Pânico Noturno

Todos estavam nervosos, alguns deles já estavam suando, não só pelo fato de estarem sendo transportados na parte de trás de um grande caminhão que até lembrava aqueles de filmes de guerra, muito menos por estarem se embrenhando mata adentro através de uma estrada de chão, mas sim porque ficar nervosos ou ansiosos era algo típico da vida daquele pequeno grupo. As seis pessoas estavam sentadas três de cada lado do caminhão, ao lado de cada uma delas uma mochila de camping quase maior que elas mesmas.

De pé no centro estavam dois homens, um com uma prancheta na mão e usando um colete de camping realmente novo, indicando que era mais para efeito visual, o outro segurava uma câmera e sem nem pedir licença ia captando as expressões dos outros seis que estavam sentados.

Mark estava sentado no canto esquerdo, apoiado na sua mochila de camping enquanto sacolejava junto com o caminhão conforme o mesmo avançava naquela estrada improvisada, olhava para os outros cinco que estavam sentados e se segurava para não rir, duvidava que a maioria deles teria montado a mochila tão bem quanto ele, da mesma forma que duvidava que metade deles poderia erguê-las por mais de cinco minutos. O homem da prancheta falava algumas orientações, mas Mark estava com a cabeça em outro lugar já, lembrava como tudo isso havia começado.

Foram algumas semanas atrás quando por pura falta do que fazer ele clicou em um formulário no site de uma emissora de TV que procurava participantes para um novo reality show, sem realmente dizer do que se tratava mas prometendo ser diferente de quase tudo já feito. Ficou surpreso ao receber uma ligação dias mais tarde o chamando para uma seleção na sua cidade, onde compareceu juntamente com outras 30 pessoas, o que achou pouco para o padrão de um reality. Foi mais de uma semana de aguardo após a entrevista para que o chamassem como “selecionado” para conhecer mais sobre o programa. Foi recebido em uma sede da emissora, sozinho, pois não poderia conhecer os demais participantes antes do ínicio do programa.

- Senhor Mark - Lembrou-se claramente da voz do produtor que falara com ele - O Senhor vai participar de uma experiência inovadora de reality show. Ele é similar aos realitys de sobrevivência em algum ponto, mas oferece um pouco mais de conforto. O senhor ficará em uma cabana em uma região isolada, tendo que viver no meio do mato por tempo indeterminado, haverá outros cinco participantes espalhados pela região, cada um com sua cabana e longe dos demais competidores, ganhará aquele que ficar mais tempo no desafio.

- Então é tipo um Survivor com uma cabana? - Perguntou.

- Esta não é a diferença Senhor Mark, vocês terão uma cabana de abrigo e poderão levar uma grande mochila de camping, dentro dela cabe a cada um decidir o que vai levar, desde que seja do Hipermercado Netway, nosso patrocinador, claro.

- Agora parece uma versão ainda mais fácil de Survivor - replicou Mark

- Bom, você não foi selecionado apenas pelo seu sorriso bonito Senhor Mark, vi no seu cadastro que o senhor tem síndrome do pânico, este é o real diferencial, todos os participantes sofrem de crises de pânico ou ansiedade, pode parecer fácil por poderem levar suprimentos e por ter um teto sobre suas cabeças, mas não haverá eletricidade, não haverá ninguém para fazer companhia, e quanto mais tempo resistirem ao desafio, mas dependerão de se virar com recursos naturais.

Mark não achou tão desafiante mesmo assim, porque já tinha pânico a mais de 7 anos e estava um tanto acostumado, era preciso ser uma crise muito fora do comum para realmente atingi-lo. Mas agora sentado naquele caminhão rumo ao desafio e vendo pela primeira vez seus concorrentes ele começara a entender, pessoas típicas da cidade, que raramente devem ter dormido fora de casa, ou acampado se quer. Para ele aquilo parecia ser fácil, pescava desde pequeno, já ficou uma eternidade de tempo acampando, sabia fazer muita lida que seria útil e o colocaria em vantagem naquela competição por meio milhão de dólares. Olhou para a mochila e lembrou-se da ida ao tal hipermercado no dia anterior. Era realmente um lugar que tinha de tudo um pouco, ficou lá rodeado por câmeras, acompanhado pelo dono da rede de mercados que tentava ficar sempre na dianteira da câmera, lá lhe foi dada a mochila para encher, como também lhe avisaram que deveria carregá-la no dia de início do desafio até a cabana, uma caminhada de mais de meia hora pela mata. Lembrou que ficou super nervoso em frente às câmeras, mas fez uma seleção de itens na mochila que já havia planejado na noite anterior (pois por óbvio não havia conseguido dormir). Feijoada em lata foi a maior pedida, cada pequena lata continha bastante proteína e carboidrato, pegou fósforos, uma lanterna recarregável por energia solar, arroz, linhas de pesca, uma pequena panela de acampamento, um pequeno cobertor, capa de chuva, faca de caça e diversos itens não perecíveis e que lhe pareciam ser úteis.

Atenção agora - gritou o homem da prancheta no caminhão, trazendo Mark de volta ao presente. - Vocês vão começar a desembarcar cada um em sua área em instantes, cada um de vocês vai receber um rádio portátil para entrar em contato com a equipe, só usem ele em caso de emergência, se estiver doente ou ferido, e claro… Se quiserem desistir. Vocês são livres para explorar a área de vocês, que é um terreno de aproximadamente 5km para cada, o limite desta área foi marcado com fitas vermelhas amarradas nas árvores fechando o perímetro, não passem desse perímetro, pois ali vai ser a área de outro competidor e vocês estão expressamente proibidos de ter contato com outro competidor. Quem descumprir alguma destas regras perde.

Todos se olhavam um pouco mais assustados.

Outra coisa, nossas câmeras estão colocadas na cabana e área externa dela, algumas pelas árvores mas algumas vezes vocês podem ver os câmeras de nossa equipe por aí, mesmo que eles estejam camuflados, não falem com eles em hipótese nenhuma. Teremos 3 bases de nossa equipe, todas contando com médicos e veículos, uma entre cada dois participantes. - Completou o homem.

Cinco minutos depois o caminhão fez a sua primeira parada, uma jovem loira de uns 18 anos desce, ela é apenas couro e osso de tão magra, um dos homens teve que ajudá-la a colocar a gigante mochila nas costas. Ficaram ali um pouco para o rapaz da câmera registrar os primeiros passos dela mata a dentro (lentos e desajeitados devido ao peso que carregava) e assim ela foi seguindo riscos brancos nas árvores que indicavam o rumo até sua cabana.

