AS CRUZES DE DOM PEDRO I
Adazil era um sujeito reconhecidamente perverso. Desde criança ele apresentava essa característica. O termo bullying ainda não existia, mas ele já praticava esse comportamento com muita eficiência. Se fosse hoje ele seria um expert na prática de humilhar colegas na escola, desclassificar os companheiros no trabalho, rebaixá-las nos grupos, acabando com a autoestima delas. Bullying é um negócio que existe desde que o mundo é mundo e é praticado desde o dia em que se descobriu que umas pessoas são mais frágeis que outras e que o nosso ego se gratifica com a ideia de que podemos nos colocar em um patamar superior aos demais, rebaixando-os de alguma forma.
A mesma motivação que hoje informa o bullying, no passado fez nascer a escravidão e é responsável por todos os abusos que os mais fracos têm suportado dos mais fortes. O desejo de mostrar superioridade, de sobrepor-se aos nossos semelhantes, de servir-se do próximo para massagear o próprio ego, ou para facilitar nossa vida, ou ainda para obter prazer, como é o caso do abuso sexual, é algo que está nos “programas neurológicos” que informam a personalidade humana e só a custo de muita civilidade e desenvolvimento espiritual consegue ser mitigado.
Quanto ao Adazil, os meninos menos espertos e pouco valentes sofriam horrores nas mãos dele e dos garotos que ele liderava. Era uma turminha do capeta. Desde os primeiros anos de escola ele já se posicionara como o líder dos malvados. Quem mais sofria com as maldades dele eram os chamados garotos “engomadinhos”, “os filhinhos de papai”, os “quatro olhos”, meninos limpinhos, que usavam óculos e roupas bonitas. Geralmente eram garotos bem educados, que não conheciam os truques sujos que o Adazil e seus amigos aprendiam na rua.
Um desses truques era o chamado “Pau de Bosta”. Essa brincadeira nojenta consistia em simular uma briga, na qual um dos lutadores se recusava a brigar porque o outro tinha um pedaço de pau na mão. Então o brigão desarmado dizia para ele largar o pedaço de pau e brigar de mãos limpas, se “fosse homem”.
Em volta dos dois valentões sempre se ajuntava um bando de “torcedores”, que ficava estimulando a briga, ou simplesmente para ver no que dava. Então o brigão “armado” escolhia um dos garotos “limpinhos” e pedia para ele segurar o pedaço de pau para ele. E quando o bobão pegava o bastão, o sacana o puxava rapidamente deixando a mão do “engomadinho” toda suja de excremento.
Brigar na rua era uma das atividades preferidas do Adazil. Aos doze anos já havia saído na porrada com todos os garotos da rua e com um sem número de moleques de outros bairros. A conta dele era pelo menos uma briga por semana.
Aos quatorze anos ficou conhecido como matador de gatos. Caçava gatos para esfolar e tirar o couro. Vendia-os para a escola de samba do bairro, que fazia tamborins com a pele dos pobres bichanos. A carne ele comia e dizia que era muito saborosa. Virou moda entre os garotos da rua fazer churrasquinho de gato. Era comum, à noite, encontrar a rodinha da turma do Adail, em baixo da torre da Light, em volta de uma fogueira, assando uma “carninha” de gato. Quando a população de bichanos começou a diminuir no bairro os donos dos animais se deram conta do que estava acontecendo. Chamaram a polícia para tentar resolver o problema. O delegado convocou os pais do Adazil e exigiu que ele desse um jeito no moleque. O velho, que não tinha muita ascendência sobre o filho, mandou o garoto passar umas férias na casa da irmã, em São Paulo, até as coisas se acalmarem.
Aos quinze anos Adail foi preso pela primeira vez, juntamente com mais três outros moleques, por roubar o armazém de um japonês. Entraram no estabelecimento à noite, arrombando uma porta nos fundos do salão. Levaram algumas caixas de sardinhas em lata, umas latas de conservas e uma meia dúzia de garrafas de vinho. Foi tudo que conseguiram carregar. No dia seguinte começaram a vender a muamba para quem quisesse comprar.
