NÃO DEIXE PRA LER AMANHÃ....

Leonardo acordou com o toque do celular. Sinfonia de Mozart.

Amava música clássica. Espreguiçou. Bocejou. Braço esticado.

O travesseiro de penas de ganso caiu.

-"Helena!!?!?!?!!!"

A esposa já tinha acordado antes dele. Foi o que pensou.

Ela sempre ditava as regras para a empregada, antes de levar o filho Gabriel na escola e partir para a academia.

Era sempre assim.

Helena era professora. Leonardo foi ao banheiro. Tinha uma hora e meia pra chegar ao trabalho.

Há seis anos trabalhava num escritório de contabilidade na avenida Paulista. Ótimo salário.

Era o número três na hierarquia do escritório. Uma empresa multinacional. Seis horas diárias. Leonardo estava sendo cotado pra ser o novo gerente de vendas.

Promoção bem vinda. Seria o número dois, apenas abaixo de Valério. No meio do banho a água do chuveiro acabou.

Gritou palavrões. Esbravejou.

-" Acabou a água?!!! Maldito síndico incompetente!!! A gente paga caro e não tem água nessa zorra de condomínio?!?!?"

A toalha áspera arranhou seu rosto.

-" Mas será o Benedito!?!? Que é isso??? Nem nos meus tempos de pobreza tinha uma toalha fulera dessa!!!"

Abriu o guarda roupas.

-" Meu terno italiano!!! Hoje tem reunião com o grupo japonês!!!!"

Jogou algumas roupas sobre a cama. Decidiu vestir uma camisa pólo.

-" Cara!! Cadê meus ternos???? Evaporaram??? Não é possível que a songamonga da Helena tenha levado todos pra lavanderia?!!?!??"

Ele abriu a porta da sacada.

Estranhou o tempo nublado, escuro. Sem sol. Sem luz.

-" Estranho. A Majú não previu chuva, no Jornal Nacional!!!!"

A mesa estava vazia.

-" Eita, Zéfinha!!! Cadê o meu café????"

A empregada não respondeu.

Nem estava em casa.

-" Meu café com chantilly?? Meu queijinho da Serra da Canastra?? Minha geléia de uva e pão brioche?? Minha salada de frutas?? Vou perder hora!!!!"

A mesa estava sempre arrumada, impecavelmente linda, assim que ele acordava. Parecia a mesa de café da manhã da Ana Maria Braga!!

O bilhete da esposa não estava, como sempre, ao lado da xícara. Zéfinha estava sempre de pé, pronta a servir os patrões. Ele foi até a cozinha. Área de serviço. Os outros quartos.

Nem sinal da empregada.

-" Cadê esse povo?!?!"

Abriu a geladeira. Tomaria um copo de leite gelado!! Depois pediria um café e um pão na chapa pelo delivery!!

A geladeira estava vazia!!! Leonardo se desesperou!!!

-" Que significa isso?? Assaltaram a casa? Helena e Zéfinha fizeram despesa há três dias!!"

Bateu a porta da geladeira com raiva.

-"Helena e sua mania de dar donativos pras igrejas, pra esses padres folgados . Vive em reuniões de igreja com a desvairada da minha sogra. A burra deve ter doado toda a nossa comida!!! Filha da mãe!!!!

Deve ter dado folga para a Zéfinha!" Trancou a porta do apartamento e desceu as escadas.

A vaga na garagem. O carro estava lá. Ele sorriu.

-" Bom dia, meu querido!!!! Obrigado, Senhor!! Meu carro está aqui!"

O Mitsubishi Pajero Dakar, com sistema multimídia, GPS, CD, DVD, bluetooth, câmera de ré, espaço para sete passageiros, tração quatro WD, transmissão automática, motor flex e ar condicionado (ufa...) era seu xodó!!! O homem passava horas cuidando daquela máquina,

comprada com o dinheiro da herança de um tio da esposa.

A muito custo convenceu a esposa a dar aquele mimo para ele.

Olhou na lixeira do condomínio. Estava cheia de moscas. Estava fedendo muito.

-" Os imprestáveis lixeiros, vagabundos devem estar em greve!!!"

Entrou no carro.

O portão não obedeceu ao controle remoto. Nada de abrir. Desceu e abriu o cadeado.

Teve de abrir o portão manualmente. -" Zelador incompetente, porteiro incompetente!!!

É hoje!!! Eu devo ter jogado pedra na cruz!!! Que coisa!!!"

Saiu cantando pneus. Trânsito caótico. Som alto. A camisa com marca de suor. Pegou o celular.

A foto da esposa e do filho tinha sumido da tela principal. Discou o número da esposa.

-"Helena??!!! Amor?!?!?"

Uma voz.

-" Esse número de telefone não existe!!!"

Ele jogou o celular no banco do passageiro.