A terceira parada foi a de Mark, respirou fundo e ergueu a mochila até as costas em um único impulso, estava bem mais pesada do que lembrava, mas sentia que iria dar conta. Desceu do caminhão, o homem da prancheta já estava lá fora lhe apontando para as marcas brancas nas árvores que deveria seguir. Ignorou a câmera que lhe filmava dos pés a cabeça, respirou fundo aquele aroma de natureza que lhe trazia felicidade e lembranças de tempos menos complicados e seguiu sua trilha. A caminhada era um tanto difícil, a mochila enganchava em galhos na mata fechada frequentemente. Apesar de pequenas pedras e raízes o solo era relativamente limpo para se caminhar, a luz do sol acusava ser próximo do meio dia e entrava em quantidade generosas pela copa das árvores tornando o caminho bem iluminado. Foi uma média de 40 minutos de caminhada que lhe renderam uma bela dor nas costas devido ao peso da mochila, até que se deparou com uma grande clareira onde uma pequena cabana rústica o aguardava. A cabana aparentava já ter tido dias melhores, mas apesar da conservação, ela era feita de troncos de árvore e parecia que poderia resistir ao pior dos intempéries. Não haviam janelas, a única entrada era a porta que precisou forçar de tão pesada que era, feita de madeira bruta duplada. Dentro da cabana era bem escuro, um pouco de cheiro de mofo pairava no ar assim como a poeira tomava conta das poucas mobílias: uma mesa de madeira com uma cadeira, um tapete de pele de ovelha, um sofá velho de dois lugares, um balcão com uma pia (sem torneiras) um fogão de campanha com uma pilha de lenha ao lado e um armário grande e pesado de madeira onde ele poderia guardar seus suprimentos. No balcão com a pia havia um machado um pouco velho usado para cortar lenha, assim como uma garrafa de água de 5 litros vazia.

Mark largou sua mochila e dedicou a primeira hora ali a colocar seus mantimentos no armário, enquanto isso deixou a porta aberta para que o vento tirasse um pouco do cheiro de mofo. Por óbvio não havia uma cama e aquele sofá seria desconfortável de dormir por mais de uma noite, mas até o momento ainda se sentia seguro de si em relação aos outros competidores. Após arrumar seus pertences, caminhou na parte da tarde no entorno da cabana, olhando as primeiras árvores da floresta, só para tirar uma febre do que havia por ali, nenhum sinal de árvore frutífera ou som de água corrente, mas já imaginava que esta parte não seria fácil. Contou por cima que se racionar com sabedoria seus mantimentos haveria de durar pelo menos por um mês antes de ter que buscar por mais, claro que não ficaria parado nesse tempo, começaria já no primeiro dia a se mexer e garantir que não iria passar trabalho.

Deveriam ser por volta de 16h pelo que deduziu, resolveu fazer uma pequena expedição, pegou uma garrafa de água, a lanterna por precaução, a faca de caça e uma das linhas de pesca. Foi adentrando a mata sem muita preocupação, primeiro, por se sentir à vontade, segundo, pois sabia que o programa de TV por mais que queira causar emoções nunca iria os expor a perigos reais, como uma área que tenha ursos ou outros predadores. Após andar pela mata por uns 20 minutos começou a escutar som de água, que o levou a descobrir 15 minutos mais a frente uma pequena cachoeira que desbocava em um lago cercado de pedras. Ficou admirando aquela vista e rindo sozinho por ter feito esta grande descoberta logo no primeiro dia. Olhou atentamente por alguns minutos e viu que havia ondulações na água mesmo distante de onde a cachoeira a atingia, aquilo era um forte indicador de que haveria peixes ali.

Era fato de que ele não precisava pescar nada naquele primeiro dia, mas enfim, aquilo era um maldito show de televisão e aquela a primeira chance dele se mostrar um verdadeiro Crocodilo Dundee, então cavou a terra com ajuda da faca até apanhar uma minhoca que usou para iscar a linha. Escolheu um canto do lago onde havia uma pedra maior e plana que poderia sentar e ali se instalou. Levou cerca de 25 minutos para ter sucesso, fisgando um Catfish de pouco mais de meio metro. Ria sozinho enquanto tirava o peixe da linha, por um momento chegou até a pensar em pegar um segundo apenas para se mostrar, mas desistiu da ideia vendo que a luz do dia já começava a recuar no horizonte. Voltou pela mata carregando seu troféu preso a um galho e começou a rumar novamente à cabana. No meio do caminho um cheiro estranho lhe atiça as narinas de uma maneira desagradável, ele inspira umas três vezes e vai seguindo o cheiro que fica mais forte até identificar aquele aroma…carniça. Alguns metros adiante uma árvore tombada ao lado de uma carcaça de um veado, boa parte da carne foi devorada, o que sobrou agora é atacado pelas larvas. Mark ficou apreensivo no mesmo instante, havia algum predador ali, não saberia dizer qual pois não entendia muito de marcas e proporções, mas aqueles produtores poderiam não haver sondado bem a área… Ou talvez os próprios poderiam ter produzido aquela carcaça, terem matado o pobre bicho para criar nele e nos espectadores a sensação de insegurança…vai saber. Na dúvida Mark fez o resto do caminho com maior atenção e mantendo a trava da bainha de sua faca de caça aberta.

Quando chegou na cabana a tensão aliviou, havia pouca luz, mas o suficiente para ele limpar o peixe e por garantia, enterrar os órgãos e escamas para não atrair nenhum predador. Acendeu o fogo do fogão de campanha que iluminava um pouco a escura cabana, fechou a pesada porta de madeira e colocou um sarrafo de 10cm por 10cm que servia de tranca para a mesma. Em alguns minutos o cheiro de mofo dava lugar ao delicioso cheiro de peixe, apesar do susto, este haveria de ser um bom primeiro dia, pois tirando a garrafa de água que usara, não havia mexido nos seus mantimentos. Com a noite, veio o frio, ele pegou a coberta que levou, puxou o tapete com pele de ovelha para próximo do fogão de campanha, onde mantinha apenas algumas brasas para manter o calor, ali seria o local perfeito para dormir. Até aquele momento Mark nem lembrava que tinha síndrome do pânico, apesar do interior da cabana não parecer muito convidativo (e como toda cabana mais largada, o cenário de algum filme de terror B) ele estava tranquilo, o fato de achar a carcaça de um animal morto não era maior do que a confiança de ter achado aquele lago e ter conseguido pescar um peixe sem muita dificuldade.

