AQUI SE FAZ AQUI SE PAGA

A noite de sexta-feira, treze de abril de dois mil e um, mudou a vida de Leandro Amorim, vulgo “Leleco”. Leandro tinha trinta e três, era casado e tinha um filho de dez anos. Leleco estava desempregado, andava por todos os cantos cabisbaixo e estressado, dava patadas e foras constantemente e se irritava com facilidade. Ele estava bem diferente do que era. Os amigos, a pedido de sua esposa Anne, fizeram um rateio e prepararam um churrasco na casa de um deles. Leleco relutou bastante em ir, principalmente por não poder colaborar com nada, mas acabou indo.

Ele já estava na sétima garrafa de cerveja quando Sara se aproximou. Sara, uma jovem de apenas dezesseis anos, estava lá junto com o primo Alisson, amigo de infância de Leleco. A jovem trajava um vestido preto, coturno e usava maquiagem pesada. Leleco deixou ela sentar a seu lado. O pentagrama no pescoço da jovem brilhou. Leleco elogiou o cordão da moça, que o colocou para dentro do vestido. Ele fechou a cara e voltou sua atenção para a cerveja.

Sara esperou alguns bons minutos para falar algo, mas quando falou fez Leandro se assustar. A jovem começou a falar tudo sobre a vida dele. No inicio ele achou que Alisson tinha contado, mas Sara contava coisas que nem Alisson sabia. Leleco ouviu tudo que ele já sabia e sorriu para a moça. Ela perguntou se ele queria sair da situação em que estava. Leleco não tinha outra opção e respondeu que sim. Sara levantou entrou na casa. Voltou minutos depois trazendo uma folha de caderno enrolada. Leleco pegou a folha e começou a desenrolar, mas Sara o impediu dizendo que ele só deveria ler o conteúdo quando saísse de lá. Leleco aceitou.

Horas depois, Leleco estava caminhando pela rua. Voltava para casa andando, cabisbaixo e desmotivado. Ele pôs a mão no bolso da calça jeans que usava e encontrou o papel que a jovem havia lhe dado. Leandro sorriu e caminhou para o ponto de ônibus próximo dele. Sentou cruzando as pernas, desenrolou o papel e leu:

Se quer ter fortuna e sair do desespero em que se encontra, pegue um ônibus e viaje para Itaipuaçu, distrito de Maricá, na região Metropolitana do Rio de Janeiro e procure pela rua novecentos e noventa e nove, casa. Leve uma vela negra, uma vela branca, uma faca afiada e giz. Desenhe um círculo, coloque as velas lado a lado, entre nele, acenda as velas, fique de joelhos e posicione a faca com a ponta em seu umbigo. Recite:

“Cabra Preta milagrosa que pelo monte subiu, trazei-me fortuna, que de minha mão sumiu. Fortuna, assim como os pássaros cantam, os cavalos soltam rinchos, os sinos tocam nas catedrais e a cabra berra. Tu terás de vir até mim. Com você dominarei a felicidade. Na minha mão não faltará dinheiro, com sede não ficarei, não serei violado por faca ou tiro, meus inimigos não me alcançarão. Assim seja e assim será”

Leleco riu tentando afastar a curiosidade de fazer aquilo, riu também por achar aquilo uma baita idiotice e riu por não acreditar naquelas coisas. Pôs o papel no bolso, entrou na Kombi e foi para casa, onde Anne o aguardava sorridente e seu filho Waldir Neto já cochilava no sofá.

Naquela noite, Leandro se sentiu cheio de vitalidade e fez amor nove vezes com Anne. A esposa não tinha tido tais momentos de prazer desde o inicio de namoro. Anne acreditava que seu plano de fazer Leleco sair com os amigos tinha sido um sucesso.

A manhã do dia quatorze começou tensa. Waldir, o sogro que odiava Leleco, chegou trazendo compras para casa e presentes para o neto. Aquilo detonou Leleco por dentro. Ele se retirou para o quarto. De lá ouviu Waldir falar mal dele para a esposa. Ofensas. Era de vagabundo, inútil e digno de pena, para baixo. Leleco não aguentou, vestiu a calça da noite anterior e saiu de casa.

