O inverno de Boriska
Um dia minha mãe resolveu me levar para uma igreja por causa das vozes, as que eu escutava. Lá o pastor colocava suas mãos besuntadas de óleo da unção na minha cabeça para expulsá-las dos meus ouvidos. Funcionava por um ou dois dias no máximo.
Afinal, eu gostava do que ouvia: segredos e outras infâmias.
Minha mãe, claro, prendeu-se à fé mais ainda com uma atitude ferrenhamente radical, como se já não fosse ruim o suficiente ficar em casa aos cuidados de uma tia porre, também tinha as reuniões de exorcismo e orações, longas e sem graça como comida de hospital.
Até que um dia eu falei com ela sobre o meio homem com pernas de bode que me contava tudo. Inclusive do caso dela com um colega do trabalho que era casado. Mamãe desde esse dia não me importunou mais com suas orações e crenças no homem da cruz.
A história a seguir me foi confidenciada quando eu tinha doze anos. O meio homem disse que era de uma cidade muito especial onde ele tinha muitos amigos.
Dessa vez não recorri a nenhum ritual para sabê-la.
***
O ar frio enche meus pulmões enquanto caminho lentamente em direção à beira do abismo. Lá embaixo, tudo o que me espera é uma morte que duvido que seja rápida, porque o fundo do abismo em si não é tão distante do alto em que estou e que desejo alcançar com a minha queda. Um abraço de terra e rochas dentadas é o que preciso depois de percorrer os metros de alto a baixo como uma estrela que cai do céu no mês de Assur, sabendo, no entanto, que meu corpo rejeitará fazê-lo, porque meus ossos querem a vida e o meu espírito a Morte, da qual falou um amigo.
Meus olhos percorrem a extensão do mar e da terra, um lugar ermo e branco por causa das intensas nevascas que castigam este lugar há anos. Ninguém em todo mar Egeo à minha frente, ou na terra de Rirak, atrás de mim, foi capaz de explicar o que aconteceu a este lugar, que um dia teve os mais belos campos floridos e as mais belas praias com ondas que rebentavam na areia fofa e quente.
Eu lembro bem dos dias de sol, quando éramos um povo feliz e cantador, que rimava as coisas do dia a dia em canções que alegravam palácios e fortalezas por todo o lugar. Lembro quando fomos conhecidos como os bardos de Boriska, a cidade das festas, uma joia no meio do mundo. Todavia, agora sofremos com a neve e a solidão, resignados cada um a seu interior, compartilhando parcamente fogueiras e sopas sem sal, enquanto sofremos com as lembranças de uma época que parece tão distante a ponto de eu achar que tudo não passou de um sonho, que o que vivemos — meu povo e eu —, foi apenas um encanto, um refugo de alguma magia de alguma bruxa má que agora mesmo deve estar dormindo com algum demônio, procriando uma raça maldita para atormentar os elfos que aqui resistem, os que ainda esperam que Boriska volte a cantar suas canções para o mundo.
O horizonte branco e gelado é um adversário intenso e formidável, que bafora em nossa cara sua força gélida, contra a qual não resistimos, mas nos rendemos, com roupas quentes e lágrimas em réstias nos rostos de cada elfo e elfa...
— A Morte tem uma voz bonita, afinal — disse Yaebo, enquanto eu soprava uma colherada fumegante de ensopado de lebre, numa visita à sua casa, a que seria a última — mas sem ideia de que a fosse —, porque se soubesse, eu não seria bardo, seria vidente, um alguém que enxergaria o passado e o futuro nas borras de café e nas linhas da mãos. Uma pena, no entanto, afinal, a magia não me tocou no ventre da minha mãe e a estrela sobre minha cabeça é errante demais para que o universo derramasse algum poder sobre ela para mim que sou seu protegido. — Ah, canis — suspiro.
Os olhos de Yaebo eram os mais bonitos de toda Boriska, razão pela qual muitas trovadoras escreveram versos apaixonados e intensos de uma paixão que transcendia todas as razões. Apesar de não ser tão diferente dos outros elfos que também tinham olhos verdes, os de Yaebo tinham o brilho das estrelas e o calor dos vulcões. Era impossível encará-lo sem sentir um afago de dentro para fora, o qual preenchia qualquer vazio.
Esse era meu amigo.
No entanto, o frio lhe tomou tudo, principalmente quando seus pais morreram da doença do inverno, que chegava sorrateira, tomando os pulmões, enchendo-os de um muco amarelado cor de tijolo até que a respiração se tornasse tão pesada que os doentes relatavam sentir enormes bolas de ferros sobre o peito, e no fim de tudo, restando-lhes apenas um chiado sem graça como sopro de vida.