Não deu outra. Em menos de três horas os três estavam na delegacia, enfrentando um colérico japonês, que mal sabia falar português, mas que dizia palavrões aos montes, os quais todo mundo entendia. Os pais pagaram o prejuízo, o japonês ficou satisfeito, o delegado passou um sabão nos garotos e tudo ficou por isso mesmo. Não havia FEBEM naqueles tempos e o juiz de menores não quis nem tomar conhecimento do caso.
Os pais do Adazil nunca aceitaram que seu filho fosse perverso e caminhava a passos largos para a bandidagem. Preferiam botar a culpa nos outros. Sempre diziam que eram os garotos do bairro que o levavam para o mau caminho. O filho deles era um santo.
Aos dezesseis anos foi preso novamente portando maconha. Fumar ele já fumava há algum tempo. Mas logo passou a traficar também. Felizmente, para ele, nessa ocasião a quantidade era pequena demais para caracterizar tráfico. Foi solto três horas depois, após o pai ter chorado as pitangas frente a um membro do Lions Clube local, que trabalhava como voluntário no centro correcional de menores da cidade.
Era assim que funcionavam as coisas naquele tempo. Menores apanhados em infração desse tipo eram levados para um centro correcional, onde membros de entidades filantrópicas faziam às vezes de psicólogos, assistentes sociais e agentes correcionais.
Geralmente tudo ficava só na bronca e na ameaça. Foi o que aconteceu com o Adail naquele caso. Um sujeito grandão, louro e com sotaque de polaco, primeiro quase bateu nele; depois ameaçou mandá-lo para um reformatório e por fim desmanchou-se em avisos e conselhos. Que ele estava acabando com a própria vida; que aquele era um caminho sem volta; que estava magoando seus pais etc, etc. Ele saiu de lá rindo e gozando com a cara do babaca que havia passado aquele sabão nele. Sabia que não existiam reformatórios no Brasil. E o resto que se danasse.
Aos dezessete anos foi parar de novo na cadeia, desta vez por ter cortado o rosto de outro garoto com uma garrafa de cerveja quebrada. Eles brigaram em um bar e o adversário não era muito bobo. Como ele viu que poderia perder, pegou uma garrafa de cerveja que estava em cima do balcão, quebrou-a pelo meio e atacou o desafeto com ela. A improvisada arma fez um baita estrago na cara do garoto, de modo que ele teve que levar uns doze pontos.
Como era menor de idade, não chegou nem a ser processado. Ficou numa cela da carceragem uns dois dias, depois foi liberado. A polícia esqueceu o caso, até porque não tinha para onde mandar o moleque. Os abrigos correcionais estavam lotados e a burocracia era um inferno. Era melhor soltar o delinqüente com repertório de ameaças e um pito nos pais.
Tinha acabado de fazer dezoito anos quando cometeu seu primeiro crime de morte. A vítima foi seu próprio cunhado. Diga-se, a bem da verdade, que o sujeito não era flor que se cheirasse. Era um sujeito beberrão, que costumava encher a cara com frequência e nessas ocasiões ficava muito violento. A principal vítima da sua violência era, naturalmente, a mulher, irmã do Adazil.
Com o as coisas andavam meio complicadas para ele na casa dos pais, ele foi passar uns dias com a irmã casada. Ela morava num bairro periférico de São Paulo, famoso pelo alto índice de criminalidade. Adail até gostava disso, pois já havia feito amizade com alguns caras e, portanto, quando ia para lá já sabia como se divertir. Pouco importava se o ambiente era perigoso, por que ele também era. E ele nunca andava desarmado. Quando saia, levava sempre uma garruchinha de dois tiros que ele havia comprado do dono de um ferro-velho ali nas proximidades, e em casa sempre tinha à mão um canivete de molas, de lâmina fina e bem afiada. Era um daqueles canivetes de que os jovens rebeldes do filme “Juventude Transviada” usavam. Esse filme era o favorito do Adazil.