Ele caminhou por horas e só não se afogou em um copo de cachaça, por não ter dinheiro para isso. Leleco sentou no banco da praça. Idosos jogavam cartas nas mesas de concreto cobertas por um pano verde. Algo incomodou sua coxa, ele pôs a mão no bolso e tirou o papel que Sara havia lhe dado. Sorriu e releu o que havia nele. Na mesma hora lembrou-se de toda a humilhação que passou com o sogro. Lembrou das discussões que sempre aconteciam. Das ofensas que Waldir sempre tinha na ponta da língua. A crença de que seu filho amava mais o avô do que a ele, veio como um soco na boca do estomago. Leandro levantou determinado, porque não tentar?

Leandro foi até a casa de Renato, outro amigo seu de infância, pegou trezentos e cinquenta reais emprestados e voltou para casa. Inventou para Anne que iria em uma entrevista de emprego em Niterói na segunda.

Segunda de manhã Leleco foi em uma loja de artigos religiosos, comprou as velas, o giz e a faca. Entrou em um ônibus para o centro da cidade e de lá foi para Itaipuaçu. Na viagem ele sentiu medo, confusão e por vezes se sentiu um tolo, mas sempre que pensava nisso algo acontecia e o distraia.

Três horas da tarde e lá estava ele no terminal rodoviário de Itaipuaçu. Leandro entrou em um taxi e disse para onde queria ir. Voltou a se sentir um idiota e pensou em fazer outra coisa com o dinheiro, quando viu o nome no crachá do taxista, que estava pendurado no retrovisor. Noveilton. Leleco riu e meneou a cabeça. A corrida durou menos de dez minutos. Leleco pagou, saiu do carro e olhou para a casa no meio do mato alto. Pensou em entrar no carro e voltar para casa, mas ficou estático ao ver o nome da cooperativa, a placa e o número do carro. Coopnine, carro 9, placa NNN 0999. Ele balançou a cabeça e viu o carro se afastar. Não tinha mais jeito.

A casa era pequena, só tinha um cômodo. Provavelmente uma obra não terminada. Ele se embrenhou no mato alto se arrependendo de ter levado uma faquinha, ao invés de um facão. Aquilo era mais um barraco, era só tijolo e cimento, por fora e por dentro. Havia um cheiro horrível de mofo, muita teia de aranha e grandes aranhas nos cantos.

Leandro pegou o papel e o desdobrou. Estava calor e ele suava de pingar. Limpou a testa com o antebraço e sentiu um friozinho na barriga. Voltou a se sentir besta em estar fazendo aquilo, mas agora não dava para recuar. Leleco tirou as coisas da mochila, riscou o círculo com giz no chão, posicionou as velas e pegou a faca. Esqueceu dos fósforos para acender a vela e lamentou ter que voltar na cidade.

Estava um sol de rachar o crânio e o local de comércio ficava a pelo menos vinte minutos a pé. Leleco reclamou e começou a andar. Foi um martírio caminhar até a rua novecentos. Ele estava de calça preta, sapato e camisa social rosa. Chegou na mercearia ensopado de suor e ofegante. A atendente estava de costas quando ele chegou no caixa com os fósforos na mão. A menina rechonchuda virou para ele. Leleco arregalou os olhos. A camisa da menina tinha uma bola de sinuca número nove estampada.

Leandro caminhou até a violenta praia de Itaipuaçu e ficou olhando para o mar, pensando na vida e no que iria fazer. Não tinha jeito. Ele voltou para a casa. Foram mais vinte minutos de caminhada. Quando chegou, sentou no chão, ignorou os insetos, as aranhas e a sujeira, acabou cochilando. Quando Leleco acordou já era noite. Estava um breu sufocante. Ele não enxergava nada, nem a palma da própria mão. Por sorte a caixa de fósforos estavam perto dele. Fez-se a luz, pouca, mas fez.

Leandro acendeu as velas e o lugar ficou melhor iluminado. Ele pegou a faca, respirou fundo e entrou no círculo. Sentiu um formigamento nas pernas e um calafrio na espinha. Estava fresco lá fora e uma brisa quase apagou as velas. Leandro dobrou os joelhos, posicionou a faca e pôs a folha na sua frente. Respirou fundo e pôs a ponta da faca no umbigo. Leandro recitou o que estava na carta. Nada de anormal aconteceu e ele se sentiu um bobalhão.

