INSOMNIA
Dezesseis metros quadrados de paredes azuis, madeira escura e arranhada sob os quatro pés da cama que fora me doada há alguns meses. À direita, um criado mudo antigo, um abajur desligado, cujo poder de iluminação aparenta ser maior do que é de fato; um copo de vidro com três quartos de água filtrada – um ritual diário antes de adormecer, dizem ser bom ao coração. Há tempos não sei o que é adormecer naturalmente. O coquetel medicamentoso é o grande responsável. Seria de fato, ou é só um bode expiatório para tudo isso?
Meu corpo insone está lançado à sorte na cama com lençóis brancos, em meio a penumbra, o suficiente para que segundos ou terceiros não desvendem meu sexo. Os olhos correm o teto; a única referência de iluminação é a luz da rua lançada sobre a bailarina de metal, suspensa sobre o soquete cinza da lâmpada; um rodopiar frio e brilhante se forma de um lado ao outro, como se debochasse do porquê de toda a existência.
Ela me fita, eu a fito. [1h30] O tiquetaquear do relógio da parede se entrelaça com os gritos da minha mente inquieta, no que poderia ser facilmente interpretado como uma sinfonia experimental e catártica ricocheteando entre as paredes de um sanatório do século XX. Bach invejaria. A madrugada vem e me furta a possibilidade de ter uma noite de sono [queria eu pelo menos uma noite intranquila dele].
Rolo na cama, ela está aqui. Um cubo de gelo desliza pela espinha.
Olhos fixos e arroxeados, sem expressão, dentro dos meus. IMÓVEIS. Veste branco para combinar com o tom pálido da pele, contrastando com o breu do cômodo, está deitada sobre a mão, do lado direito da cama de casal. Seguro o ar de espanto por um segundo, até compreender a situação. Tem por nome Adelaide, me visita quando se sente só. Me contara, há algumas semanas, ter sido esquartejada pelo seu noivo às vésperas de seu matrimônio. Eu a consolo com doçura, ela se vai como se nunca estivesse por ali.
Adelaide me assusta às vezes, mas me salva do penhasco da solidão absoluta.
Me esforço para dormir sem os remédios. Ainda não contei ao meu psiquiatra, quero fazer surpresa. O que ele poderia me dizer? “Olha, parece que estamos progredindo! Que grande avanço. Estou orgulhoso!”, ou ainda, “Incrivel! Me dê um abraço, se continuar assim você melhorará em breve!”. Ele ficará muito feliz! Será que ele me chamará para um almoço na folga de quinta?
[2h20] ESPERA, EU TÔ RINDO ALTO DEMAIS, eu estou tão feliz, isso tudo é tão real que consigo tocar.
Poxa, por alguns segundos até esqueço de tudo, mas aí fico em silêncio e o tic-toc me puxa à realidade feito um ralo de pia sugando o grão de arroz que sobrara no prato do almoço de ontem. A solidão retorna, me entrego a angústia e ao desespero que me assola. Lembranças do acidente começam a vir em looping na minha mente, é mais forte que eu a necessidade em colocar tudo para fora. De repente, um comichão começa a me tomar pelas mãos, escala meus braços até atingir meu tronco; me toma feito uma blusa de lã revestida de espinhos. Eu sangro. Me reviro de um lado ao outro, tento me livrar a todo custo da coceira sem fim que me domina, parecem milhões de formigas tentando me devorar antes que eu fuja, E SE FOREM FORMIGAS REALMENTE???
desespero me cega corro as pressas ao chuveir cravo minhas unhas sobre a pele que já está completame marcada em certos pontos já é visivel o sangue escorrendo esbarro no suporte de escovas de dentes todas caem no chão entro no box nem vejo a temperatura do chuveiro me meto lá dentro com roupa e tudo abro o registro e meu corpo pesado cai com um som seco no piso gelado e AAAAAAAAA.
Alívio.
Escorro com as mãos pelos azulejos, no que poderia ser uma obra [+18, gore e nudez] de Dalí.
Um misto de paz e ardor tomam meu corpo enquanto [4h30] a água gelada elimina uma a uma as delinquentes que o consumiam. Desembaraçam-se dos cabelos, escorrem pela minha face até alcançar meu pescoço. Usam meu tórax como se fosse rocha lisa de cachoeira, atingem meu sexo e de lá tomam rumo ao piso e [ao seu impiedoso fim de] ralo inox. O chão está repleto delas, UM AFOGAMENTO EM MASSA HAHAHAH. A vitória é minha!
Pego minha toalha vermelha, me enxugo enquanto tremo. Só agora me dei conta da temperatura do banho. No caminho de retorno até o quarto, arrumo a bagunça [5h00] que ficou pelo caminho; tapetes enrolados formando pequenas montanhas ocas de pano, escovas de dentes caidas pelo chão, bulas de remédio cair... REMÉDIO, preciso dormir!
Abro a gaveta do criado mudo, pego o Cloxazolam que já está perto do fim. Tomo o suficiente para não acordar no dia seguinte. Os três quartos de água descem pela garganta como um tsunami atingindo a praia seca e levando tudo o que há pela frente. Não sobra gente, nem edifício, sequer animal... não sobra emoção.
Deito, coloco o edredom com estampas de lavanda até a altura do queixo, quase num ato infantil. As pálpebras pesam tanto... quanto uma... bigorna de desenho animado... Já são 6hs... A noite absolutamente imersa... em trevas abre... espaço a claridade que começa... a brotar sorrateiramente, como papel e caneta na mais famosa obra de Orwell, como ideia que precisa ser extinta por ser óbvia... e incontestável...
...a bailarina e eu... [tic-toc, tic-toc, tic-toc]... Bailando entre a ansiedade e o abismo entre o sono e a sanid...
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