Vozes - O assassino do telefone - Parte I

É engraçado como a vida é emocionantemente normal. Chegamos a bocejar de tédio de como a realidade nos deprime. São vidas e mais vidas perambulando por aí... E você? É mais um deles. Pelo menos do lado de fora, não é mesmo? Como? Ainda não captou a mensagem? Vamos lá... exercite a imaginação. Afinal, tudo é melhor dentro da sua cabeça.

Todos os dias eu levanto tarde. Pelo menos tarde o suficiente para almoçar, tomar banho, me trocar e ir ao trabalho. Como um bom pobre eu trabalho do outro lado da cidade. Fico mais de uma hora no ônibus para ir para aquele emprego de merda, atender clientes que sempre são 8 ou 80. Acham que por estar no telefone podem fazer o que querem e nos maltratam com a desculpa de que estão insatisfeitos com a empresa. São desde sarcasmo até o xingamento e por fim ameaças. Simplesmente porque somos obrigados a passar a informação que o sistema pede.

__Ah, nada como trocar a saúde mental por alguns centavos! __ Balbucio enquanto o cliente está no mudo me ofendendo por causa da sua internet que parou de funcionar. O mesmo não aceita que ocorreu roubo da fiação e que a empresa tem que fazer a passagem de uma fiação nova.

__ Você quer que funcione como? Por via ar? Porque não contrata então uma internet via rádio e para de encher o saco?

Todos os dias acontece pelo menos três vezes de pedirem para falar com a supervisão. São clientes que não aceitam os prazos e muito menos acreditam quando passamos a informação. Temos que passar pela humilhação de se sentir um fracasso e o medo de atender a próxima ligação nos tormenta. Depois de passar por toda essa situação e terminar finalmente o turno, demoro ainda mais para voltar para casa. Cansado, eu já não sei se eu sinto alguma coisa. Eu tinha um vazio no peito na qual parece ficar maior a cada dia. Já as minhas orelhas não mantêm mais as feridas cicatrizadas. De tanto coça-las ao tentar inutilmente amenizar as vozes de cada cliente na minha cabeça me chamando de incompetente, acabei me acostumando a vê-las sangrando. Por fim, depois de mexer um pouco no computador eu como algo e deito na cama. Mas... você acha que eu consigo dormir?

__Incompetente! Você é uma desgraça, não me importa o que o sistema fala, você vai fazer o que eu quero. É só apertar um botão e acabou! Todos ficamos felizes. Então, aperta essa porra de botão e religa a minha internet...

Todos os dias pelo menos uma pessoa fala isso. Se fosse tão fácil eles acham que já não teríamos feito? Eles ligam e se zangam por não receberem a resposta que querem. Nos humilham. A pior parte é que muitas dessas pessoas convivem conosco fora da empresa. Até sabem que trabalhamos lá. Falam que é uma pena nós termos esse tipo de emprego, pois não é fácil ouvir xingamentos todos os dias. No entanto, ao mesmo tempo, enchem a boca para chamar de vagabundo o primeiro que lhe diz não ao desconto que pedem só porque a outra operadora faz um preço melhor.

__ Saiam da minha cabeça, aqui é o meu mundo, na minha mente eu que mando! AQUI EU SOU DEUS!

Na minha cabeça tudo é mais divertido. Chego a me perder várias vezes em meus pensamentos. Algumas vezes, sem querer, acabo respondendo em voz alta minhas próprias dúvidas, o que acarreta alguns momentos vergonhosos. Porém, eu não ligo. Afinal na minha cabeça só eu tenho acesso. Eu dito aqui! E não vou deixar ninguém invadi-la. As vozes ecoam nas paredes do ouvido. Acarretando assim dores profundas em minha cabeça que só melhoram quando eu penso em mata-las. Aos poucos elas vão morrendo na minha cabeça. Deve ser por isso que eu estou durando tanto nesse emprego.

__Quer que isso seja de verdade?

Uma voz ecoa no pé do meu ouvido. Levanto rapidamente e olho ao redor. Entretanto não há ninguém... não tem como ter ninguém aqui! Eu moro sozinho. Acho que talvez a loucura esteja chegando aos poucos. Volto a me deitar, ainda que um pouco hesitante. Após alguns segundos, fecho os meus olhos e tento voltar para o meu mundo particular. Todavia, acontece novamente.

__Thiago, vamos brincar de matar?

__Quem é? __Respondi estupidamente tremendo de medo, mas não obtive resposta.

__Maldita voz, me deixe em paz! deixe-me viver em meu mundo...

Comecei a chorar e me encolhi no canto da cama. Não sei ao certo, mas em algum momento adormeci. No entanto, não antes de pensar sobre o que a voz me falou. E eu meio que eu desejava isso.