Leandro dormiu no chão frio de pedra. Passou fome e frio. Acordou com fome e andou mais de uma hora até o terminal rodoviário. Estava um bagaço. Fedorento, descabelado e imundo. As pessoas o olharam com nojo dentro do ônibus. O veículo deixou o terminal as nove da manhã do dia dezessete de abril de dois mil e um.

No fim de exatos nove dias, Waldir, o sogro de Leleco, infartou em casa enquanto recebia um sexo oral de sua amante e assistia a um jogo do Vasco da Gama. A fama de Waldir de bom homem, caiu por terra da pior maneira possível. Com a ausência do avô, Waldir Neto ficou mais próximo do pai.

Mais nove dias se passaram, Leleco estava indo visitar um cliente, sim ele conseguiu um emprego de vendedor de programas de Computador. Esse era seu primeiro cliente. Uma loja de materiais de construção. Um cego esperava para atravessar, Leleco ajudou o cego, que retribuiu lhe dando uma gorjeta de cem reais. Leandro pensou que o cego havia se confundido, mas não o cego quis lhe dar cem reais. Leleco relutou, mas por fim aceitou o dinheiro.

O cliente que Leleco visitou não tinha só uma, mais sim nove lojas e ele conseguiu vender seu programa para as nove. Sua comissão? Nove por cento de cada uma. Logo no primeiro mês, Leleco embolsou setenta mil de comissão.

A sorte de Leandro passou a mudar. Nove meses se passaram e ele já vivia com uma comissão de cem mil por mês, sem ter que trabalhar muito, os clientes simplesmente surgiam atrás dele como sedentos por água. Ninguém entendia como aquilo era possível. Nem ele.

A vida mudou. Ele e Anne tinham carro do ano. Mudaram da casa básica para uma baita casa com piscina, garagem para três carros, quintal e dois labradores, Spiff e Hercules, uma homenagem ao desenho que o acompanhou nas madrugadas de insônia, preocupado com o desemprego.

Mais nove meses se passaram. Leleco fez um churrasco em sua casa e chamou seus amigos. Perguntou para Alisson sobre sua prima, mas o velho e bom amigo não sabia dela. Cinquenta por cento de Leandro acreditava que sua sorte havia mudado graças aquele dia, os outros cinquenta por cento pensavam que tudo foi apenas sorte e trabalho. Mas porque aquela necessidade de encontrar Sara?

Oito dias se passaram, era vinte para meia-noite, Leleco e Anne tinham acabado de fazer amor pela nona vez naquela noite. O telefone tocou, Leandro olhou para o aparelho. Anne atendeu e deu o telefone para Leleco. Ele pegou o fone e era uma voz feminina conhecida pedindo uma visita para conhecer seu programa. Leandro confirmou para o dia seguinte as nove da manhã.

Nono dia após o churrasco. Lá estava Leandro, na portaria do prédio Novena, no centro do Rio. A mulher havia dito para tocar o número zero noventa, assim ele fez. O portão automático estalou e abriu. Leleco subiu até o nono andar e bateu no número zero, nove, zero. Sara abriu a porta. Estava seminua. Leandro ficou duplamente surpreso. Ela o agarrou pegou pelo colarinho e o levou para dentro. Beijou a boca dele ferozmente, rasgou sua roupa e o jogou no chão. Leandro não entendia porque não conseguia resistir. Sara beijava, arranhava e lambia o sangue que escorria dos arranhões.

Leandro lutou contra o desejo de possuir aquela mulher. Empurrou Sara e correu para a sala. A mulher o perseguia como uma canibal. Na sala Leandro se assustou com o que viu. Cabeças humanas estavam penduradas nas paredes. Quadros horrendos também faziam parte da decoração. Ele franziu o cenho e correu. Entrou em uma porta para fugir da mulher sádica que o perseguia. Bateu a porta e virou para trás. Estava em um quarto. As paredes eram vermelhas como o sangue. No chão estava desenhado um pentagrama invertido com símbolos em volta. No meio do pentagrama havia a estatua de um homem com cabeça de bode. O braço direito apontava para cima e o esquerdo para baixo. Sara espancava a porta lá fora. O desespero tomou conta de Leandro. O suor escorria gelado por seu corpo. Ele suspirou e decidiu enfrentar a mulher, que eram menos, mais frágil e com certeza não aguentaria com ele.