Ele sofreu tanto com a perda da família que o brilho que havia em seu olhar foi se apagando, dia após dia, entre as lágrimas que ele derramava durante a noite, que se confundia com o dia, alongando seus sentimentos em uma passagem por um corredor lúgubre de um luto sempiterno, diante de si.
A beira do abismo revela muito sobre nós mesmos. Encará-lo é como encarar a própria profundidade, é como perder-se nos desejos mais obscuros que me habitam a alma, que pensara eu ser mais feliz, mas não, não mesmo. Sempre fora escura, suja e obstinada de prazeres surreais.
— Yaebo — seu nome corta meus pensamentos, fustigando-os com um frio mais gelado que o da brisa que sobe do mar. Eu lembro, meu amigo. Sei que não era o que você gostaria, mas era o que você tinha. — Ah, como eu gostaria que aquele ensopado não tivesse acabado. O arrependimento é uma mão amiga, que me joga para os lados da minha existência finita como uma tempestade que joga um marinheiro ao convés.
Há uma semana. O tempo dos dias passaram voando e eu não pude senti-los como de costume. Minha mente estava em neblinas densas. Havia tanto para tentar entender, até ontem, quando desisti de buscar as respostas, porque ele partiu sem olhar para trás, sem nomear ninguém para tocar suas violas em seu lugar. Ele quis ir sem despedida, sem adeus mesquinhos e insensíveis.
Quando voltei no outro dia, depois do ensopado, à sua casa, a porta entreaberta deixava o sopro do vento carregar para dentro da sala um mar de neve, que cobrira a maior parte dos móveis e a chama da lareira tremulava sem emoção, num fim angustiante contra a falta de lenha. Achei esquisito e imaginei que ele tivera saído, deixando a porta aberta. Mas algo me impelia a entrar, a chamar por Yaebo. — A voz da Morte — pensei. Ela me avisava de que algo estava errado.
Sai da sala e rodeei a casa, chegando ao quintal, que estava com morros de neve que não eram recolhidas há semanas. Yaebo parecia mais desleixado perto do fim. Os sinais estavam lá, sempre estiveram. — Como não pude perceber? — foi a primeira coisa que pensei quando recebi velhos amigos no funeral. Ninguém chorava e todos estavam alienados à dor, afinal, cada um carregava uma perda inominável dentro de si.
Meu amigo estava no quarto e surpreendentemente lá havia calor, uma coisa amarelo-avermelhada como um raio de sol órfão no meio de um inverno cinzento. Eram os seus olhos, que brilhavam esbugalhados como duas pedras preciosas fora de suas órbitas por causa de uma corda que lhe apertou o pescoço — dois planetas entre os milhares que habitam nosso universo. — Por isso eram tão bonitos — pensei quando os vi. As cores e a intensidade estavam de volta, mas Yaebo não…
Uma lufada de vento subiu outra vez do abismo, mas dessa vez era quente e apaziguadora, e então a coisa mais incrível que já tinha visto acontece, um enorme dragão de escamas marrons surge, batendo asas que sopram para longe a neve. Não tive medo, porque no fundo do meu coração eu sei que a criatura está aqui para nos ajudar, me ajudar.
— Ei pequeno — diz o dragão, com uma voz profunda e antiga.
— Sim, senhor — respondi da melhor forma que se poderia falar com uma criatura tão majestosa. Eu sinto que seus olhos perscrutam o mais profundo do meu ser, testando minhas motivações mais pessoais.
— Eu preciso de um cavaleiro para acabar com meu irmão, o dragão da neve.
Eu o olhei por alguns instantes, incerto do que aconteceria, afinal, eu era um bardo e não um elfo dado a batalhas, como os cavaleiros. Mas eu havia de decidir, era o meu momento.
Então o fiz.
— Sim, grande dragão. Serei este cavaleiro que você busca.
O grande dragão pousa perto de mim com suas enormes patas traseiras e asas, sacudindo a neve ao redor. Suas escamas pontiagudas me servem de degraus para eu montá-lo, num comprido cangote, onde me sinto aconchegado como num colo de mãe.
Partimos então, com ele batendo asas que sopram um vento quente.
— O elfo e um dragão numa missão para destruir o dragão da neve — penso, sentindo o vento cortado que passa pelas costas do dragão.
Um novo nome para a história de Boriska, enfim.