O HALLOWEEN DE JUVENAL.

Juvenal, vinte e um anos. A maioria deles passados nas ruas da capital paulista. Perdera a mãe quando tinha seis anos. Pai desconhecido. Criado pelo velho tio severo, fugiu de casa aos dez, cansado de levar surras. Nunca frequentou uma sala de aula. Aprendeu a viver na dura realidade das ruas, pontes e avenidas. Aprendeu a ler com os demais garotos de rua. Ficou doente de tanto dormir ao relento, nas escadarias de mármore das igrejas ou em bancos de praças. Privado de tudo, marginalizado. A droga e o álcool eram companheiros. Um jovem que aparentava ter cinquenta anos a mais. Cabeludo. Barbudo. Roupas rasgadas e sujas. Um velho chinelo com prego. Cicatrizes nas pernas. Unhas pretas. De vez em quando recolhia latinhas de alumínio. Doente. A barriga doendo do lado. Tinha tonturas de vez em quando. Era um esqueleto ambulante o magro e alto Juvenal. No bolso apenas um documento de identidade amassado, cheio de durex. A garrafa de pinga na mão. Camisa listrada do Timão. As escadarias. Juvenal dormiria no cemitério da Ressurreição. Barriga roncando de fome. O jazigo da rica família Nunes de Albuquerque tinha um belo jardim, seis sepulturas e uma capelinha ideal para passar a noite. Dentro de um dos túmulos guardava um papelão, um cobertor fino, um pente, um pacote de bolachas vencido e algumas moedas. Era tudo que tinha. A chuva fina. Jogo da noite no Morumbi entre Corinthians e Palmeiras. Fim de jogo. Dois a zero para o Corinthians, eliminando o palestra da disputa pelo campeonato. Um grupo de seis torcedores palmeirenses, uniformizados, avistou o pobre Juvenal, antes que ele entrasse pela entrada lateral da cidade dos pés juntos. -" Corinthiano!! vamos pegar!!!" gritou um dos torcedores. Sem nada entender, Juvenal ficou paralisado. -" Quero apenas dormir. Sou da paz!!" Um soco direto no queixo fez o pobre rodopiar nos calcanhares. Um outro torcedor o segurou. -" Está chapado!! Bebinho da Silva" Socos e pontapés a vontade. Olho roxo, dentes quebrados, supercílio aberto e sangrando. Rasgaram sua calça. Juvenal nem reagia mais a tantos golpes. Abandonado no chão molhado. Desmaiado. Meia noite. Rasgaram sua camisa e foram embora ao ouvirem uma sirene policial. Meia hora depois, Juvenal despertou. Se arrastou para dentro do cemitério. Encharcado e todo dolorido. Engatinhando, conseguiu chegar ao jazigo luxuoso. Tirou a placa de bronze e deixou o corpo cair pra dentro da sepultura, visto que a chuva aumentara. Imobilizado pelas dores. Raios e trovoadas. Juvenal fez o sinal da cruz. -" Jesuizinho Cristim...hoje nem aguento rezar!!! Boa noite!!!" Juvenal adormeceu. Cemitério escuro e silencioso. Dia de Haloween. O dia das bruxas comemorado tanto nos Estados Unidos e que virou moda no Brasil. Sete da manhã. Juvenal acordou com a música alta das potentes caixas de som. Ele tirou a placa de bronze. A chuva tinha parado. O sol. Ele mal abriu o olho bom. O outro estava inchado, roxo. O cemitério estava repleto de gente vestida de monstros, caveiras, bruxas, vampiros, zumbis e alienígenas. Subiam nos jazigos e gritavam. Bebiam e fumavam. -" Jesus!! Morri e vim parar no inferno!! Gente mais feia!!!" Juvenal se apoiou na beirada da sepultura e saiu pra fora. O corpo doeu todinho. -" Aaaaaaaaaaaaaaaaiiiiiii...." O grito de dor saiu forte. Todos olharam pra ele. Juvenal rastejava pra fora de seu esconderijo. A correria foi geral em direção ao portão principal. Um dos rapazes, vestido de vampiro, foi ao palco. -" Tem um zumbi lá dentro!! Tem um morto vivo de verdade! Saiu da sepultura!!" O rapaz falava e tremia. -"Verdade, Oliveira!! Não estava aqui quando chegamos!! Horripilante e monstruoso!!! Pele e osso, maluco" Juvenal colocou-se de pé. Andando torto devido a dor na perna, o braço estava quebrado. Os lábios inchados pelos socos. Olhos fundos e vermelhos. Dentes pretos. Um cheiro ruim. O sangue escorrera da cabeça para o pescoço. O magrelo Juvenal viu a multidão abrir caminho. Juvenal causava medo. Alok parou o show. Repórteres tentavam entrevistar aquele homem. Juvenal era filmado e fotografado. -" Que irado!! Uma maquiagem perfeita, parece sangue de verdade!! Olha esse olho!!! Lindo!!!" Disse um rapaz, maquiador da Rede Globo. Os aplausos. Gritos histéricos. Juvenal sem nada entender. Dois homens