SEM CONTROLE - CLTS 09

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O paciente deu entrada na unidade de urgência/emergência às 20 horas e 12 minutos. Apresentava variação coronária arrítmica, sudorese excessiva e lapsos de consciência alternados. Os sintomas indicavam abuso de drogas e assim recebeu o primeiro tratamento: medicação intravenosa para hidratação e inibição das sinapses neuro-celulares. Foi deixado em observação no quarto 117 da enfermaria B, destinada a casos intermediários. Visitei o paciente às 04 horas da manhã e deparei-me com o individuo completamente lúcido, sentado na cama e fitando severamente a janela do quarto.

Aproveitando de sua aparente indiferença quanto à minha pessoa, realizei a inspeção clínica habitual sobre as condições corporais. Idade entre 25 a 35 anos, altura média, compleição caucasiana-européia, mais situada ao leste do continente, olhos claros, cabelo liso e com sinais de vivacidade, pele normal, sem hematomas ou eczemas característicos do vício em narcóticos. Diria que gozava de boa saúde e assim, absorto na análise médica superficial, não notei que a atenção do elemento havia se voltado para mim. Confesso que me assustei um tanto ao ver sobre mim aqueles olhos frios e profundos perscrutando meus pensamentos.

Arrisquei um cumprimento educado, o qual não obteve resposta, apenas a mesma impressão de dúvida de quem é acordado às pressas de sono profundo. Depois de poucos instantes em observação muda e mútua, decidi que a situação havia de ser encerrada, pois precipitava para o cômico. Então posicionei o estetoscópio para auscultar coração e pulmões do paciente e caminhei em sua direção.

Diante da minha ação, o homem recuou assustado sobre a cama, indo encostar-se à cabeceira, enquanto movimentava cabeça e olhos para todos os lados à procura de uma rota de fuga, assim me pareceu. Levantei as mãos na intenção de acalmá-lo e ouvi sua voz pela primeira vez:

- Waar is ek? waar is ek?

O medo é idioma universal e foi tudo o que entendi da sua fala. Respondi que não entendia e por meio gestual traduzi minha incompreensão. Ele voltou a se pronunciar:

- Wat gaan aan? Wie is jy? Waar is my mense?

Meu olhar atônito e semblante assombrado devem tê-lo convencido de que era inócuo, pois desistiu de falar para apenas me olhar muito seriamente. A enfermeira da ronda entrou no quarto e nos encontrando do modo como estávamos, a nos encarar em silêncio, perguntou se algo estava errado. Expliquei que o paciente não dominava o idioma pátrio e estava assustado. Após observar o homem sobre a cama, ela sugeriu que eu procurasse o departamento de tradução, sempre havia alguém de plantão, bastaria apresentar a fita de gravação daquela unidade. Novamente, minha surpresa estampada na face não passou despercebida e ela me explicou que devido à intensa onda imigratória, autorizada ou invasiva, o governo havia implantado esse recurso em vários hospitais do país. Pedi a ela que providenciasse a solução enquanto eu ficaria vigiando o paciente. Ela acedeu e saiu. O paciente, testemunha do diálogo, nada mais disse.

Quase quarenta minutos depois do mais puro tédio, onde perquiri o homem diversas vezes sobre sua procedência e sempre sem resposta, a boa enfermeira reapareceu trazendo a tiracolo um jovem imberbe e grandes óculos com aros de tartaruga, calças rasgadas, tênis brancos e diversos livros sob os braços magros.

- Doutor, este é Jean Pierre, nosso tradutor plantonista – introduziu sem delongas, a enfermeira.

- Boa noite, doutor – disse o jovem.

- Olá, Jean Pierre – disse eu – E então? O que disse o homem? De onde ele é?

A enfermeira se despediu para continuar seu trabalho e nos deixou, os três, envolvidos naquele pequeno mistério.

A princípio, Jean Pierre aproximou-se do paciente, denotando bastante curiosidade e sem se preocupar com minha pergunta, dirigiu-se ao homem sem pedir minha permissão:

- Wat is jou naam? – falou.

- O quê você disse a ele, Jean – perguntei, tentando controlar minha insatisfação.

- Perguntei o nome dele, doutor – Jean Pierre respondeu sem me virar o rosto.

- Pois deveria ter me pedido ... – fui interrompido pelo paciente que disse:

- Ma naam us Wawnuir.

Jean Pierre esboçou um sorriso e no idioma estranho entabulou longa conversação com o paciente, da qual fui totalmente excluído. Quando estava a ponto de resolver tudo por outras vias, vi que o paciente estava mais tranqüilo e havia se deitado para, quase instantaneamente, entrar em repouso.

Ao intentar me dirigir a Jean Pierre, este levantou um dedo sobre os lábios, indicou-me a saída do quarto. Mas ora, como esse garoto era petulante! De todo modo, segui-o para fora. Ainda no corredor, iluminado fracamente por luzes de condução apenas, uma vez que era madrugada e para não incomodar os demais pacientes nos quartos, o jovem tradutor explicou-me o que havia ocorrido.

“O nome dele é Wawnuir. É africano. Do interior da África do Sul. Vive numa aldeia a leste de Botsuna com população total de vinte e três mil almas”, relatou o jovem.

Essa informação era importante e respondia muita coisa, entretanto, havia algo que não estava correto, eu sabia que não estava, apenas não conseguia atinar o que era. Enquanto estava nesse conflito interno, Jean Pierre, que havia buscado assento nas poltronas próximas, acendera um cigarro e me olhava divertido.

Aquilo realmente foi a gota de água em minha já sofrida quota de paciência.

- Mas que porcaria você acha que está fazendo, Jean? – quase gritei – aqui é um hospital e não se fuma em hospitais, garoto.