Acordei-me sonolento no dia seguinte. Pelo menos eu achava que era o dia seguinte. O lugar estava iluminado. O que era estranho, pois eu gostava de dormir no breu total. Meus olhos demoraram para se habituar. Todavia, após esse período eu percebi que aquele quarto não era o da minha casa e sim o de um hospital. Porém, como fui parar ali?

__Alguém? Tem alguém aí? __falei com a voz debilitada, mas ainda sim audível. __ Por favor, me ajudem... Onde... onde eu estou?

De longe ouvi passos tropeçados e sem ritmo. Era apressado e de certa forma... dolorido? Não sei, mas aquilo estava me assustando. Um frio na espinha me avisava que eu tinha que fugir. Todavia, eu não conseguia me mover direito. As luzes do quarto começaram a piscar freneticamente. Eu me calei na hora. Aquilo que vinha não parecia ser boa coisa. Minha única reação foi voltar para a posição inicial do meu corpo na cama, como se eu não tivesse acordado. Suava frio e fiz um esforço muito grande para não fazer nenhuma expressão. Mas, sinceramente? Eu estava apavorado. A cada passo era uma batida forte no meu coração. Até que, por fim o barulho de passos sessou. Eu tinha quase a certeza de que “isso” estava na porta do quarto. Eu fiquei curioso, mas não abri os olhos.

Toc, toc, toc. Houveram três batidas na porta. Batidas espaçadas, mas de certa forma sufocantes. E por fim, após a terceira batida a lâmpada simplesmente estourou. Eu me assustei. Entretanto, o medo de morrer era maior. Consegui por este motivo me manter imóvel na cama. Após isso pude ouvir a porta abrindo bem devagar e um frio dominar o quarto. Os passos recomeçaram lentamente se aproximando de mim. O pânico começou a se alastras ainda mais em meu corpo. Percebi então que eu estava perdendo novamente a consciência. Contudo, não antes de ouvir uma voz dizendo:

__Eu sei que você está acordado! Eu sou o seu salvador e tirarei a angústia do seu peito. Thiago, eu vim te dar um dom e espero que fique grato por isso. Afinal, a minha existência é culpa de pessoas como você. O mínimo que você tem que fazer é me agradecer. Eu sou o vazio e vou preencher tudo.

O breu consumiu o meu ser e após esse ocorrido eu só me lembro de acordar de supetão. Acabei assustando alguns enfermeiros que me olhavam abismados com a situação, acionando em seguida o médico de que eu havia acordado. Demorou um pouco para o médico me explicar tudo. Ao que parece eu tive um ataque de pânico e gritei tanto que meus vizinhos chamaram a polícia. Após algumas tentativas, os policiais conseguiram entrar no meu apartamento e me encontraram desfalecendo no piso frio enquanto balbuciava algo sem nexo. No entanto, eu não lembro desse ataque. Minha última lembrança é de estar encolhido com medo daquela voz voltar. E pelo que parece eu fiquei três meses em coma no hospital.

__E a voz? Vocês a ouviram também?

__Voz? Desde quando você ouve essa tal voz? __Indagou o médico.

__Eu antes de vir pra cá ouvi uma voz e...

__E?

Não conseguia prosseguir. Por algum motivo minha mente falhava ao tentar lembrar do ocorrido.

__ Nada, acho que minha cabeça está um pouco confusa. Eu provavelmente deveria estar assistindo algo antes de passar mal__ tentei desconversar.

__Bom Thiago, por garantia você vai ficar pelo menos essa semana conosco no hospital, para termos certeza que você está bem.

Falou enquanto olhava para o meu prontuário e depois a mim com um olhar preocupado.

__Também te encaminharei para um psiquiatra. Temos que descobrir se o que ocorreu foi um ataque esporádico ou se você vai ter que ser tratado com medicamentos.

__Tudo bem. __Exclamei de forma tímida.

__Eu também gostaria, já que tenho algumas dúvidas e talvez consiga respostas dessa forma.

Após dessa conversa o médico saiu do quarto. Pude então voltar meu olhar para o teto. Comecei a pensar no meu mundo interior e em como tudo parecia tão quieto. As vozes não ecoavam mais. Talvez o tempo pode ter feito uma limpa. Contudo, ainda estou com medo da noite cair e aquilo acontecer de novo. Principalmente após olhar para o bocal da lâmpada e perceber que ela está quebrada.

Continua...

Layla Vimorat
Enviado por Layla Vimorat em 22/10/2019
Reeditado em 20/06/2020
Código do texto: T6775909
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