Holocausto

Alguns eventos marcam a vida de uma pessoa para sempre. Essa história é sobre os acontecimentos que destruíram a vida de Nicole e Arnaldo. A dele literalmente; ela ainda continua viva, mas parte de sua sanidade foi perdida, como que roída por traças e devorada pelo fogo, o que fica bem claro não somente no jeito dela falar e olhar para as pessoas, mas de vez em quando ela realmente chora e urra sua própria miséria.

Em 2019, alguns incêndios ocorreram na região em que os dois planejaram acampar, o que levou Arnaldo a cancelar. Ela ficou frustada, tinha planejado tudo, mas havia se tornado inviável. O fogo realmente havia feito um estrago, as reportagens na TV mostravam um verdadeiro morticínio, com muitos animais mortos e carbonizados. Queimadas eram frequentes naquela região, que era seca e quente, mas daquela vez parecia pior.

Passaram-se meses até eles conseguirem se organizar para acampar. Eles estavam tão animados que passaram o dia anterior inteiro conversando via mensagens sobre o que iriam fazer. Ambos tinham alguma experiência nisso, embora não fossem profissionais, inclusive desbravando lugares mais perigosos, então não tinham nenhuma preocupação; era como se fossem fazer um passeio no parque.

Partiram no final de setembro, em uma manhã quente e ensolarada. Sentiam-se como o lavrador que aguarda com paciência o precioso fruto da terra e vê as primeiras chuvas caírem depois de uma longa espera. Finalmente chegaram ao destino na hora do almoço, e comeram em um restaurante uma bela refeição de fogão a lenha.

Lá pelas três da tarde eles entraram na mata, o sol ainda bem forte. Arnaldo ia na frente, registrando tudo que o interessava com sua câmera na mão; Nicole, que era menos afeita a tirar fotos, prestava atenção mais nos sons do que nas imagens que registrava com os olhos. Ela adorava o canto dos pássaros, e pensava consigo mesma que a coisa mais certa a se fazer quando se está feliz é cantar. Ele agia como um turista, ela com uma certa reverência, como quem vê a Natureza como uma deusa cheia de ternura e compaixão, mas rigorosa e severa.

Depois de duas horas caminhando pelas trilhas, o GPS de Arnaldo deixou de funcionar e a bússola de Nicole ficou rodando e apontando para diferentes direções, quase que ao mesmo tempo. Ela ficou com medo, ele não deu importância. Caminharam por mais meia-hora, até retornarem exatamente ao mesmo lugar onde o problema nos aparelhos aconteceu. Arnaldo pareceu não perceber e quis continuar, mas Nicole estava preocupada.

- O sol vai se pôr daqui a pouco. - Ela disse. - Vamos montar acampamento aqui mesmo.

- Não é um bom lugar, vamos continuar procurando mais uns dez minutos, tudo bem?

- Não, nós estamos andando em círculos, podemos acabar nos enrolando mais. Vamos aproveitar logo a pouca luz do sol que resta.

Começaram a trabalhar. Era uma clareira pequena, as barracas ficariam um pouco apertadas entre os galhos das árvores, mas servia. O calor não diminuiu, os olhos de Nicole ardiam com o suor caindo neles.

- O que é aquilo? - Arnaldo perguntou de repente, olhando para algo atrás dela. O susto foi tão forte que ela não teve coragem de olhar também. Ele passou por Nicole e caminhou até lá. Ela finalmente teve coragem de olhar e viu... um pé? Ao checar com suas lanternas, viram atrás de uma árvore grande dois corpos carbonizados, pareciam humanos, mas estavam já completamente negros. O que um dia foram mãos estavam presas à face, como se as tivessem levado ao rosto diante de enorme desespero. Só isso era suficiente para levar os dois a acreditar que aquelas pessoas haviam sido incineradas vivas.

- Não tem nada queimado ao redor. - Notou Nicole. - É como se tivessem sido incinerados em outro lugar e jogados aqui.

- Vamos dar o fora, agora.

- Como? Não sabemos direito como voltar.

- Melhor do que correr o risco de acabar como eles.

- Vamos deixá-los aqui? São pessoas, como nós. - Nicole tentava escolher as melhores palavras, ainda com bastante medo. - Com nossa mesma natureza. Eles tinham família. Precisamos levá-los para elas.

- É impossível. Nem sabemos como voltar, como você bem disse, e ainda vamos carregá-los? Não tem como. Além disso, se mexermos nos corpos, do jeito que eles estão, com certeza eles vão quebrar como galhos secos.

Não tinha como negar a voz da razão. Resolveram voltar pelo caminho de onde vieram, a noite caiu, mais duas vezes retornaram para onde estavam os corpos. O cansaço começou a se tornar mais forte, até que finalmente o desespero bateu e, na terceira vez que retornaram àquele mesmo ponto, Arnaldo sentou-se no chão e começou a chorar.

Nicole esperou alguns instantes, até o amigo se recuperar. Ela mesma não estava em estado melhor. Fechou os olhos por uns momentos, tentando reequilibrar sua mente. De repente, Arnaldo levantou aos berros, como se tivesse visto uma ameaça, e saiu correndo. Ele olhava assustado para algo que estava atrás de Nicole enquanto corria. Ela sentiu um ar muito quente percorrer seu corpo enquanto alguma coisa muito rápida, mais do que ela podia enxergar, passou por ela. Arnaldo sumiu de sua vista, e Nicole não teve coragem de segui-lo.

Alguns momentos depois, entretanto, os gritos de Arnaldo mudaram, não mais de medo, mas de dor. Uma dor excruciante, angustiosa, terrível. O coração de Nicole explodiu no seu peito, mas ainda assim ela não conseguiu se mexer, até um cheiro horrível de carne queimada invadir suas narinas, obrigando-a a se ajoelhar e vomitar. Então, e ela não saberia precisar se segundos ou minutos depois, sentiu alguma coisa se aproximar, vindo da direção para onde Arnaldo correu. Um calor abrasante vinha daquela coisa, a qual Nicole não teve coragem de olhar. Urinou-se.

A mulher nunca soube explicar como voltou para casa. Sua próxima lembrança depois disso foi de ser encontrada na manhã seguinte na porta daquela pensão onde almoçaram. Ao informar às autoridades que seu amigo havia desaparecido (escondendo, é claro, os detalhes estranhos), uma equipe de busca foi enviada para procurá-lo, mas eles não voltaram. A segunda e a terceira equipe não encontraram nada. Nicole, como eu disse antes, foi brutalmente marcada por essa experiência. Duas semanas depois desses eventos ela foi internada em um hospital psiquátrico, tentando incinerar sua casa, após se recuperar das queimaduras de terceiro grau, jurando pelo céu e pela terra que a cama pegou fogo sozinha.