-" Ah, tá!! Eu não existo? Eu não existo!! Vai pra ponte que partiu!!!" Semáforo.

Um jovem se aproximou.

-" Bom dia!! Pode lavar o vidro?? Um real pra ajudar minha mãe doente!!!!" Leonardo fechou a janela e mostrou o dedo do meio.

-" Não!! Me deixa em paz! Nóia dos infernos!"

Abriu o sinal e ele pisou fundo.

Quinze minutos para o início do expediente. Estacionou na rua, numa vaga de cadeirante, como sempre fazia.

Entrou no prédio. Mal olhou para o porteiro.

O elevador demorando a chegar ao térreo. As pessoas.

O falatório. Um falando da derrota do Corinthians, outro falando do presidente, do saque do FGTS, da novela da Maria da Paz... odiava aquilo. O elevador lotado.

Enfim, o andar dos escritórios.

Oitavo andar. Sala 84. Ele entrou, sorrindo!!! Estendeu a mão para seu chefe. Valério era boa gente, parceiro de rodadas de chopp e pôquer.

Valério o cumprimentou.

-" Bom dia, Val. Hoje tem reunião importante!!!!"

Deu um tapinha no ombro do outro.

-" Bom dia. Você está despedido, Léo!!! Ordens de cima.

Sinto muito!!!"

Leonardo riu.

Era pegadinha do Mallandro???? Brincadeira sem graça.

-" Cinthia, ele está me tirando!! Não é verdade!"

A moça, gestante, estava dispersa com o notebook.

-"Seu nome não consta mais no quadro da empresa!! Senhor Leonardo!!!" Leonardo deixou o corpo cair numa cadeira.

Era um pesadelo.

Era um tsunami na sua vida. Pagava parcelas do financiamento do apartamento, a escola particular do filho de oito anos, a academia e aulas de dança da esposa.

O alto padrão de qualidade de vida da família dependia muito dele.

Se descabelou e chorou. Ajoelhou aos pés de Valério.

-" Por favor, amigo. Me ajuda!!!!" Valério se desvencilhou dele.

-" Não me chama de amigo. Adeus, cara!!! Temos colegas de trabalho, não amigos!!!!"

Leonardo mal podia crer que ouvira aquilo de Valério.

Um segurança o acompanhou, enquanto ele esvaziava seu armário. Saiu dali e foi para a casa de sua mãe, em Santo André. A casa estava vazia. Chamou a mãe várias vezes.

Ninguém saiu.

-" Estranho. A mãe está sempre em casa!!!"

Olhou o celular. Grupo de WhatsApp. Nenhuma mensagem de Helena. Facebook.

Nenhuma postagem. Nada novo. Decidiu encontrar a esposa e dar-lhe a péssima notícia de sua demissão. Academia de ginástica.

Jovens atléticos, música alta e aparelhos diversos.

-" Bom dia. Posso ajudar????"

Disse a recepcionista, gentil. Leonardo olhou e não viu a esposa.

Aquele agasalho Nike, laranja, era inconfundível. Helena o comprara em Miami.

-" Minha esposa, Helena. Quero falar com ela!!!! É pra ontem."

A moça sorriu.

-" Helena?? É nossa aluna?? Não temos aluna chamada Helena!!!"

Leonardo bateu as mãos no balcão. -" Tá brincando, idiota?!???!!

Helena é a primeira aluna dessa espelunca!!!"

A moça assustou e começou a chorar. O gerente veio ao balcão.

-" Que houve?? Bom dia, meu senhor!!!"

Leonardo estava possesso. Rosto vermelho. Tremia.

-" Minha esposa, Helena. Quero ver minha esposa. Ela treina aqui."

O gerente pegou a lista de alunos.

-"Veja, senhor. Não há nenhuma Helena na lista!!!!"

Leonardo pegou e rasgou a lista.

-" Estão me tirando!! Sacanagem!!! " Alguns alunos se aproximaram. Seguraram o rapaz raivoso.

-" Helena!!! Sou eu!!! Helena...esses imbecis a trancaram."

Gritava o esposo enfurecido. Leonardo foi colocado pra fora.

Levou socos e golpes na cabeça.

O lábio sangrando. Com custo entrou no carro. Dirigia sem rumo. Avenida movimentada.

Pisou fundo no acelerador, quase atropelando uma senhora.

Contramão. Um caminhão vinha de frente.

O carro de Leonardo bateu forte. O carro forte não o protegeu. Paramédicos, ambulância, polícia.... uma multidão de curiosos.

O fato ganhou os programas televisivos sensacionalistas. Leonardo morreu na hora.

Os médicos nem iniciaram as tentativas de reanimação. O jovem era mais um número nas estatísticas cruéis de acidentes de trânsito no Brasil.

-" Acorda, Leonardo!!! Você está vivo!!!"