Leandro abriu a porta vagarosamente. Estava muito apreensivo. Sara não estava lá. Ele saiu vagarosamente e a encontrou na sala. Folhas de uma bíblia estavam espalhadas pelo chão. Sara se masturbava com um canivete, no sofá bege e surrado. O sangue escorria pela vagina da mulher e ela parecia gozar com aquilo. Leandro fez cara de nojo e correu para a porta.

Sara levantou e gritou o nome dele. Leandro não conseguiu resistir e virou para trás. Ela disse que era a hora de pagar pelos serviços dela, era hora do sexo magia. Leandro ficou confuso. Sara perguntou se ele topava. Leandro gritou um sonoro não.

Naquele mesmo momento, Anne sofria um acidente de carro na estrada da Dutra. Ela perdeu a direção ao se assustar com um motoqueiro, bateu na mureta e capotou. Anne morreu na hora.

Sara gargalhou, lambeu o canivete sujo de sangue e repetiu a pergunta. Leleco repetiu o não e correu para a porta.

Waldir Neto estava brincando com os cães no quintal, perto da piscina. Spiff correu e saltou sobre Waldir. O garoto não aguentou o peso, caiu para trás e bateu a cabeça em uma das cadeiras. Um rasgo de dez centímetros. O sangue e a massa vazavam como uma cachoeira. Waldir morreu.

Leandro não quis esperar o elevador e desceu as escadarias correndo. Atravessou o hall e saiu do prédio. Sara o olhava da janela. Leandro atravessou a rua e invadiu o estacionamento. Todos olhavam espantados para ele. Leleco virou a chave e arrancou com o carro. Jogou uma nota de cem para pagar o estacionamento e saiu às pressas.

Já em casa, caiu em prantos ao saber da morte do filho e da esposa. Seu mundo desabou muito rápido. As horas passaram. Eram nove horas da noite. O telefone tocou. Ele atendeu. Era uma voz masculina, a voz de seu sogro na verdade. Leleco bateu o telefone acreditando que o choque estava fazendo ele ter alucinações. O interfone tocou. Leleco atendeu. Era Alisson.

Os amigos se abraçaram. Alisson se mostrou muito parceiro, bebeu com o amigo e o consolou das melhores formas possíveis. Antes de ir embora entregou um papel dobrado para Leleco. Os dois se despediram.

Era quase meia noite. Leleco tomou um banho quente e saiu do banheiro. Aquele foi o pior dia de sua vida, perder o filho e a esposa em acidentes brutais, não era para qualquer um. Ele desceu para comer algo e viu o papel que Alisson lhe deu sobre a bancada. Sentou, desdobrou o papel e leu:

"Aqui se faz aqui se paga.

Você pediu e eu lhe dei.

Eu queria uma coisa simples e você não me deu, então eu tomei.

Que a loucura emocional seja sua companheira.

Que a solidão seja sua amante.

Que o frio, o calor, a sede e a fome sejam seus companheiros.

Tibi gratias ago pro hoc legere fabula."

Leandro sentiu uma dor terrível de cabeça, picotou o papel e adormeceu.

Leandro caiu em depressão profunda. Parou de comer. Conheceu o crack e o álcool. Em dois mil e dez, nove anos após fazer o ritual em Itaipuaçu, Leandro já tinha perdido tudo que tinha. Foi internado varias vezes. Foi preso. Se prostituiu.

Hoje em dois mil e dezenove, Leleco, ou o que sobrou dele, vive nas ruas do centro do Rio. É viciado em álcool e em crack. Tem câncer de próstata, enfisema pulmonar, está cego de um olho e perdeu todos os dentes.

Sexta-feira, treze de setembro de dois mil e dezenove, Leandro está vagando em um beco. Uma mulher ruiva transita sozinha pela rua. Era a vítima ideal, mulher, bonita, frágil e sozinha. Ele avança e a agarra por trás. Ela se vira. Leandro arregala os olhos e cai para trás. É Sara. Mais velha, mas ainda atraente e bonita. Ele se arrasta para fugir. Ela sorri.

Sábado, quatorze de setembro de dois mil e dezenove, o noticiário da manhã choca o público: “Homem é encontrado pendurado com nove facadas em poste no centro do Rio...”

Erich Noronha
Enviado por Erich Noronha em 16/10/2019
Reeditado em 16/10/2019
Código do texto: T6771126
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.