O ESCRITOR DA RUA 13 (Capítulo I)

I

Já era noite quando Salazar adentrou ao quintal da casa azul da Rua 13, uma hora depois do habitual. Sua esposa, Marília, já o esperava com a janta fresca. O cheiro de frango dominava o ambiente, chegando ao ponto de vazar pelas frestas da janela e atingir a calçada da casa trazendo até mais luz à cozinha, uma vã ilusão olfativa elaborada pelo hipotálamo desesperado dos famintos, provavelmente. A mesa redonda estava abastecida com as panelas inox, uma bela travessa de saladas variadas e o frango no centro, tudo muito organizado, o zelo era perceptível. Sazalar a beija na testa e deixa a pasta sobre uma das quatro cadeiras.

"Como foi hoje, Sal? Tudo bem no escritório?"

"No limite do possível, amor. Foi um dia bem cheio, mas nada fora do habitual". - Enquanto alimenta o prato com a segunda concha de feijão, prossegue - "Sabe, na verdade ando ficando cansado daquela mesmice..."

"Por que mesmice, Salazar? Aquele trabalho sempre foi um sonho para você..."

"Eu sei, eu sei. Mas não vejo mais brilho nisso, compreende? O brilho vem se perdendo com o novo gestor e suas ordens mirabolantes, vindas da cabeça criativa dele. Às vezes acho que estou perdendo meu dom por conta deste trabalho."

Silêncio na mesa da cozinha. O lustre alaranjado sobre a bandeja de frango assado já sentia a diminuição da temperatura do alimento em pelo menos três graus; só havia silêncio. Apenas os talheres berravam ao trombar com os pratos. Até o suco que descia pelas gargantas o fazia de form...

"Por que diz isso?" - Marília interrompe o narrador após uma garfada.

"Eu não sei... Só sei que isso está me bloqueando demais, eu posso perder tudo, menos meu dom. Pedi antecipação das férias para colocar minha cabeça de volta ao eixo, voltar a escrever, me dar momentos ociosos."

"Tudo vai dar certo, só precisa descansar, Salazar. Você sempre foi ótimo, domina há anos o que faz. É só uma fase."

"Espero que seja, quero me trancar no escritório até 'vomitar' algo decente."

Cerca de trinta e quatro minutos escorrem do jantar até o ralo do banheiro, onde Salazar toma seu banho. Marília, como sai para trabalhar antes dos primeiros raios de sol, já se entregou aos lençóis brancos com estampas florais, mimos de seu casamento, há cerca de cinco anos. Um belo kit composto por lençóis de qualidade, assim como edredons e fronhas com a mesma estampa. Coisa fina. Enquanto ela procura o sono e escuta as gotas d'água se esborrachando no piso gelado ao longe, reflete sobre as palavras de Salazar. Ele andava estranho. "Salazar chega tarde com frequência... Será que ele tem outra?" - os pensamentos vagavam pela mente, capitularizados por conta da luz lançada pelo abajur em sua face, uma ilha com olhos, boca, cabelos negros e nariz, perdida em meio a toda escuridão do quarto. "Seria apenas o trabalho? Salazar não é mais o mesmo".

(CONTINUA...)

Lâmpada de Porão
Enviado por Lâmpada de Porão em 17/09/2019
Reeditado em 17/09/2019
Código do texto: T6747188
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