Foi com esse canivete que ele matou o cunhado. O miserável estava batendo feio na irmã dele. A briga começar na cozinha, onde o cara, bastante bêbado, costumava inicia a seção habitual de espancamento. Ela correu para a sala, onde o Adazil estava assistindo televisão. Viu o rosto da irmã, todo machucado, sangrando, e aquela visão subiu-lhe instantaneamente à cabeça. O cunhado era um cara grandão, tinha pelo menos uns vinte quilos a mais de peso do que ele e era uns quinze centímetros mais alto. Não ia dar para encarar no braço. Mesmo bêbado o cara ia ser um páreo duro. Então puxou o canivete e começou a retalhar o infeliz.
Foram mais de vinte estocadas, bem fundas, no tórax e no peito do sujeito. A irmã gritava, chorava e se escabelava, vendo o sangue que esguichava dos ferimentos do marido. Pedia desesperadamente para ele parar, mas o Adazil parecia ter enlouquecido, ela diria mais tarde. Ele babava e feria, com uma ferocidade que nunca julgaria que alguém fosse capaz.
“Ele ficou que nem um porco”, dizia ele, mais tarde para os amigos, quando contava o feito, e se vangloriava. Todos os garotos da sua turma queriam saber como foi que aquilo acontecera, como ele se sentira ao ver o cara, no chão, se estrebuchando e vertendo sangue por todos os buracos do corpo. O caso saiu nos jornais da capital e até uma emissora de rádio dramatizou o acontecimento, transformando-o numa pequena enquete trágica. O Gil Gomes, principal repórter policial da época, deu grande destaque ao episódio. O Adazil se tornou uma celebridade no bairro. Contava com prazer e orgulho o seu feito e parecia estar realmente feliz com a subida notoriedade que alcançara. Parecia que até as meninas do bairro estavam olhando de modo diferente para ele. Era medo, mas ele queria pensar que era admiração.
Por ser primário, seu advogado conseguiu com que ele respondesse ao processo em liberdade. Não chegou nem a ir á júri. O advogado conseguiu convencer o juiz de que ele tinha agido em legítima defesa, dele e de outrem. Sua irmã foi a principal testemunha. Confirmou a tese da defesa e assim ele saiu ileso de mais essa.
A única coisa que parecia preocupá-lo em tudo aquilo era uma superstição que a mãe dele havia plantado na sua cabeça. Ela, que era dada a frequentar centros espíritas, havia dito a ele que quando se mata alguém, o espírito da pessoa morta costuma “encostar” no seu matador, até que ele consiga o perdão da vítima. E ele, embora dizendo que não acreditava nisso, não obstante, andava preocupado, pois desde algum tempo tinha a impressão de que nunca estava sozinho em lugar algum. Aonde quer que estivesse, mesmo no seu quarto, à noite, a impressão era sempre a de que havia alguém observando o que ele fazia. Sentia uma presença muda, indistinta, insensível, como de algo, ou alguém, que não se manifesta como presença física, mas que, no entanto, emite alguma forma de energia, que é captada pela parte mais sensível da nossa mente, aquela onde se alojam os arquétipos fundamentais que moldam nossos instintos mais primários. E daí vinha aqueles calafrios constantes que percorriam sua espinha, acompanhados de arrepios no alto do couro cabeludo e aqueles princípios de vertigem, como se alguém estivesse tentando se apossar de sua consciência.
Ao cabo de alguns meses carregando aquela impressão, ele começou a sentir-se incomodado a ponto de começar a abrir armários para ver se havia alguém dentro dele, a olhar debaixo da cama, a procurar atrás das portas e em outros locais para ver se havia alguém a observá-lo.