levaram-no ao palco. -" Pessoal... temos um vencedor na categoria principal de melhor maquiagem monstruosa!!!" O apresentador ergueu o braço quebrado de Juvenal. Ele urrou de dor. Perguntaram seu nome. Sua voz quase não saiu. Falou bem baixinho. -" Juvenal" O apresentador vibrou. -" Juvenal... O nome do nosso monstrengo, pessoal ...Juvenal!!! Uma fantasia muito original. Parabéns!!!" Ele ia dizer dizer que não era maquiagem coisa nenhuma. Deram-lhe uma pequena medalha e um cheque de quatro mil reais. O show continuou com malabaristas e outros artistas. Juvenal desceu do palco com dificuldade. Queria ficar longe daquela música alta. Ficou sentado junto ao muro do cemitério. Adormeceu. Eram duas horas da tarde quando um casal parou pra ver aquele homem caído. Juvenal não respondeu aos chamados. O casal ligou para o SAMU. Juvenal foi levado ao pronto socorro. Um médico encontrou um corte profundo na cabeça. Braço quebrado. -" Sem documentos. Deve ter uns cinquenta anos!!! Esse coitado apanhou legal. Uma agressividade brutal!!! Lava e bota no soro, Jurema. Ele não passa de amanhã!!!!" Disse o doutor a enfermeira Jurema. Com a ajuda de outro enfermeiro, Jurema deu um banho no paciente desacordado, ali na maca mesmo. Juvenal, foi vestido com um roupão hospitalar. Jurema cortou seu cabelo e tirou sua barba. -" Meu Deus!!! Esse homem deve ter uns vinte e poucos anos!!!!" Jurema sentiu compaixão pelo paciente misterioso. Juvenal foi levado para um quarto da UTI. Soro ligado. Jurema foi a capela do hospital e rezou um minuto por seu paciente. Sempre fazia isso. A polícia foi chamada. Jurema levou os policiais ao quarto de Juvenal. -" Foi agredido, certamente!!" Disse a enfermeira. Juvenal deu sinais de melhoras, na manhã seguinte. Passou a noite dormindo. Abriu um olho. -"Onde estou???" Pensou. O soro. O braço com ataduras. Um roupão azul. Juvenal suspirou. Uma equipe médica entrou. Na prancheta ao pé da cama a situação do paciente sem nome. Jurema estava junto. Trouxera a medicação e o seu café da manhã. -" Bom dia, meu amigo. Jesus te ama e eu, Jurema, também. Graças a Deus você acordou!!!! Vou trocar o sorinho, ok??? Essa injeção vai doer mas é para o seu bem!!!!" Ela passou a mão no rosto dele. -"Vai ficar bom, querido. Se precisar de mim, aperte o botão vermelho que sua amiga Jurema vem!!!!" Jurema saiu. Juvenal foi levado pra exames de radiografia. Um enfermeiro tirou seu sangue. Outro colheu amostras de sua saliva. Era tardezinha quando apertou o botão vermelho. Queria ir ao banheiro. Jurema levou o suporte de soro. Juvenal foi apoiado por ela. Jurema acendeu a luz do banheiro. Juvenal se olhou no espelho. Assustado ao se ver sem barba e de cabelo raspado. O olho estava feio. A boca idem. Jurema o ajudou a voltar pra maca. A noite, apertou de novo o botão vermelho mas foi outro enfermeiro que o ajudou. No dia seguinte, Juvenal foi transferido para um quarto normal. Jurema trouxe seu café da manhã. Um copo de leite, iogurte, uma banana e um pão francês. Juvenal deixou cair uma lágrima ao receber tanto carinho. -"Bom dia, querido." Juvenal sorriu ao responder. -" Bom dia, Jurema!!!" A mulher ficou feliz. Juvenal foi se recuperando. Jurema sempre conversava com ele. Falava de Deus, de histórias do hospital e de casos pacientes recuperados. Juvenal disse a ela que era morador de rua. Isso não mudou nada no tratamento que Jurema lhe dava. Ela era muito otimista, comunicativa e simpática. -"Jurema não fala de sua família!!! Por quê?!???" Perguntou ele a outro enfermeiro. -" Vixe. Jurema tem uma vida difícil, Juvenal. Mora numa favela com o pai doente. Cria dois filhos pequenos. O marido a deixou há três anos!!! Ele batia muito nela. É uma guerreira." Juvenal teve alta, quatro dias depois. Sem endereço, não podia sair do hospital. Ele foi adotado pelos funcionários do hospital. -"Juvenal, preciso de alguém pra cuidar das crianças e do meu pai. Trabalho doze horas aqui e fico muito preocupada com eles. Posso te pagar meio salário!! Pode morar comigo!!!!" Juvenal ficou sem palavras. -" Sério?!?? Não é verdade!!!!" Jurema estava séria. -" Vou ter um prato de comida e um teto. Nem quero salário!!! Não quero dinheiro!!!" Eles se abraçaram. Juvenal chorou após Jurema sair. Ela deu seu endereço na administração como sendo o