No meio da noite ele acorda em um pulo, sem saber direito o porquê, levou mais cinco segundos para o mesmo barulho que o acordou se repetir do lado de fora da cabana, Mark levantou-se rapidamente ignorando o frio que fazia desde que as brasas apagaram e se aproximou da porta, colando o ouvido nela. Primeiro ouviu galhos quebrando a alguma distância, depois o som de uma batida seca e forte contra um tronco. Seja lá que animal produzia aquele som parecia estar circulando as árvores ao redor da cabana mas sem entrar na clareira. O coração de Mark estava disparado, mas mesmo assim ele agia com calma e clareza ouvindo com maior atenção possível, pois após viver com síndrome do pânico por alguns anos se acostumou a condição de medo e perigo, que sempre eram falsas. Passou pelos pensamentos dele que se fosse um animal estaria seguro ali dentro, pois talvez nem um elefante conseguiria derrubar aquelas paredes de troncos, mas também pensou que aquilo só poderia ser coisa dos produtores, achando que daria mais emoção e audiência se deixassem todos a beira da loucura. Após algum tempo que Mark não saberia definir se foram 5 minutos ou duas horas, ele volta a escutar o som de algo caminhando, mas desta vez mais sutil e sem o som de galhos quebrando. Os passos estão mais próximos da cabana, ele escuta algo raspando pela terra. Sem pensar duas vezes ele se move tentando fazer o menor barulho possível até o balcão da pia e pega o machado, depois passa pelo armário e pega o rádio que a equipe de produção lhe deu. Volta para perto da porta, escuta algo que parece o som de um animal farejando, logo depois o barulho do caminhar recomeça, desta vez se afastando rumo à mata. Mark fica ali apoiado na porta por vários minutos, até que os primeiros raios de sol surgem por entre as frestas da parede de trás da cabana. Mark respira fundo, toma sua dose de coragem e abre a porta ainda com o machado em mãos.

A terra lá fora parecia um pouco revirada, mas não mostrava nenhuma marca de pegada específica, a luz do início do dia lhe permitiam ver a clareira, mas ainda não atravessavam as árvores para lhe dar visão da floresta. Deu alguns passos para olhar pelas duas laterais da cabana, o animal que ali esteve já recuou, ele pensou que provavelmente seria um javali. Ao observar novamente o solo viu que alguém cavou justo onde enterrou as entranhas do peixe, havia colocado a meio metro abaixo do solo, mas mesmo assim algum animal conseguiu farejar…aquilo lhe deu calafrios…mas novamente voltou a desconfiar da equipe de produção que poderia estar escondida nas árvores da entrada da floresta neste exato momento fazendo uma força descomunal para não rirem da sua cara de bobo assustado.

Na dúvida, decidiu não recorrer ao rádio, trancou a porta novamente e decidiu tentar dormir mais um pouco.

Acordou sem nenhuma noção de quanto tempo havia dormido, o frio já não se fazia presente e o sol batia forte sobre a cabana. Quando saiu para a rua que conseguiu deduzir que já deveria ter passado do meio dia. Mesmo com um pouco de calor optou por fechar a porta novamente, e foi se dedicar a acender o fogo. Pegou uma das latas de feijoada e esquentou na panela, não sentia nenhuma vontade de se aventurar naquele dia, a dor nas costas por carregar a mochila já havia ido, mas novas dores por ter dormido sem um colchão já se apresentavam. Após comer, pegou o machado e a faca de caça, iria dar uma olhada só na entrada da mata por precaução a procura de sinais sobre o que havia acontecido na noite passada, mas tirando galhos quebrados de diversos tamanhos não viu nada de preocupante ou que denunciasse que tipo de animal (ou produtor) o havia lhe assustado na noite passada. Tirou o resto da tarde na porta da cabana lendo um livro pocket que havia pegado nas compras, Um Estudo em Vermelho de Sir Arthur Conan Doyle, pegou o livro porque saberia que qualquer situação que o colocasse em uma crise de pânico ou de tédio, a leitura seria a sua salvação. Mergulhou no livro por horas, até perceber o entardecer levando a luz embora. Trancou a cabana, manteve o fogo aceso no fogão de campanha, mesmo sabendo que em breve precisaria começar a cortar lenha. Horas mais tarde optou por outra feijoada em lata para a janta e ficou deitado próximo ao fogão por horas sem conseguir adormecer, mas dessa vez sem nenhum barulho ou ameaça o sono acabou lhe pegando.

Novamente acordou em um salto, já com o coração acelerado, algo batia e arranhava ferozmente a porta da cabana em um barulho incessante. Ficou paralisado pelo medo por quase um minuto enquanto suas mãos se agarravam ao cobertor com força, como se ele fosse uma espécie de armadura mágica que lhe protegeria do perigo. Após recobrar o sentido ele pega o machado que estava próximo, juntamente com a faca de caça e a lanterna, se aproxima meio agachado da porta, como se houvesse uma janela nela para que alguém pudesse o enxergar. A porta resiste fortemente a cada investida, o barulho dos golpes acompanham um rosnado meio seco e alguns sons de algo farejando. Mark pega a cadeira de madeira e pensa em colocá-la contra a porta por um instante, mas percebe mesmo com o coração quase saindo pela boca que a cadeira não faria muita diferença em relação ao sarrafo que servia de tranca. Pensa por alguns segundos olhando para o rádio no armário, precisa se proteger e chamar ajuda, dessa vez se fosse uma brincadeira, ela era pesada demais. Mark deita o pesado armário de madeira contra a porta e apanha o rádio. Leva umas 3 tentativas até achar o botão de ligar, que na hora já começa a transmitir um chiado característico daquele tipo de equipamento.

- Socorro - Fala Mark contendo o volume da voz, com medo que o som possa atiçar mais ainda o animal do outro lado da porta.

- Pois não Mark, qual o problema ? - Pergunta uma voz masculina que Mark reconhece ser do homem que segurava a prancheta no caminhão.

- Tem alguma coisa tentando entrar na cabana, tá batendo contra a porta, acho que é algum animal grande, vocês tem que me ajudar. - Fala Mark se segurando para não gaguejar.