Chegou a um ponto em que não aguentou mais e resolveu ir a um dos centros espíritas que sua mãe costumava frequentar. Falou dos seus problemas e confessou o seu crime. Achava que estava ficando louco.
O médium que o atendeu lhe disse que o espírito das pessoas que morrem violentamente costuma ficar vagando na escuridão, e por não encontrar caminho para a luz, não consegue desencarnar definitivamente. Esse tipo de espírito desencarnado fica preso à matéria, mas como não tem corpo para se hospedar, sua única referência no mundo dos vivos é a pessoa que lhes tirou a vida. Por isso “encostam” nela.
“Essa é uma qualidade da mente humana” disse o médium. “Ela gera sentimentos. Sentimentos são energia em suspensão. O ódio, o amor, a compaixão, o apego, o ciúme, a raiva, a inveja, a culpa, são poderosas emissões energéticas que ligam as pessoas na vida e não se diluem depois de elas morrem. Permanecem no mundo físico gerando descargas energéticas até serem finalmente dissipadas, ou pelo tempo ou por outras ações da mente no sentido de neutralizá-la. “Descarregar essas energias negativas, deixadas pela mente das pessoas que morreram sem paz é o objetivo das orações, dos rituais,das oferendas e das seções que se fazem nos centros espíritas”, disse o médium.
Indagado sobre o que fazer para se livrar do tal encosto, o médium lhe indicou uma série de ações que deveria ser praticadas para aplacar o espírito do morto. Eram despachos embaixo de uma cachoeira, muita vela a ser acesa e muita reza a ser oferecida, além de outras oferendas que deveriam ser feitas na esquina da rua onde o morto morava, para que ele o perdoasse e acabasse, afinal, por entender que estava morto e tinha que libertar-se definitivamente do seu invólucro carnal para poder alçar-se ao mundo astral e encontrar o caminho para a luz.
Mas a principal oferenda que o Adazil devia fazer, segundo o seu orientador espiritual era o do seu próprio caráter de indivíduo perverso. Isso queria dizer que ele devia renunciar as suas ruindades e passar a viver como uma pessoa correta. Não devia brigar mais, nem machucar ninguém, nem judiar das pessoas mais fracas, ou mutilar animais, como ele costumava fazer. Devia também rezar muito e viver uma vida decente, de homem tranquilo, trabalhador e honesto.
Não é fácil mudar de caráter do dia para a noite. Tudo o que a gente faz continuadamente aprofunda as pistas neurais cavadas dentro da nossa mente, e os nossos pensamentos e ações acabam sendo sempre encaminhadas para esses “sulcos mentais” que o hábito faz em nossas neurologias. Nós os chamamos de vícios, mas o que eles são, na verdade, é um “caminho” constantemente percorrido pelo pensamento e pela ação, que uma vez “gravado” em nosso cérebro, passa a fazer parte do nosso comportamento, como algo necessário à nossa própria subsistência. E uma vez instalado em nosso sistema neurológico como um “programa de comportamento”, é muito difícil de ser abandonado. É como o hábito de fumar ou beber. Se você o adquiriu, tente se livrar dele pelo exercício da sua própria vontade e você saberá do que estou falando.
Mas não se pode dizer que o Adazil não tenha tentado. Arranjou um emprego numa fábrica e passou a frequentar o centro espírita. Participava das quermesses promovidas pela entidade e ajudava nas barracas. Arranjara até uma namorada, segundo dizia ele aos velhos amigos, quando estes o convidavam para sair para uma farra. “Não posso”, respondia ele. “Minha namorada não gosta que eu saia por aí fazendo farra.”
Todo mundo se admirou com a mudança sofrida pelo Adazil. Tornara-se um rapaz direito, pacato, tranquilo, que não provocava mais ninguém e só pensava em trabalhar, ir às sessões do centro espírita e namorar a sua Toninha.