dele. Juvenal iria pra casa dela. Jurema levou roupas pra ele. A calça de seu pai ficou enorme nele. A ambulância o levou pra Heliópolis. Kamila e Kauê, de doze e oito anos respectivamente, gostaram dele de imediato. Seu Zé Maria, de sessenta anos, o pai de Jurema, ficou feliz com a chegada do rapaz. -"Terei um parceiro de truco, finalmente. O idoso cadeirante precisava de cuidados. Jurema chegou a noitinha. -" Esqueceu suas coisas no hospital, Juvenal." Ele sorriu. -"Coisas???!!! Uma calça rasgada e um chinelo???" Juvenal levantava cedo e tomava café com Jurema. Ela ia trabalhar no hospital. Juvenal levava as crianças na escola. Ele passou a dar banho no pai de Jurema. Iam juntos a praça e ao mercado. Uma semana depois, Juvenal aprendeu a cozinhar. Limpava a casa com capricho. Brincava muito com as crianças. Aprendia com elas enquanto faziam as tarefas da escola. Zé Maria contava histórias de sua mocidade. Juvenal engordara um pouco. Estava corado e alegre. Jurema inscreveu Juvenal no seu plano dentário. A enfermeira, vinte anos a mais que ele, dizia que ele era um anjo em sua vida. -"Vai fazer supletivo a noite, Juvenal. Sem estudos tudo fica mais difícil!!!" Zé Maria e as crianças assistiam tevê. -" Poderá até encontrar uma namorada na escola, Juvenal!!!!" Disse o idoso. Jurema ficou sem jeito. Roeu as unhas. -"Quando é seu aniversário, Juvenal???" Perguntou Kamila. O moço ficou sem jeito. -" Sei não. Tenho que ver na identidade que tá na sacolinha, no cemitério!!!! Vou buscar a identidade hoje a noite!!!" No dia seguinte, Jurema deu um celular de presente a Juvenal. -" Vai precisar dele pra gente se comunicar, Juvenal!!! Vai mexendo nele pra aprender a usar!!!!" Juvenal a abraçou, grato. Dias depois, Zé Maria sentiu uma dor no peito. O idoso caiu da cadeira de rodas. Juvenal o colocou na cama e ligou para Jurema. A ambulância chegou rapidinho. Zé Maria teve um pequeno AVC. Ficou internado dois dias, no mesmo hospital onde Jurema trabalhava. Zé Maria precisava fazer uma bateria de exames. Uma cirurgia cara. Remédios. Juvenal notou a preocupação de Jurema com o pai, já em casa. -"Aonde vou arrumar três mil reais???? Terei que fazer um empréstimo!!!!" As crianças dormiam. Juvenal foi ao seu quarto. A sacolinha com suas coisas. A calça velha estava lá. Mexeu nos bolsos. O cheque. Juvenal o beijou. Retornou a sala, sorrindo. Estendeu o cheque a mulher. -" Presente pra você, Jurema!!!! É seu!!! Vai ser útil ao seu pai!! Meu pai de coração!!!!" Jurema olhou o valor. -" Pra mim?? Onde arrumou tanto dinheiro?!!?" Juvenal deu de ombros. -"Sei lá. No cemitério, uns malucos me deram, junto dessa medalha!!! Me confundiram com um zumbi!!!" Jurema sorriu. -" É.... naquele dia você estava um morto vivo. Dava medo!!!!" Jurema chorava. -" Ainda bem que você me viu com os olhos do coração. Cuidou de mim!! Muito obrigado!" Jurema o abraçou. -" Sou eu que agradeço, meu querido!!!" Juvenal não queria mais sair daquele abraço. Jurema também não. Zé Maria veio do quarto, na cadeira de rodas, querendo água pra tomar um remédio. -"Jurema. Hora do meu comprimido pra...." Ele parou de falar ao ver o beijo de Jurema e Juvenal. O pai de Jurema retornou ao quarto, sorrindo. Deu tudo certo na cirurgia de Zé Maria, que se recuperou bem. As crianças perceberam a mãe de mãos dadas com Juvenal, na saída do supermercado. -"Estão namorando. Estão namorando!!!!!" Gritaram. Juvenal ficou tímido. As crianças o abraçaram, felizes. Dois anos depois, Juvenal exibiu com orgulho o diploma de conclusão do ensino fundamental. Ele tirou a carteira de trabalho. Dois anos se passaram. Jurema e Juvenal se casaram no civil, numa cerimônia coletiva, realizada pela prefeitura. Ele usou, pela primeira vez, um terno azul. Kamila já tinha idade ficar com o avô, finalmente aposentado. Juvenal começou a trabalhar na faxina do hospital, apoiado pela esposa. Juvenal era um trabalhador dedicado. -"Jurema. Quero estudar enfermagem após concluir o ensino médio. Adoro meu trabalho mas quero crescer. Quem sabe fazer medicina?? Já pensou?!?!?" A gratidão é a porta de entrada do divino em nossas vidas e é capaz de transformá-las!!! FIM.

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 01/11/2019
Reeditado em 04/11/2019
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