- Estamos a caminho, vamos chegar rápido, não saia de dentro da casa até chegarmos aí - responde o homem.

O rádio volta a dar lugar somente ao chiado, Mark coloca seu corpo sobre a estante ajudando a fazer pressão contra a porta, enquanto segura firmemente o machado com as duas mãos. O coração estava cada vez mais acelerado, uma lágrima solitária escorria pela lateral do seu rosto que já não apresentava muita cor, a respiração acelerada parecia pausar cada vez que o animal batia ou arranhava a porta. Pareceu ser uma eternidade, mas em poucos minutos um som de motores ganhava espaço por dentre os barulhos produzidos pelo animal, pareciam ser duas motos. O animal parecia ignorar aqueles sons, seu único foco era tentar transpassar a porta da cabana a todo custo. Mesmo quando o barulho das motos e os gritos de “por aqui” da produção estavam bem próximos, as pancadas não cessavam. De repente o silêncio toma conta, a criatura estava farejando algo e relativamente próximo Mark podia ouvir o som de galhos quebrando com passos, provavelmente a produção chegando. Logo todos os sons pararam, com exceção de uma respiração pesada que ele conseguia sentir do outro lado da porta. Mark deu um pulo de susto com o estouro que ecoou do lado de fora, o barulho de um tiro de alguma arma razoavelmente grande quase fez seu coração parar, assim que tenta erguer a cabeça para escutar melhor um novo tiro ecoa, seguido de mais dois.

O que é aquilo? - Pergunta uma voz quase um minuto depois do último disparo.

Após isso, ouviu um rosnado enraivecido e começam os gritos, infelizmente para o pavor de Mark… Gritos humanos. Além dos gritos mais um disparo acontece e novamente o silêncio volta a lhe assombrar. Desta vez dura uns longos dez minutos onde não escuta nenhum sinal de vida animal ou humana.

Enquanto Mark mentaliza um “por favor” passos pesados e rápidos surgem em direção da cabana arrastando suas esperanças para longe. O animal está lá e as investidas voltam com tudo. Mark tenta chamar ajuda pelo rádio mais duas vezes, mas agora já não há resposta. Cinquenta minutos se passam, nos quais Mark só consegue chorar e tentar imaginar que tipo de animal há lá fora e como irá ser a sua morte assim que ele conseguir entrar. Perdido entre o desespero e a desesperança Mark mal repara no barulho de sirenes que vai ganhando espaço no meio da noite, só se dá conta quando está realmente próximo. Ele enxuga os olhos e começa a perseguir mentalmente o barulho, ignorando o animal que ainda bate contra a porta. São sirenes de viaturas, provavelmente umas duas ou três, pelo som parecem estar paradas em algum lugar da estrada, até porque não haveria acesso para elas chegarem até a cabana. Latidos de cachorros e vozes humanas começam a ecoar e finalmente parece que é algo que intimidou o animal, que parou de bater na porta, farejou por alguns instantes e logo saiu a trote.

Quando a polícia chegou ao local, precisou chamar diversas vezes na porta da cabana até despertar Mark do estado de choque no qual se encontrava. Ele levantou, arrastou o armário e abriu a porta, tudo sem largar o machado, o policial estava frente a porta teve uma reação rápida de colocar a mão na arma ao ver o rapaz com o machado, mas a expressão de medo no rosto de Mark fez o policial pensar duas vezes e optar por não sacá-la. O policial já lhe fazia algumas perguntas que Mark não conseguia ouvir, não conseguia nem ao menos olhar para o policial e sim pro cenário que se desenhava atrás dele, onde outros policiais isolavam a área da clareira e os corpos de dois membros da produção se encontravam, parte desmembrados, partes rasgadas por um animal muito enfurecido.

- Garoto - Gritou o policial pela terceira ou quarta vez.

- Só me tira daqui - Disse Mark deixando o machado cair no chão. - Eu só quero sair daqui.

- Ele tá em choque - Disse um outro policial se aproximando e analisando Mark da cabeça aos pés.

Os policiais fizeram mais perguntas que Mark não ouviu, nem lembraria de ter ouvido. Colocaram um cobertor sobre seus ombros e o conduziram pela mata até uma das viaturas, algo que ele também não lembraria. Suas últimas lembranças daquele momento era estar no banco de trás da viatura com a cabeça escorada contra o vidro, olhando as árvores passarem com o movimento do carro. O interrogatório que sofreu naquela manhã na delegacia também parecia ter passado em branco, só lembrava de pequenos detalhes, lembrava de chorar, lembrava de um policial falar que o produtor passou um rádio para a polícia antes de ir ao seu socorro e de alguém sugerindo que ele precisava descansar. Mark também não lembrava de ser levado ao hotel desta pequena cidade próxima da floresta, mas havia dormido como se não dormisse a uma semana. Ao acordar ficou encarando o quarto do hotel por quase uma hora, repassando na sua cabeça tudo que havia lhe acontecido nas últimas 24 horas, torcendo para que houvesse sido apenas um pesadelo.

Mark reúne forças e levanta da cama, vai até a porta do pequeno quarto de hotel à beira da estrada e a abre. Pode se ver praticamente meia cidade dali, uma longa rua que quebra em pequenas ruas laterais, só de olhar não arriscaria dizer que tem mais de 300 habitantes, típica cidade que se para apenas para abastecer ou fazer um lanche. A luz do final da tarde parece dar um charme agradável para aquele lugar. Mark para alguns instantes para tentar entender como se sente, e é muito estranho porque ele não sente nada, parecem que seus nervos entraram em curto na outra noite deixando todo seu sistema nervoso confuso. Ele respira fundo e o fundo de sua garganta já lhe sugere a solução: ele precisa de uma bebida.

Já faziam uns dois meses que ele não tomava nem sequer uma cerveja, também fazia um ano que não fumava, mas depois do que passou não estava nem aí, precisava de uma bebida e de um cigarro. Desceu as escadas externas do pequeno hotel, avistou um pequeno bar ao lado de um posto de gasolina, onde o letreiro pouco criativo dizia apenas “Bar” sem se preocupar em designar um título para o mesmo. Na frente do estabelecimento havia uma caminhonete Ford velha e bem surrada e um pequeno caminhão, provavelmente de alguém que estaria de passagem e resolveu descansar um pouco antes de seguir o trecho.

