O Antídoto da Morte (Final)

Sem poder me mover, ouvi os gritos da alma da minha mulher sendo violentada por aquele espírito que, embaixo da cama, esperou pacientemente ela se despir da carne para satisfazer aos seus anseios.

Alguns curiosos foram os primeiros a chegar e ficaram perplexos ao me verem com parte do corpo esmagado e ainda vivo. O desespero foi tanto que um deles, querendo dar fim ao meu sofrimento, jogou um pedaço de concreto em minha cabeça. Ele já ia repetir a ação quando os bombeiros entraram. Tentei falar, mas o sangue que se acumulava em minha garganta transformava as palavras em um som agonizante de morte.

Meus filhos foram avisados, estavam no colégio e logo regressaram. Foi minha filha, Aline, quem de forma instintiva teve a iniciativa de virar meu rosto para o lado. O sangue que borbulhava escorreu sinuoso pelos tijolos quebrados e, para espanto de todos, consegui gritar e pedir que tirassem meus filhos daquela cena tão bem arquitetada pelo demônio.

A coluna de concreto foi parcialmente içada com a ajuda de um macaco hidráulico e, consciente, menos da metade de mim foi levada para o hospital.

Meus filhos não me acompanharam. Os coitadinhos passaram mal quando perceberam que aquilo que um homem munido com uma enxada raspava da parede e amontoava dentro de um cocho inox eram os restos mortais da mãe deles.

Como os dias passavam e eu, lúcido, não morria, resolveram tentar...

Coração, um pulmão e parte do fígado não foram atingidos, o resto foi transplantado sem o mínimo de cuidado. Meu corpo, recheado como um pastel, foi costurado abaixo das costelas e, acreditem, não precisei usar medicamentos que impedissem a rejeição das tripas alheias e tudo mais que enfiaram dentro de mim.

Aprendi a andar com as mãos e meus braços se tornaram fortes e ágeis para carregar tão asqueroso busto. Foi difícil... No início, até ser transformada em um fino véu de algodão iluminado por uma aura colorida, parte da minha alma era como se fosse um pesado tapete confeccionado nos teares do inferno, cuja matéria prima era uma mistura de carne, sangue e ossos triturados. Por algum tempo, até que os vermes conseguissem limpar toda a sujeira daquele manto apodrecido, sofri com os efeitos da decomposição dos meus membros e órgãos amputados.

Meus filhos, ainda adolescentes, passaram a ter vergonha de mim. Não tiro a razão deles. Eu não deveria falar sobre isso, mas preciso contar para que outras pessoas não se deixem levar pelas forças do mal. Eu era obrigado a defecar e a urinar pela boca. Por mais que os médicos tentassem não conseguiram reverter essa situação. Tenho certeza de que quem estava por trás dessa terrível condição era o satanás.

Quando meus filhos ficaram ricos com a construção civil, resolvi acompanhar um circo que passou pela cidade. Tornei-me um palhacinho engraçado e pulava feito pulga em ritual de acasalamento. Alguns anos mais tarde, pedi para que o proprietário ligasse para o meu filho e falasse que eu havia morrido. Nunca mais quis saber notícias do Samuel e da Aline, e hoje, mais de cento e vinte anos depois, sei que já estão mortos e os invejo por isso.

O circo sempre vai existir, agora sou o palhaço mais antigo nesse grande palco que é o mundo. Olho para a plateia e não sei quais são os fantasmas que estão entre os vivos. Todos riem da mesma forma: todos riem de mim...

FIM

Luiz Cláudio Santos
Enviado por Luiz Cláudio Santos em 28/09/2019
Reeditado em 02/10/2019
Código do texto: T6756056
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