O FIM DO MUNDO!!!!!

Rogério nasceu no interior do estado do Piauí. Família humilde. Seca. Seu Catarino não tinha condições de mandar os oito filhos pra escola. Era longe e custoso. Os meninos ajudavam no roçado. Rogério, treze anos, era o mais novo. Vivia fazendo arapucas pra pegar tatú. Vivia no mundo da lua. Gostava de olhar para o céu, absurdamente estrelado no escuro total do sertão. Se esticasse o braço era quase possível tocar as estrelas! Rogério sonhava com a cidade grande. Sonhava em ter um rádio e uma televisão. Sonhava com tanta coisa!! Era um sonhador. Sonhava tanto que era sonâmbulo. Vira e mexe despertava todo ralado pois andava dormindo pelo quintal. Certo dia, uma novidade trazida pela turco Salim, vendedor de panelas de cobre. Um circo chegara a cidade de Curió. Os filhos de Catarino, especialmente Rogério, ficaram encantados com a novidade. Fabiano, Cosme e Damião, os mais velhos, pediram permissão ao pai para irem ao circo, na cidade a treze quilômetros dali. O velho pai autorizou. -" As meninas e o Rogerinho não vão!!! Circo é coisa de homem!!!!" O menino ficou decepcionado. Chorou o dia todo. Noutro dia, os irmãos narravam as atrações do circo: a mulher barbada, o anão, o mágico e os palhaços. Rogério ouviu, fingindo não demonstrar interesse algum. Duas semanas depois. O circo ia embora pra Trancoso. Era o que dizia as lavadeiras do riacho da Jararaca. Era o que a mãe de Rogério disse a família, na hora da janta. Rogério arregalou os olhos. -" Circo nessas bandas dá prejuízo! Só tem pobreza aqui." Disse Cosme. -" Lugar de circo lucrar é na cidade grande!!!!" Acrescentou. Pra Rogério, Trancoso era cidade grande pois sabia que tinha trinta casas! Trinta casas pra um menino do sertão é muita coisa!!! O menino mal dormiu naquela noite. O sol nem tinha dado as caras quando ele saiu da casa de barro batido. -"Onde vai, moleque????" Uma voz atrás dele. Rogério se virou. Era a mãe. -" No mictório, mainha!! Bebi muito chá!!!!" A mulher pigarreou e voltou ao quarto. Rogério correu pelo quintal. Passou pelo mictório e rumou para a estradinha de terra. Andou muito. Cansou de andar. Curió era mais longe que imaginava. Tinha ido lá no lombo de um jegue, da última vez. O sol saiu. Do alto do morro viu o povoado lá embaixo. A matriz ao centro da praça. Sorriu. Tinha chegado ao destino. Olhou e não viu o circo. Damião dissera que tinham dois caminhões e uma perua Kombi. A lona. Não viu a lona armada. Não queria ser visto pois o pai e os irmãos viriam, certamente, atrás dele. Rogério contornou a cidade. A saída pra Trancoso. O menino enxergou a poeira na estrada. -" São eles!! É o circo. Está indo embora!!!!" Tinha certeza que eram carros do circo pois em Curió ninguém tinha veículo. O menino correu. Juntou todas as forças. A marcha dos veículos do circo era lenta. Sorte do menino. Dez minutos e alcançaria a comitiva de artistas. Ofegante, Rogério se agarrou a carroceria do caminhão, se apoiando no para-choque. Estava feliz. Estava indo embora de casa. Em Trancoso foi descoberto. -" O que faz aqui, garoto????" Perguntou o mágico, também bilheteiro e dono dono do circo. -" Quero trabalhar com o circo!!!!" Os outros artistas riam. Rogério estava coberto pelo pó da estrada. -" Pode ficar mas vai trabalhar muito. Não vai comer de graça!!!!" Disse o mágico. Rogério fez de tudo nos cinco anos de circo. Foi faxineiro, cozinheiro, arrumador de lona, auxiliar dos palhaços, malabarista e pipoqueiro. Mais velho, foi admitido entre os artistas. Com seu primeiro salário comprou um rádio. Conheceu o Ceará, Pernambuco, Bahia e Goiás. O palhaço Pirulito lhe contava histórias mirabolantes de extraterrestres, alienígenas, monstros e assombração. -" Entenda, Rogério. O mundo está em sua derrocada final. Há muitos terremotos e catástrofes!! O grande terremoto de Portugal foi um sinal. Houve escuridão, lua de sangue e mortes. Está