Toninha era o nome da menina que ele dizia estar namorando. Conhecera a menina em uma das seções do centro espírita que frequentava. Era uma menina de cerca de uns dezoito anos, pálida e franzina, que dava a impressão que carregava dentro de si uma grande e mortal tristeza, que ela, por mais que ele insistisse, não contava de jeito nenhum o motivo. Eles só se encontravam nos dias de sessão do centro. Nunca nos fins de semana, nem durante os outros dias, eles conseguiam se encontrar, pois segundo ela, seus pais a matariam se soubessem que ela estava namorando.
Por isso ele nunca conseguiu também acompanhá-la até a porta da casa onde ela morava, pois, segundo ela, seria uma tragédia se alguém da sua família a visse andando com um rapaz de noite.
Adazil não estranhou, porque tinha gente que era assim mesmo. Afinal estavam numa cidade de interior, no começo dos anos sessenta. Muitas famílias ainda cultivavam essa noção rígida de moral, que fazia as garotas quase prisioneiras de um sistema, que era, como ele pensava, mais eficiente como modelador de comportamentos do que o próprio sistema penal que buscava redimir criminosos através da imposição de penas de prisão em cadeias e penitenciárias.
Toninha morava numa chácara, afastada cerca de um quilômetro de onde o núcleo urbano terminava. Era a chamada Chácara do Alemão e segundo ela dizia, seu pai era o caseiro da propriedade.
Fazia cerca de três meses que eles estavam namorando e o Adazil achou que era hora de conhecer a família dela. Afinal não fazia sentido aquele namoro às escondidas, como se estivessem praticando um crime. Disse que gostaria de falar com os pais dela para oficializar o namoro. Mas antes queria que ela confiasse nele e contasse os problemas que ela parecia ter com a família. Para ganhar a confiança dela confessou os crimes que havia cometido, as penas que estava pagando para afastar o encosto do espírito do cunhado, e instou com ela para lhe contasse a razão daquele eterno semblante de tristeza e desesperança que ele via no rosto dela.
“Eu me perdi por amor”, disse ela, depois de muita insistência.
Então, esse era o segredo dela, pensou. Ela havia se entregado a um rapaz, ele se aproveitara dela e depois a abandonara. Isso é o que significava, para uma moça naqueles tempos, “se perder”.
“Não era mais moça”, por isso aquela tristeza, aquela máscara de angústia e desesperança que ele julgava ver na face. Talvez achasse que nunca mais um rapaz honesto fosse se interessar por ela. Aqueles eram tempos e lugares onde essas coisas marcavam para sempre uma garota e as empurrava para o rol das perdidas.
“E o sujeito que a enganou, o que aconteceu com ele?”, perguntou Adazil.
“Quando soube que eu tinha ficado grávida, ele sumiu”, disse ela.
Essa não era uma coisa muito fácil de aceitar naqueles tempos e naquela cidade. Moça que não era mais “moça” perdia o valor no mercado das garotas candidatas a um bom casamento. O hímem intacto era um selo de garantia de honestidade e pureza que valia muito nesses tempos em que a proporção entre homens e mulheres era quase de dois por um para o lado masculino. Hoje a coisa se inverteu, mas no início dos anos sessenta éram os machos que tinham que lutar por uma fêmea e não elas que tinham dificuldade para encontrar um macho.
Adazil passou muitos dias pensando no caso. Então Toninha era uma daquelas meninas que havia perdido a virgindade e se tornara mãe solteira. Situação complicada. Entendia agora porque ela não queria ser vista com ele. Se a família não a abandonara, era porque, de certo haviam perdoado o deslize dela. E se perdoaram, tinham medo que ela se metesse em outra fria. Por isso o pavor dela de vista com outro rapaz.
Pensou bastante no caso. Sem dúvida era uma falta grave a dela. Mas parecia que pouca gente sabia do caso, porque nunca ouvira qualquer comentário sobre esse assunto, tanto no centro espírita que eles frequentavam, quanto de parte dos seus amigos. Também parecia que ninguém conhecia a Toninha.