Leonardo abriu os olhos. Sem noção de tempo e espaço. Tentou falar mas a voz não saiu. Estava num hospital?!?!!

Tudo estava branco. Luzes. A visão embaçada. As árvores, as pessoas, as casas eram diferentes. Ele estava se sentindo bem, sem dores!!!

Parecia uma outra realidade.

-" Você está vivo em outra dimensão!! Sou um anjo! O seu anjo da guarda, Léo.

Sua última oração a mim, se deu quando você tinha nove anos mas estou sempre do seu lado. Seu carro foi de encontro ao caminhão. Suicidas sofrem mais ao desencarnarem, ficam presos ao corpo que vai se deteriorando!"

Leonardo quis rir.

-" Que papo!!! Anjo da guarda? Vocês existem? Dimensão?! É Matrix, mundo de Nárnia?"

-" Você teve um dia difícil, meu amigo!!! Poderia ter sido diferente se você quisesse!!!!!"

Leonardo não entendia nada.

-" A realidade do alto permite, uma vez por ano, que alguém tenha no dia seguinte, apenas aquilo que agradeceu na noite anterior, antes de dormir!! O escolhido foi você, Leonardo!!!

Nem por sua vida você agradeceu!! Nem pelo ar nem pelo sol!!"

O anjo colocou a mão direita na testa do rapaz.

Ele começou a chorar, copiosamente. Lembrou que tinha agradecido pelo carro, apê e algo mais que não se lembrava.

Sua vida passou em segundos por sua mente, como um filme!!!

-" Não agradeceste pela vida, pela esposa, pelo alimento, pelo emprego, amigos, família e tanto bem que você recebe, todos os dias!!!"

O anjo abaixou a cabeça.

-" Devemos ser gratos, sempre! Pelo lixeiro que recolhe o lixo, o padeiro, a empregada que o serve, o porteiro, os amigos, os filhos, a vida...acordar já é um motivo para agradecer!!!

O passado não volta, o amanhã não chegou ainda!!

Nada de ansiedade e depressão. Viva o presente, o hoje, o agora!!!!"

Disse o anjo.

Leonardo sentiu saudades da mãe, da esposa e do filho. Pensou no emprego e no time de futebol.

Se pudesse voltar, daria valor a cada momento!

Seria mais grato. Seria uma pessoa melhor.

O anjo prosseguiu:

-" Caro amigo, somos seres espirituais num corpo material... não o contrário!!!!"

Leonardo olhou em volta e não viu mais o anjo da guarda. Estava sozinho. Começou a andar entre as nuvens. Ouviu uma música.

-" Irado. No céu tocam Mozart!!!!

De repente um rock pesado. Leonardo caiu num abismo escuro. Visualizou seu cadáver sendo devorado por vermes e sua alma perdida num labirinto.

Ele ficou horrorizado.

Sentiu muitas dores. Sentiu um beliscão no braço.

Era assim que Helena fazia ele parar de roncar.

Leonardo acordou assustado. Deu um salto na cama.

-" Morri. Eu morri, Helena."

A esposa ria.

-" Bebe muita cerveja, ronca alto e tem pesadelos, Léo!!!!"

Kauã se jogou no meio dos pais.

-" Helena?? Kauã?? Que bom que estão aqui."

O menino o abraçou.

-" Bom dia, roncador. Hoje é dia folga!!!

Prometeu soltar pipa comigo."

Leonardo abraçou o filho.

-" Obrigado, Senhor, por esse dia de folga.

Obrigado pela vida, por tudo de bom que nos dá.

Obrigado pela esposa maravilhosa e esse filho lindo!!

Obrigado, mil vezes, obrigado! Estou vivo!!! Vivo, graças a Deus!!" Leonardo foi tomar uma ducha. Ajoelhou e agradeceu pela água.

Viu, depois, a mesa do café da manhã cheia de coisas gostosas.

-" Zéfinha. Você merece um abraço. Obrigado por sua ajuda!!!

A tarde vou te levar pra conhecer minha mãe!!!"

Leonardo estava diferente. Parecia outra pessoa. Quis fazer uma oração antes do desjejum. Helena estranhou o fato.

Leonardo nem ligou quando o filho derrubou yogurte no banco do carro. Helena ficou brava com o menino.

-" Acontece, amor. Saí fácil com vinagre de maçã!!"

Ele deu folga para a empregada. Helena queimou o arroz do jantar. Leonardo e o filho riram da situação.

-" Está uma delícia mesmo assim!! Não queimou muito, só o fundo. Acontece!!! Quanta fome no mundo, não podemos desperdiçar comida. " Helena notou que o marido tinha mudado.

Ele, certa vez, tinha jogado o arroz salgado com panela e tudo no lixo mas agora nem xingara. Kauã dormiu no sofá, antes do fim do capítulo da série A casa de papel.