lá no Apocalipse 6, versículo 12, da Bíblia. Ocorreu em Portugal como está na palavra!!! Cada vez mais temos terremotos com grande magnitude." O circo foi comprado por um empresário paulista, após a morte do mágico. Assim, Rogério veio pra capital paulista. O circo se juntaria a outro, já instalado no Brás. Rogério se matriculou num colégio. Ler e escrever era maravilhoso. Rogério conheceu outros profissionais de circo. Se apaixonou pela bailarina Ametista, uma bela morena de olhos castanhos. Seis meses. A moça engravidou e Rogério se desesperou. -" Vamos largar o circo. Criar nosso filho na capital, querida!! Vou procurar emprego e uma casa." A moça concordou com ele. Rogério e Ametista alugaram uma casinha. Rogério trabalhava como eletricista. Aprendera o ofício no circo, montando e desmontando as luzes e letreiros, tomadas e gambiarras. Herculano nasceu. Em vez do berço, Rogério comprou uma tevê. Passava noites em claro vendo filmes. -" Vivemos numa realidade aparente, somos controlados por uma matrix, uma inteligência artificial!!!" A mulher desligava o aparelho quando dava meia noite. As brigas começaram. Rogério comprava revistas sobre ufologia e ciências. -" Vários países têm bomba atômica!! O relógio do apocalipse marca meia noite." Repetia aos colegas de trabalho. Dorival, seu chefe o alertava. -" Rogério, não vai ficar louco!!! Tudo é teoria. Viva o presente!!!" Rogério estava cada vez mais obcecado. Nunca mais teve contato com sua família no agreste. -" O fim está próximo. Jesus está voltando! Ele virá por Órion, a única constelação vista do hemisfério sul e norte. De todo lugar o Senhor será visto!!! Órion é o caçador no céu, expulsando o dragão do mal!!!" Dizia o crédulo Rogério. -" O mapa da Europa parece um dragão, a América do norte uma águia! Será que só eu vejo isso!!?!" Cavou um buraco no quintal a fim de construir seu próprio bunker, um esconderijo a prova de bombas e catástrofes naturais. -" Ametista, sabia que tem uma rachadura na África?? É enorme. A terra vai ser rachada no meio." Rogério comprou um computador. Ficava horas estudando teorias de conspirações e vídeos sobre ufologia. -" Trump significa trombeta. A relação dele com Israel significa que o fim está próximo!!! O mundo está dividido em blocos econômicos e a besta está entre nós!!!" Gostava de saber tudo sobre religiões e culturas antigas. -" A maioria não vê isso. Clima desajustado, guerra, fome, doenças, alienígenas da área 51, caos político, violência, robôs dominantes e Nibiru." A mulher se virou. -"Vírus?! Nibi.... !?!?" Rogério abriu a revista superinteressante. -" Nibiru. Um planeta que vai se chocar com a terra, que é plana. É o planeta X. Será o fim de tudo!!!" A mulher se benzeu. Ametista acreditava em Rogério. -" Serão soltos os anjos caídos que o arcanjo Gabriel prendeu na Antártida, no gelo. É o Armageddon, que o pastor Ismael falou. Israel se restaurou. Por todo lado há sons de trombetas no céu!! Anjos são vistos. Há muitos falsos profetas!!! É um sinal. " A mulher se benzeu novamente. -" As torres gêmeas, setembro de 2001 foi um sinal. O vidente Chico previu uma lua de sangue em janeiro de 2019. Previu que no dia 19;de agosto, às três da tarde vai ser escuro como meia noite!!! Vai escurecer tudo!!!" Ametista estava com medo. Rogério falava sério. Compraram uma linda casa em Pirituba. Ele estava fazendo um curso de vigilante. Já sabia atirar. Tinha dezenas de revistas com técnicas militares. Ametista tinha curso de enfermagem. O filho de dez anos curtia filmes e séries de zumbis. Rogério ganhou um elemento novo. Passou a crer num apocalipse zumbi. Seres mortos vivos dominariam a terra. Rogério e Ametista praticavam tiro. Bunker é uma sala subterrânea contra armas nucleares, zumbis, caos, ataques biológicos e químicos, além de catástrofes naturais. -" Nos Estados Unidos e Europa tinham bunkers. Hitler morreu em