Isso o tranquilizou. Talvez ninguém soubesse, mesmo, desse caso. Ponderou que ele também tinha muita culpa para pagar. Tinha sido um ladrão e um assassino. Quem sabe essa não fosse a redenção definitiva para o seu caso. Talvez redimindo a namorada ele pudesse afastar definitivamente o encosto do espírito do cunhado, que ele ainda sentia que estava por perto.
Afinal de contas ele amava de verdade aquela menina. Pensar em viver sem ela era algo que lhe parecia insuportável. Soube disso depois das duas semanas que passou sem vê-la. Parecia que a vida tinha perdido todo o sentido.
Durante três semanas ela não apareceu no centro espírita para a sessão da semana. Não suportando mais a ausência dela, no dia seguinte Adazil encheu-se de coragem e foi até a casa da Toninha, decidido a falar com os pais da menina. Não tinha importância o erro que ela tinha cometido. Nem que tivesse tido filho com outro cara. Ele o criaria como se fosse dele. Ele a amava. Por conta disso perdoaria tudo, assim como ela o havia aceitado, apesar dos crimes que cometera.
Queria casar-se com ela o mais rápido possível. Tinha certeza que seu pedido ia ser um alívio para a família da garota. Afinal, todo mundo sabia que moça que se perde desse jeito dificilmente encontra marido. Assim, ele contava como certo que os pais dela iriam concordar alegremente com tudo.
“ O Senhor deve estar louco, ou então está fazendo brincadeira de mau gosto”, disse o sisudo indivíduo que o atendeu na casa do caseiro da Chácara do Alemão.
“Como assim, senhor? Não é aqui que mora a Toninha? O senhor não é pai dela?”, perguntou Adazil.
“ Eu tenho duas filhas, mas são ambas casadas e nenhuma delas mora aqui nem se chama Toninha”, respondeu, com uma cara de poucos amigos, o caseiro.
“Mas ela disse que morava aqui”, insistiu Adazil. “É uma moça magrinha, bem franzina, tem um rosto bem branquinho, cabelos pretos, compridos.”
O caseiro franziu ainda mais o cenho. “Olha moço”, disse o caseiro, agora demonstrando uma incontida impaciência. “ Se o senhor quer saber, a única Toninha que se parece com essa moça que o senhor está descrevendo foi uma tia que eu tive. Ela morava aqui e era irmã do meu pai. Era uma vagabunda que se perdeu com um rapaz que ela namorava e ficou grávida. Morreu de parto, junto com a criança, há uns quarenta anos atrás. As duas cruzes que você vê na entrada da chácara foram postas lá por causa deles.”
O Adazil voltou a ser um cara malvado e sinistro. Perverso e perigoso ele já era. Mas depois disso tornou-se também um sujeito amargo e triste. Largou o trabalho e só podia ser visto à noite, rondando a Chácara do Alemão. Tomava todas, fumava um baseado, depois ficava sentado no barranco, em frente às duas cruzes.
Parecia uma alma penada. Nunca mais foi ao centro espírita. Certa vez, passados uns três meses depois daquele dia em que ele foi à chácara, o velho caseiro, ao sair pela manhã para buscar pão, encontrou Adazil deitado, de bruços, ao pé de uma das cruzes. A princípio não estranhou, pois já o havia visto outras vezes sentado no barranco, em frente das cruzes, como se fosse uma sentinela da morte montando guarda no túmulo da sua amada. Nunca estranhou, pois sabia que ele era um bêbado contumaz. E dessa vez também não, pois pensou que talvez o cara tivesse tomado todas e dormido.
Mas ao tentar acordá-lo verificou que ele tinha um canivete de molas esperado no coração. Estava morto.