Mark entra no Bar, um lugar pequeno e mal iluminado, fedendo a cigarro. No balcão, um velho de boné sentado lhe olha por um instante assim que entra, uma mulher do outro lado do balcão acena para ele com a cabeça e em uma mesa no fundo um homem razoavelmente grande toma um café e lê um jornal do dia indiferente a sua presença.

- Senta aí meu rapaz - diz o velho indicando uma cadeira junto ao balcão após Mark dar alguns passos tímidos.

- Obrigado - Diz Mark se aproximando.

- O que você vai querer querido? - Pergunta a mulher do outro lado do balcão.

- Eu vou querer um … - Diz Mark, que pausa ao bater a mão no bolso onde normalmente ficaria a carteira, havia se esquecido que não levara ela junto no programa.

Ao perceber o rapaz procurando a carteira a mulher fecha a cara enquanto o velho cai na risada.

- Martha, traga um uísque para o meu jovem amigo - Diz o velho ainda rindo.

- Você sempre fazendo caridade John - Diz a mulher se virando para pegar a bebida.

- Obrigado - Diz Mark um tanto sem jeito.

- Não se preocupa Garoto - Diz o Velho lhe olhando da cabeça aos pés - Me diz uma coisa… Você estava com o pessoal daquele programa de TV?

Mark congela no lugar onde estar e cerra as mãos sem conseguir responder.

- Não precisa responder, deve ser difícil. Todos os participantes morreram - Fala o velho John, alcançando o copo de uísque que Martha deixou no balcão para o rapaz.

- Todos? - Pergunta Mark apavorado.

- Você não sabia? - Pergunta o velho espantado - Mataram os participantes, a equipe de produção, todos que estavam lá, só alguns sobreviventes que ficaram no hotel da cidade e um jovem em uma cabana lá na floresta.

O coração de Mark voltou a bater forte, ele toma a dose de uísque o mais rápido que pode enquanto repete mentalmente “não importa, já acabou”.

- Ai meu deus - Diz o velho voltando a ficar surpreso - Você é o garoto que estava na cabana, não é?

Mark apenas fez que sim com a cabeça enquanto ainda encarava o copo vazio em suas mãos. O velho faz sinal para Martha servir mais uma dose para o rapaz. Ele puxa um maço de cigarros do bolso, acendeu um e oferece a Mark, que apanhou o maço com as mãos trêmulas e levou quase dez segundos para conseguir controlar o isqueiro. John olha para os dois lados do bar e se aproxima de Mark.

- Ele farejou você? - Pergunta John sussurrando.

- Como? - Pergunta Mark espantado se virando para o velho.

- Ele farejou você? - Perguntou John sem ter tanto cuidado com o volume como da primeira vez.

- Ah John, não venha com as suas crendices de novo - Exclama Martha do outro lado do balcão - O garoto passou por uma barra pesada. Não é brincadeira.

O barulho da porta do Bar quebra a tensão do momento, um homem negro de blazer e óculos de grau fica parado olhando para o trio no balcão por um instante.

- Senhor Mark? - Pergunta o homem.

- Sim - responde Mark.

- Permita que eu me apresente, eu sou Arthur, trabalho para a Emissora. Me enviaram hoje para dar apoio aos membros da equipe que estavam na cidade, será que a gente poderia voltar ao hotel para conversarmos? - Diz o homem se aproximando e entregando um cartão de visitas.

- É claro - diz Mark levantando e se virando para John e Martha - Se vocês me dão licença.

John se levanta e aperta a mão de Mark, o puxando para próximo dele e lhe dando um abraço.

- Se a coisa farejou você, então não acabou, ela vai continuar até pegar você também rapaz - Sussurra John no ouvido de Mark.

Mark volta a ficar pálido, leva alguns instantes para assimilar o que o velho lhe disse, depois dá as costas e sai com Arthur para o hotel.

O início da noite caía sobre a cidade, juntamente com uma chuva que não foi prevista, o som da água caindo contra o solo dava um pouco de vida a pequena recepção do hotel. Arthur voltava da máquina de café com dois copos na mão, entregou um para Mark e após se sentou na poltrona de frente para o sofá no qual o jovem estava.

- Então Mark, uma infelicidade o que aconteceu. Me diga, você está bem? - Perguntou Arthur.

O Jovem só olha com desaprovação na direção do homem.

- É, eu imagino que não - Completa Arthur após perceber a gafe - Olha, nossa equipe sondou esta região a dois meses, parecia tranquila, os especialistas que contratamos falaram que com exceção de cobras não havia nenhum predador preocupante nesta área. Nunca imaginamos que poderia haver algum urso.

- E era um urso? - Perguntou Mark encarando o café enquanto as batidas contra a porta da cabana voltavam a sua mente.

- Suspeitamos que seja apesar dos locais negarem a existência deles por aqui, mas enfim, o importante é que você não se machucou. Mark, quero que saiba que a emissora vai cuidar pessoalmente de qualquer problema que você possa ter devido ao ocorrido. A polícia pediu para você ficar mais um dia na cidade, querem esclarecer melhor o que aconteceu, mas nós vamos cuidar da sua estadia, das suas despesas e quando você voltar para casa terá um cheque de cem mil dólares da emissora lhe esperando. - Explica Arthur.

- E em troca disso? - Questiona o rapaz percebendo que Arthur está um tanto incomodado com o que precisa dizer.

- Então, eu sei que é terrível o que eu vou pedir, mas a emissora gostaria que este caso não tivesse repercussão - responde Arthur encarando o chão.

- Entendo - Diz Mark pensativo - Olha, não leva a mal, mas eu preciso descansar e processar tudo isso.

- Sem problemas, qualquer coisa estou no último quarto do térreo - Diz Arthur.

Mark sai da recepção sem dar bola pra chuva que cai com força e ruma para a escada externa que dá acesso ao segundo andar. “O que diabos eles estavam pensando?” se questionou Mark, várias pessoas morreram porque alguém não fez o seu trabalho direito e a emissora preocupada com o raio da imagem dela? Aquilo era amargo de digerir.

Perdido em pensamentos, quase em frente a porta de seu quarto Mark congela… A porta de conglomerado estava destroçada. Mark sente seu coração acelerar enquanto dobra os joelhos e vagarosamente se aproxima do marco da porta. O local estava vazio. Se sentindo mais confiante ele entra e vê que algo rasgou partes da roupa de cama e revirou as mobílias do quarto…Algo esteve ali procurando por ele…Algo com garras. Na mesma hora a frase do velho no bar lhe veio à mente.

