempo quanto a anterior, que jazia no chão ensanguentado. O menino desferiu violentos golpes de cajado na menina. Começou a rezar:

— Criatura sombria, volte para a escuridão de onde veio, você não é bem-vinda aqui na casa do Senhor. — Disse o garoto.

A risada maléfica retumbava nos cantos da Igreja:

- Cigmun posso não te ver, mas hoje vou te derrotar. — Disse a menina com uma voz que não era dela.

— Jamais vencerá um servo de Deus, criatura maligna, saia desse corpo puro e sadio, e volte as profundezas. — A voz do menino era grave e firme.

Estranhamente as orações e o cajado não estavam funcionando.

— Ordeno que vá embora, não há nada para ti aqui serva do mal. — Prosseguiu o garoto.

— É inútil Cigmun. Olhe para trás e descobrirá. — Disse a menina com um pedaço da própria carne na boca.

Espantado o garoto olha para trás. Lá está Fray, com o corpo do velho em transe pronto para a degola, agarrando-o pelos longos cabelos grisalhos.

— Não é nada pessoal mestre, só negócios. — Disse Fray com um sorriso psicótico estampando o rosto de curvas suaves.

— Fray minha pequena… — foram as últimas palavras que Cigmun proferiu em vida, ainda dentro do corpo do menino.

Fray soltou o cadáver do velho, profanando o templo sagrado. O menino voltou a si, não conseguiu ficar acordado tamanha a força que o procedimento exigiu, Fray tomou a joia do pescoço do pequeno e abriu os braços dizendo:

— Wondak, venha agora seremos invencíveis, o espírito negro deixou o corpo sem vida da garotinha. Agora Wondak e Fray eram apenas um ser. Tomaram o restante do sangue da jóia, sangue dos anjos.

— Hoje é um grande dia, o único que poderia nos derrotar sucumbiu. Disse a voz duplicada do demônio cada vez mais forte.

Carta a Fray

Vou invadir o corpo do menino, pois ele é puro, e o problema de sono dele facilitará a minha entrada. Usando a joia, ela não me verá, criaturas sombrias e pecadores não podem ver quem usa a joia. Se ela não me ver posso derrotá-la, ela só tem poder no que vê. Você Fray minha querida, cuidará do meu corpo porque estarei inútil e em transe, confio em você, mesmo sabendo que você se desviou do caminho. Cometemos muitos erros, eu e você. O mundo é um lugar ruim, mas podemos ajudar a torná-lo melhor.

Esse conto participou do CLTS 09, categoria magia.

Confira a continuação no link abaixo:

https://www.recantodasletras.com.br/contos/6871377

CosmoKAoS
Enviado por CosmoKAoS em 09/11/2019
Reeditado em 17/05/2020
Código do texto: T6790990
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