Parece que minha pequena exasperação apenas aumentou seu contentamento.

- Doutor, desculpe-me se transpareço minha ausência de respeito, mas me é impossível não verificar a imensa inutilidade da cultura ocidental e não rir de tudo.

Ao ouvir essas palavras, imaginei que o jovem deveria ter algum problema mental, talvez fosse meio tolo, contratado por inclusão dessas fatias reservadas a pessoas que, normalmente, estariam sob cuidados apenas das respectivas famílias. Porém, o brilho dos olhos do garoto desmentiam essa teoria. Havia convicção e certa moralidade.

- Claro que o senhor não é culpado disso – ele continuou – nenhum de vocês é, pois foram criados dessa forma, levados a crer que o mundo se resume aos seus instrumentos e livros. Na verdade, sinto mais pena que raiva ou desprezo.

- Meu jovem, vou tolerar esse seu comportamento por simples motivo de comiseração. Já fui arrogante como você um dia e ainda me lembro da sensação de tudo saber. Só por isso não vou tomar nenhuma providência. Só lhe peço que não toque mais nesse tipo de assunto comigo.

Jean Pierre acenou positivamente com a cabeça, o que me garantiu um pouco de paz comigo mesmo. E ao me preparar para ir embora, ele me perguntou:

- O senhor não está deixando passar nada, doutor?

- Como assim, sobre o paciente? Não, creio que não. Ele está bem, um pouco desorientado, o que é normal. O idioma foi detectado, possivelmente amanhã ele terá alta.

- Eu lhe disse, doutor, o nome dele e que o idioma era africano. Isso não lhe diz nada?

Realmente isso havia me alertado há pouco e eu não consegui resolver a questão. Estava cansado. Meu plantão terminaria em duas horas e o trabalho havia sido muito. Meu cérebro não estava tão atento. Muito provavelmente meus olhos traíam minha condição.

- Verifique a ficha do paciente em suas mãos, doutor – disse o jovem ainda sentado, de maneira condescendente.

Convenci-me que não seria nada demais atender o pedido do garoto, até porquê era o certo a fazer, já que teria de relatar o resultado de minha visita no prontuário. Abri o arquivo impresso em minhas mãos com os dados iniciais do paciente e a primeira coisa que notei foi seu nome: John Village Dalton – Inglês nascido em Liverpool.

- O nome dele é John e não Wawnuir – eu disse e levantei a cabeça.

Para minha surpresa, Jean Pierre não estava mais na poltrona. Na verdade, havia se posicionado a poucos centímetros de mim. Muito perto. Senti seu hálito e pude ver com clareza uma espinha na ponta do queixo, escondida sob os poucos fios da barba.

- John era o nome dele, doutor – o rapaz afirmou – agora é Wawnuir. Wawnuir Arangonolah e é meu irmão. Eu não sou Jean Pierre mais, sou Drawnir Arangonolah.

Estranhamente, sentia meu corpo entorpecido, como se anestesiado, apesar de manter plena consciência do que se passava. Pensei em ir embora novamente, mas as pernas não me obedeceram. Apenas deixei-me ser conduzido por Jean Pierre para sentar-me logo mais adiante.

- Doutor, as leis do seu país e de muitos outros países estão dificultando nossa entrada em suas fronteiras. Dizem que iríamos tomar conta de tudo, perverter seus valores e religião, dentre outras coisas.

Pelo canto do olho, vi quando a enfermeira que nos havia apresentado fez ao jovem um sinal de positivo ao passar pelo fim do corredor. O jovem prosseguiu:

- E o senhor pode estar certo disso, vamos mudar tudo mesmo. É nossa missão sagrada. Sua sociedade é uma ofensa. E uma vez que não poderíamos entrar legalmente, como era a intenção inicial, resolvemos buscar auxílio em forças mais poderosas que alfândegas, controle de barreiras, vigilância armada. E agora estamos mais aqui que nunca. Cada dia mais, cada vez, mais.

Descobri que minha sensação de torpor era equivalente ao transe hipnótico. Tentei desesperadamente gritar por socorro, lutar de alguma forma, mas minha visão estava se desvanecendo. O som da voz do garoto era só um zumbido longe. Ele não era nenhum jovenzinho. De alguma maneira, consegui enxergar sua verdadeira face. Era homem formado, quase 50 anos, alto, forte, negro. Havia sim, a seu lado, um garoto muito assustado, que logo identifiquei como sendo Jean Pierre, o legítimo Jean Pierre.

- Não se preocupe, doutor. Durante um tempo ainda, o senhor acompanhará sua nova vida e seu visitante, assim como Jean Pierre ainda está comigo aqui, mas depois, vocês partirão para onde devam ir. Não se preocupe. Não lhes faremos mal. Queremos apenas seus corpos. Queremos apenas viver em suas terras.

Nesse momento, eu estava num lago imenso, flutuando de costas na água, sem domínio de mim, apenas olhando para o céu até notar que uma pequena embarcação parecia vir ao meu encontro. Ao se aproximar o suficiente, um braço se estendeu em minha direção e me puxou para dentro.

- Você ficará aqui, doutor, por enquanto. Meu nome é Ryhgnah Vantula. Também sou médico na minha querida África e agora sou dono do seu corpo. Descanse.

Essas são minhas últimas lembranças da vida como médico inglês. Não sei o que se passa em minha casa, não tenho controle de nada. Todos os dias, escrevo essa história na praia onde ancoro a embarcação em que vivo desde quando tomei conhecimento da invasão dos imigrantes. Todos os dias, a história é apagada pelas ondas do mar.

FIM

Tema: Imigração

Olisomar Pires
Enviado por Olisomar Pires em 03/11/2019
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