Desceu as escadas o mais rápido que podia, tomou o rumo do bar mesmo vendo que na frente dele já não se encontrava a caminhonete velha que deveria ser do velho John. Atravessou a rua sem olhar para os lados e adentrou o bar, apenas para levar um novo choque. Manchas de sangue cobriam o chão, uma janela lateral que não se via da frente do estabelecimento estava estraçalhada. Martha estava caída contra a parede e lhe faltava um grande pedaço do ombro e do pescoço. O caminhoneiro estava caído em uma poça de sangue na metade do caminho entre a mesa na qual se encontrava e o balcão. Seja o que for, aquela coisa também havia estado por ali, será que havia sentido seu cheiro também no bar? Não havia tempo para pensar nisso.

Mark volta correndo à recepção do hotel, estava na torcida para que Arthur tivesse um carro e conseguisse dar o fora daquele novo pesadelo. Assim que se aproximou e viu o vidro da recepção estourado ele congelou novamente por um instante. A recepção estava silenciosa e mal iluminada, mas podia sentir que tinha algo ali que fazia seu estômago congelar e seu coração pulsar fora do ritmo. Dando mais dois passos com pouca confiança ele vê algo se mexendo lá dentro, algo se erguendo do chão. A silhueta revela algo grande coberto por pêlos escuros enquanto um leve rosnado começa a surgir. Mark olha desesperado para os lados e consegue distinguir a uma quadra dali a fachada onde podia se ler “Departamento de Polícia”. Sem pensar duas vezes e sem se preocupar se foi visto ou não pela criatura, ele sai em disparada rumo à segurança. Após percorrer meia quadra ele escuta o barulho do vidro do hotel, mas não se preocupou em olhar para trás, não havia tempo para este luxo.

Mark adentra correndo na delegacia dando um bom susto no policial que estava atrás do balcão.

- Ei garoto, você quase me matou de susto - Diz o policial agora rindo.

Outros dois policiais saem dos fundos do prédio com copos de café em mãos e olham para a cena. Mark está encharcado e seu rosto parece desprovido de qualquer tom de cor. Ele fica parado ali com a respiração pesada tentando falar, mas parecendo engasgar nas palavras.

- O que foi garoto? - Pergunta o homem mais velho com a xícara de café na mão.

- A coisa…a coisa no mato - Responde Mark tentando buscar fôlego e coragem - Ela tá aqui na cidade.

- Você tem certeza disso? - Pergunta o homem no balcão perdendo o sorriso.

- Atacou o bar, tem duas pessoas mortas lá - Respondeu Mark perdendo o equilíbrio e se ajoelhando no chão.

O Policial mais velho passou o balcão e ajudou Mark a levantar, depois o levou até uma cadeira do lado de dentro.

- Eu vou checar - Disse o Policial que estava à frente do plantão, saindo pela porta da delegacia com a mão sobre a arma no coldre.

O policial mais velho fica analisando a expressão de pavor de Mark por alguns instantes enquanto se recosta sobre uma mesa e cruza os braços.

- Sabe filho, às vezes quando a gente passa por uma experiência traumática - Começa a argumentar o Policial, acreditando que Mark possa estar sofrendo de algum trauma, mas o som de um disparo o faz sobressaltar da mesa e abandonar a teoria.

O policial puxa Mark pelo braço com apenas uma mão, enquanto com a outra já segura um revólver prateado. Ele conduz Mark até uma cela vazia e o tranca.

- Você vai estar seguro aqui dentro, filho - Diz o Policial antes de sair em disparada.

Neste momento duas sensações entravam em conflito dentro de Mark, a primeira tentava lhe dizer que estava em segurança, a polícia estava no caso e ele estava trancado em uma cela com barras de aço reforçadas. Mesmo assim, a segunda sensação da insegurança e do medo insistiam, tanto por saber que ainda existia uma ameaça lá fora como também por saber que estava trancado e não teria nem ao menos como correr para outro lugar.

Dois disparos trouxeram Mark de volta da confusão para sua situação atual, logo foram mais três e seguidos de muitos gritos… Gritos de desespero… Gritos de agonia. Mark recuou três passos para o centro da cela e ali ficou congelado, sua respiração parecia não existir mesmo que seu coração acelerasse desta vez em um ritmo que ele nunca pensou ser possível sem arrebentar seu peito. Logo o barulho do vidro da porta da delegacia sendo estilhaçado lhe causa um choque, seu corpo treme com aquele som, mas volta a congelar, ele mentaliza que aquilo não pode ser verdade por diversas vezes, mas não muda o fato que está lá. Do lado esquerdo do marco sem porta que divide os fundos da delegacia da frente ele vê aquela estranha criatura que para ele só existiu nas fábulas, aproximadamente um metro e noventa de altura, aparentando 1,75 pela curvatura que andava, uma pelagem negra cobria a maior parte do corpo, com exceção do tórax, parte superior do rosto e a ponta das garras. A figura lupina tinha olhos negros como a noite, mas mesmo assim um brilho despontava deles ao encarar sua presa. O focinho longo acima de uma grande mandíbula ameaçadora e pela qual a fera salivava foi a visão que fez Mark cair de joelhos no chão da cela, ela estava praticamente catatônico por alguns momentos ao ver a fera. A criatura se aproxima a passos lentos da cela encarando o rapaz nos olhos e dando algumas farejadas no ar, quando ela solta um imponente uivo que Mark parece sair do transe no qual se encontrava. Como não tinha muito o que fazer ali, se limitou a puxar o cobertor da pequena cama que havia na cela e se abraçar nele como se fosse uma criança em busca de proteção.

-Resiste… Resiste - Dizia Mark repetidamente agarrado ao cobertor, mas encarando as barras de aço que lhe separavam da criatura.

A fera olha para as barras mas não parece ter sua capacidade total de raciocínio focada nisso, ela se afasta uns seis passos e dá a primeira investida, que apesar de gelar o sangue de Mark ainda mais, não pareceu surtir o menor efeito nas barras. A criatura recua e investe novamente, mas mesmo sem efeito ainda ela continua por diversas vezes sem nem se demonstrar ferida. Após duas dúzias de investidas ela para, se aproxima lentamente das barras, puxa o ar profundamente, como se sentisse algum prazer em sentir o cheiro do jovem assustado, e estica vagarosamente seu longo braço para dentro da cela na esperança de alcançá-lo. Mark estremece e recua, mesmo vendo que o braço da criatura não pode tocá-lo. O monstro parece que compreende que não pode transpassar aquelas barras, mas fica ali caminhando na frente da cela, rosnando baixo, quase como se fosse um canto. Parecia que atormentar sua vítima já era um prêmio de consolação. Assim a criatura ficou por horas, testando a sanidade do rapaz que já vivia uma mistura de medo e ódio naquele momento.