Pipoca derrubada no sofá. Ele levou o filho pra cama. Há tempos não empinava pipas. Helena foi ao banheiro.

Lavou o rosto para ver se estava acordada!! Leonardo era outro. Mais carinhoso e gentil. Nunca foi de falar, muito menos de abraçar a empregada e fazer perguntas da vida dela??

Helena foi até a cozinha. Pra surpresa dela, Leonardo estava de avental, lavando os copos.

-" Já desci o lixo, querida. Vai ganhar um presente!!!!"

Helena estava feliz. Ela adormeceu com a massagem relaxante que ele fez em seus pés. Há anos ele não fazia mais aquilo. Leonardo se ajoelhou e orou. Agradeceu por tudo que tinha.

Um lar, família e emprego. Orou pelos amigos, doentes, refugiados, crianças abandonadas, desempregados etc. Enquanto rezava, adormeceu.

No dia seguinte, tudo voltou ao normal. O controle remoto do portão funcionou normalmente.

Não tinha trânsito. Pensou que ter aquele carro era muito ostentação. Era o preço de dois carros populares usados e Helena precisava de um meio de transporte, já que teria que dar aulas em duas escolas.

Conversaria com ela sobre isso. Valério vivia dizendo que queria comprar aquele carro. Mensagem de Helena no celular.

Ele visualizou apenas. Olhou para a vaga de cadeirante. Deu a volta na quadra e colocou o carro num estacionamento. Entrou no escritório. Só agora notara que a mulher do cafezinho vivia sorrindo.

Mal sabia o nome dela. Um senhor nos seus sessenta anos era o faxineiro. Nunca tinha conversado com aquele senhor. O estagiário era cheio de tatuagem e falava gírias.

Leonardo gostava do jeito dele pois lembrava sua adolescência. Começou a reparar nas pessoas que passavam horas alí, no mesmo local, sem interação da parte dele!!!

Cinthia estava grávida de sete meses e não faltava. Leonardo olhou para ela com admiração. Queria ser amigo de todos. Valério deu um tapa em sua cabeça.

-" Bom dia. Aqui é trabalho, meu filho. Acorda!!!!"

Leonardo o abraçou.

-" Bom dia. Obrigado por sua amizade!!! Estou pensando em fazer um trabalho com meninos de sinais! Eu sei lá, ajudar um pouco!!!"

Valério deu uma gargalhada.

-" Puxa. Está lendo pensamentos??? Também tive a mesma idéia.

Podemos envolver o pessoal também!! Pode dar uma boa imagem da empresa para a mídia!!! Boa sacada, Léo!!!" Meses depois, surgiu uma vaga de copeira no escritório.

Leonardo indicou Zéfinha. Ela iria trabalhar menos tempo e ganhar mais. Zéfinha ficou receosa no início mas Helena e Leonardo a incentivaram muito para aceitar o cargo.

-" Queremos seu bem, Zéfinha. Agrademos seu carinho conosco e com Gabriel, nesses anos. Você merece ganhar mais!! Vamos sentir sua falta!!!"

Disse Helena, chorosa.

-" Minha sogra está muito só, naquela casa enorme!! Foi minha idéia a chamar pra morar conosco!! Ela ficará bem ocupada cuidando do Gabriel.

Ele adora a avó. Isso vai permitir a Helena se dedicar mais as aulas!!!" Acrescentou Leonardo.

Zéfinha entendeu.

-" Só tenho que agradecer. Virei de vez em quando pra ver o Gabriel!! Trabalhando de manhã, terei tempo de concluir o ensino médio!!!

Só tenho que agradecer a todos vocês!!!"

Todos se abraçaram.

Zéfinha logo se adaptou ao emprego. Valério se encantou pela moça e se declarou para Zéfinha.

Estava apaixonado. Valério e Zéfinha estavam namorando.

Leonardo passou a frequentar a igreja com a família. Passava horas lendo a bíblia. Desejava estudar teologia. Não tardou para ser convidado a ser catequista na comunidade.

Leonardo criou um grupo de teatro de fantoches na igreja.

-" Quando eu melhoro, o mundo ao meu redor se torna melhor!!!"

Repetia Leonardo a seus alunos. Seis meses depois, Leonardo e Helena foram padrinhos de casamento de Valério e Zéfinha.

Certo dia, Leonardo imprimiu uma frase.

Colocou o papel no quadro de avisos da empresa:

COMO SERIA, SE VOCÊ TIVESSE, NO DIA SEGUINTE,

APENAS O QUE TERIA AGRADECIDO

NA NOITE ANTERIOR?????

PENSE NISSO....

FIM.

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 21/09/2019
Reeditado em 13/11/2023
Código do texto: T6750526
Classificação de conteúdo: seguro