um deles. No nosso bunker estaremos a salvo!!!" Disse o obstinado Rogério. A casa do cachorro e a churrasqueira deram lugar a uma cratera de nove metros. Rogério fez um curso de pedreiro e encanador. As paredes do local tinham espessura de dois blocos com muito concreto e isopor entre eles. -" Os cavaleiros do apocalipse já estão vindo!!! Fome, mortes e doenças." Rogério comprou câmeras com infravermelho, um gerador elétrico, metralhadora, fuzis, armário, camas, louças sanitárias e mesas. O local, um esconderijo subterrâneo, tinha oito metros quadrados. Um vaso grande escondia a entrada do bunker, uma tampa de ferro. Uma escada de ferro dava para o Interior do lugar. Porta anti explosão veio de navio da Alemanha. Rogério e Ametista gastaram muito dinheiro e anos na construção do esconderijo. O filho prometera guardar segredo. Rogério e Ametista compraram uniformes. O sobrenome da família bordado. Rogério comprou mapas do bairro. Cavou um túnel de setenta metros até a praça. -" Se os zumbis atacarem o bunker, sairemos na pracinha, na escotilha perto do coreto. Sairemos armados e com máscara de oxigênio!!! A pandemia levará a humanidade a buscar alimentos. Serão mortos vivos procurando sangue e comida!!" Disse Ametista, o braço direito de Rogério. Eles compraram toneladas de comida congelada e água mineral. Teriam comida pra suportar um ano no esconderijo. -" Louco não, cauteloso!!!!" Disse Rogério, antes de ficar uma semana inteira no esconderijo, como teste. Era uma casa subterrânea. Confortável. Tinha microondas, tevê, computador, sofá, cama, comida... tudo!!! Rogério e Ametista se abraçaram. Um projeto grande e magnífico. O mundo estava no fim e eles estariam salvos em sua residência subterrânea. Rogério e Ametista abandonaram seus empregos no dia que a grande massa de fumaça de queimadas da Amazônia tomou conta de São Paulo, Paraná e Minas. -" O Chico acertou. É o fim!!!" Repetia Rogério, indo para casa. O garoto não foi a escola. Ametista desmontou o computador. Ela levou documentos e aparelhos da família para o bunker. Rogério quebrou os celulares. Eles entraram no esconderijo. Um mês lá dentro. A casa vazia. Vizinhos preocupados. A polícia foi acionada. A família foi dada como desaparecida. Rogério e sua família estavam no bunker. -"Nostradamus disse que o fim está próximo!!! No bunker estaremos a salvo!!!" Disse Rogério. Uma chuva forte alagou a capital e fez o muro da casa desabar. A entrada do bunker foi coberta com escombros e muita terra da encosta. Dois meses depois. Rogério não conseguiu abrir a escotilha. -" Ametista, temos a saída de emergência!!! Vamos sair pois o ar foi interrompido. Não temos ar para filtrar. Nossos cilindros de ar devem durar por uns dias!!" Eles andaram pelo túnel. -" Não foi boa idéia quebrar nossos celulares e tablets, amor!!! Não temos como pedir socorro!!!" Disse a mulher. Rogério chegou na saída secreta. Abriu a portinhola. -" Cimento! Pedra!!! Asfaltaram a praça?!? Filhos da puta!! Nãoooo!!!!" Gritou o desesperado Rogério. Ametista abraçou o filho. O garoto chorava, compulsivamente. -" Vamos morrer, mamãe???" A mulher ficou sem reação. Calada. Olhar perdido. Eles voltaram a sala principal do bunker. Rogério tinha uma picareta. Ele tentou desimpedir a saída de emergência. Esforços em vão. Rogério estava exausto de tentar cavar. Dias depois, Ametista estava em transe, louca. Só falava em morte. A saída secreta, na pracinha, foi encoberta por asfalto, na reconstrução do lugar, pelo novo prefeito. Ametista pegou a metralhadora para matar o filho e o marido. A arma estava sem munição. A família de Rogério não teve como sair de lá!!! Ametista passou seus últimos dias deitada, delirando, esperando a morte certa. Rogério ficou assistindo DVDs de filmes com o filho, aguardando o fim. O fim deles e do ar nos cilindros. O fim do mundo para eles. O bunker foi, deles, o túmulo. FIM