Momentos antes de surgirem os primeiros raios de sol, como se a criatura soubesse perfeitamente a hora, ela solta um último rosnado de fúria e desaparece trotando rumo a porta. Mark ficou desolado durante a primeira hora sozinho, chorava, depois se calava, não aguentava mais aquele inferno, ao mesmo tempo que a sensação de impotência começava a lhe deixar irritado, fora escolhido para ser o jantar de algo que nem deveria existir.

Outra hora se passa até que o barulho de um veículo se aproxima da delegacia, logo que o som cessa, John aparece entrando na parte dos fundos com uma espingarda de cano duplo em punho. Assim que ele chega perto da cela e vê Mark, ele respira fundo e abaixa a arma. Acende um cigarro, depois dá alguns passos e joga o maço e o isqueiro para dentro da cela.

- Olha garoto - diz John soltando uma longa tragada - Acho que agora você sabe que eu não sou louco, foi como eu te disse… Aquela coisa te farejou, ela não vai parar até te pegar. Tente não se sentir culpado, eu também não acreditaria.

- Culpado? - Pergunta Mark como se acordasse de um sonho - Por que eu me sentiria culpado?

- Olha… Acho que não tem uma maneira delicada de falar isso, achei que já tivesse passando pela sua cabeça, mas qualquer pessoa que você se esconder atrás ou que ficar no caminho entre você e aquela besta… Vai morrer. - Diz John encarando o chão - Você pode correr o quanto quiser, mas lamento filho, seu destino foi traçado no momento que aquilo sentiu o seu cheiro.

- E como você sabe de tudo isso? - Perguntou Mark disfarçando a culpa que começava a atingi-lo por todos aqueles que morreram para que ele vivesse mais um dia.

John se aproxima de um pequeno banco e se senta.

- Quando eu era garoto aconteceu com o meu irmão, nós estávamos juntos, não sabíamos muito bem o que se passava por aqui, muita gente vinha de fora para os EUA e tudo era uma loucura. Um dia na floresta nós vimos esta criatura, que passou a nos perseguir. Assim as pessoas que tentavam nos salvar foram morrendo uma a uma, até que quando a fera nos alcançou acabamos descobrindo o alvo, para o infortúnio do meu irmão era ele. Naquele tempo as pessoas acreditavam mais do que hoje em dia, assim começou uma caçada na qual mataram um homem que veio da Europa para a cidade, se era ele ou não a tal besta, não sabemos. O que sei é que ele nunca mais foi vista até os dias de hoje.

- Como mataram ele? - Perguntou Mark pensativo.

- Uma adaga de prata garoto, enterrada no coração. - Respondeu John se levantando. - Agora espera um pouco que vou dar um jeito de te tirar daqui.

John sai para a rua e volta cerca de 12 minutos depois carregando um molho de chaves manchado de sangue, com o qual abre a cela. Mark sai de lá, agora fumando um cigarro, faz menção de devolver o maço e o isqueiro, mas John diz para ele ficar. Assim que saem para a rua, enxergam algumas pessoas paradas em frente ao hotel, enquanto outras mais velhas parecem jogar suas coisas dentro de seus carros com o máximo de pressa possível, esses eram os que acreditavam. Ao olhar para o chão, Mark vê a pistola de um dos policiais caída, junta ela o coloca o mais rápido possível escondida na cintura.

- Qual o plano garoto? - Pergunta John ao observar a cena.

- Te agradecer - Diz Mark estendendo a mão - Agradecer por ter falado comigo, mas não vou mais colocar sua vida em risco, nem a de ninguém.

- Foi bom te conhecer garoto, queria que fosse diferente, de verdade. - Diz John apertando a mão de Mark e deixando uma pequena lágrima visível no olho esquerdo.

Mark olha para a rua principal por um instante, assim que visualiza um pequena loja corre em direção a ela ignorando todo o resto. Ele para na frente da vitrine onde se lê “antiquário” e aproveita a distração da cidade para quebrar a vidraça de uma janela lateral e invadir a loja.

Ninguém prestou atenção naquele furto, muito menos no rapaz se esgueirando para fora da cidade rumo à mata carregando uma mochila cheia de pilhagens. Mark sabia que tinha que tentar algo, não podia simplesmente desistir da vida sem lutar, mas também sabia que o medo lhe tirava a firmeza das mãos e que certamente mesmo que a tivesse, não seria páreo para a força descomunal daquele predador sobrenatural. Ele levou cerca de duas horas para chegar à cabana, teve um arrepio só de olhar para ela. Ao se aproximar da porta pode ver com mais clareza as centenas de cortes de garras que haviam ficado nela. Ignorou as manchas de sangue ao redor e foi juntar o máximo de lenha que conseguiu, dedicando as próximas horas a botar seu plano em prática, mesmo estando completamente exausto. Deveria ser por volta de duas horas da tarde quando ele terminou, agora precisava descansar um pouco para aumentar suas chances. Trancou a cabana, comeu uma das latas de feijoada que ainda estavam lá e deitou-se no tapete, mesmo com a cabeça fervilhando, a noite em claro e o esforço foram aliados que lhe permitiram dormir por quase cinco horas.

Acordou apavorado, com medo que pudesse ter dormido demais, uma vez que não tinha nenhum despertador ou relógio, mas ao olhar por uma fresta e ver um pouco da luz do final da tarde lá fora lhe tranquilizou. Mark saiu da cabana, pegou a lenha que havia sobrado e acendeu oito pequenas fogueiras pelo perímetro da clareira, rodeando a frente da cabana, precisava de visibilidade. Pegou o machado da cabana, no qual agora havia prata derretida junto ao fio, trabalho que lhe consumiu várias horas naquele dia e boa parte dos talheres de prata que roubara do antiquário, tentou fazer isso com uma das balas de pistola, mas não deu muito certo, tanto por não ter as habilidades, como por não querer desperdiçar a pouca prata que tinha, assim perdeu duas balas de pistola, lhe restando cinco (as demais foram disparadas pelo policial antes de morrer).

Mark sentou-se em frente a cabana e fumou um cigarro enquanto acompanhava a luz do dia terminar de desaparecer. A cada 30 minutos ele largava mais lenha sobre as fogueiras, sem desprender sua atenção da mata por nenhum instante, a demora era quase tão angustiante como o fato de saber que provavelmente morreria.

Deveriam ser umas 21 horas quando ele escutou aquele uivo que já conhecia, minutos depois já escutava alguns galhos quebrando antes da entrada da clareira, a fera estava ali lhe espreitando. Mark ficou com a pistola em punho, deixando o machado encostado próximo a sua perna, e ficou no centro da área das fogueiras esperando seu momento e imaginando se teria coragem.

Cerca de vinte minutos depois a fera encara o desafio, ela atravessa a clareira em um salto e para a cerca de 30 metros de Mark, lhe encarando com certa satisfação no olhar, agora não haviam outras pessoas, não haviam barras de aço… Era apenas ela e sua presa.

Mark aponta a pistola e dá dois disparos, errando ambos, pois nunca havia usado uma arma daquelas na vida, fora que suas mãos tremiam conforme o sangue gelava, algumas coisas saiam bem diferente do que ele imaginou. Após os dois primeiros disparos a fera cheia de confiança avançava a passos lentos como se saboreasse aquele momento. Mark segura a pistola com as duas mãos e respira fundo, atira seus últimos três projéteis em cheio no peito da criatura, que faz uma expressão de dor, mesmo que nenhum deles lhe perfure, como se fosse apenas contusão. O olhar de satisfação da fera se transforma em raiva e ela dispara com velocidade em direção ao rapaz. Mark coloca uma mão sobre o cabo do machado e comanda para que suas pernas recuem alguns passos, mas elas não obedecem mais, novamente ele congela. Com muito esforço ele consegue segurar a segunda mão no cabo do machado, a fera salta em sua direção e assim que aterrissou frente a frente a Mark sua expressão de ódio se transformou novamente em dor. Assim que se curva em direção ao chão para entender o que aconteceu, vê seu pé preso em uma armadilha de urso que estava escondida por algumas folhas. A mesma armadilha que antes se encontrava na parede de um antiquário, agora tinha prata banhando seus dentes. A criatura bate com as duas patas inutilmente contra a armadilha, e assim que sua dor se transforma em fúria e ela se volta para Mark, o jovem já está com o machado erguido ao alto e desfere um golpe com todas as suas forças, fazendo a ferramenta adentrar o peito da fera.

A criatura cai para trás e se debate em agonia, seu corpo parece entrar em convulsão enquanto solta um uivo prolongado. Sua pelagem negra começa a clarear, seu corpo parece se retrair e diminuir a cada segundo. Mark se afasta horrorizado, mas sem conseguir desgrudar os olhos da cena. Leva cerca de um minuto, para que no lugar do corpo da besta apareça sua forma humana…Uma menina loira de uns 18 anos, corpo magro e nu, agora com um machado cravado no peito e sua perna presa em uma armadilha de urso… Justo aquela participante que Mark achava que não teria a menor chance de aguentar o desafio, acabou por ser a mais feroz competidora. Mark trouxe a coberta da cabana e cobriu o corpo dela, acendeu mais um cigarro enquanto se recompunha. Depois pegou a lanterna da cabana e decidiu se embrenhar na mata. Caminhou diversos quilômetros no escuro, agora não tinha mais medo.

Levou cerca de três horas até ele passar a área marcada e localizar a cabana da jovem. A porta estava aberta, suas coisas ainda estavam quase todas na mochila que trouxe. Mark despeja o conteúdo da mochila no chão, havia comida variada, um urso de pelúcia, mas no fundo havia algo enrolado em um tecido bem surrado. Ao abrir o embrulho Mark encontra uma adaga de prata e um diário. Ansioso ele vai direto até o último registro.

“Provavelmente seja a última vez que eu escreva aqui, pois já não aguento mais tudo que acontece e depois de um longo tempo estou voltando para a casa que nunca conheci. Volto para a terra onde meu avô se instalou neste país, não sei porque ele quis vir, talvez achasse que aqui poderia achar uma cura milagrosa para o mal que nos aflige, não sei… Mamãe sempre dizia que ele era tão reservado quanto a isso. Ao menos ele morreu e não precisou mais sofrer…Se é que ele sofria…Eu sofro. Lamento muito não ter a coragem de mamãe, sinto muita falta dela, mas a coragem que teve para tirar sua própria vida é algo que eu invejo e não que condeno. Me sinto uma grande covarde pelo que estou fazendo, em me jogar ao destino no meio do mato, não tenho coragem para fazer o que deveria, então sinceramente espero que alguém me mate antes que eu consiga tirar uma vida sequer, se não me entregarei a esta loucura até o fim dos meus dias, mas não posso mais viver como eu vivo, querendo ser normal, querendo amar e ser amada…Sonhando com tanta coisa que nem me pertence por uma maldição que acompanha o nosso sangue. Nossa linhagem termina aqui, se existem outros eu não sei, só sei que não quero mais existir desse jeito.

Se alguém um dia encontrar isto peço do fundo do coração que me desculpem, se houver algo de estranho que vocês não compreendam, por favor, usem este punhal, eu só quero descansar e ver a mamãe novamente.

Emily”

Mark guardou o diário com ele, assim como o punhal e colocou mantimentos na mochila. Agora sabia que a fera que o perseguia era presa de si mesma, seu ódio se transformou em pena, a menina que não podia amar nem ser amada agora descansava ao lado da mãe nos pensamentos de Mark. Ele seguiu pela mata vários dias, pegou carona quando chegou na auto estrada e seguiu como mochileiro fazendo seu trajeto de volta para casa. Para a família disse que o programa fora cancelado, quando a emissora e a polícia o procuraram disse não saber o que realmente havia ocorrido e riu falsamente junto com eles ao lhe contarem que pessoas da cidade diziam que foi um “lobisomem”.

Mark pegou o dinheiro que recebeu e decidiu viajar, conhecer novos lugares e pessoas, de alguma forma se sentia ligado àquela pessoa que não conheceu direito em forma humana, assim vivendo cada dia por dois, pois ele podia amar e ser amado.

Mark nunca mais teve crises de pânico.