Nunca se descobriu quem o matou ou se ele morreu pelas próprias mãos. Como ele tinha um histórico complicado a coisa ficou por conta de alguma briga e ninguém se preocupou em desvendar o mistério. A polícia da cidade logo arquivou o caso e é bem possível que tenha ficado satisfeita em se livrar de mais um problema. Nada mudou naquele bairro. Apenas as cruzes que eram duas passaram a ser três. E o local ficou conhecido como Três Cruzes.
Hoje, a Chácara do Alemão não existe mais. Foi vendida para uma imobiliária nos anos setenta e tornou-se um bairro elegante da cidade. Mas durante muitos anos as três cruzes que se via no local provocaram muitos comentários. Pouca gente sabia o verdadeiro motivo delas. Houve quem afirmasse que elas foram plantadas na época de Dom Pedro I, quando ele passou pela região em direção à então vila de São Paulo. No lugar, diziam, havia um rancho de tropeiros onde ele passara a noite com a sua comitiva. As cruzes foram postadas por conta da missa que foi rezada ali, em homenagem à Santíssima Trindade, de quem o Imperador era devoto. Outros diziam que as três cruzes eram o resultado de uma chacina que ocorrera no local no inicio do século. Três pessoas teriam sido mortas ali de emboscada.
O que maioria das pessoas concordava era que o local ficou realmente mal assombrado. E que quatro almas errantes costumavam ser vistas por ali. Duas eram de homens, uma era de mulher e a outra de uma criança de colo. Um dos homens gritava pedindo de volta a vida que lhe fora tirada; a mulher se lamentava pela sua inocência perdida; a criança chorava pela chance, que não teve, de viver, e o outro pedia preces, velas e perdão pelos pecados que havia cometido na vida.
Quem disse que viu e ouviu essas coisas jura que tudo é verdade. Mas a maioria das pessoas sempre achou que tudo não passa de lenda urbana. Na verdade, o local onde as três cruzes estavam fincadas era um lugar onde o vento soprava tão forte que parecia falar. Ainda hoje é assim. De noite parece que tem gente conversando na solidão das ruas desertas daquele bairro onde ficava a Chácara do Alemão. Deve ser isso que impressiona o espírito das pessoas que passam por aquele local.
Para terminar, vou dizer que quem conheceu o Adazil pode testemunharar que ele era, mesmo, muito, muito perverso. O centro espírita que ele frequentava ainda existe, e algumas pessoas que assistem as suas seções disseram-me que o espírito dele, às vezes, usa um dos “cavalos” da mesa para pedir reza, velas e despachos para ajudá-lo a se guiar no mundo da escuridão onde ainda hoje ele está vagando.
Adazil era um sujeito reconhecidamente perverso. Desde criança ele apresentava essa característica. O termo bullying ainda não existia, mas ele já praticava esse comportamento com muita eficiência. Se fosse hoje ele seria um expert na prática de humilhar colegas na escola, desclassificar os companheiros no trabalho, rebaixá-las nos grupos, acabando com a autoestima delas. Bullying é um negócio que existe desde que o mundo é mundo e é praticado desde o dia em que se descobriu que umas pessoas são mais frágeis que outras e que o nosso ego se gratifica com a ideia de que podemos nos colocar em um patamar superior aos demais, rebaixando-os de alguma forma.
A mesma motivação que hoje informa o bullying, no passado fez nascer a escravidão e é responsável por todos os abusos que os mais fracos têm suportado dos mais fortes. O desejo de mostrar superioridade, de sobrepor-se aos nossos semelhantes, de servir-se do próximo para massagear o próprio ego, ou para facilitar nossa vida, ou ainda para obter prazer, como é o caso do abuso sexual, é algo que está nos “programas neurológicos” que informam a personalidade humana e só a custo de muita civilidade e desenvolvimento espiritual consegue ser mitigado.
Quanto ao Adazil, os meninos menos espertos e pouco valentes sofriam horrores nas mãos dele e dos garotos que ele liderava. Era uma turminha do capeta. Desde os primeiros anos de escola ele já se posicionara como o líder dos malvados. Quem mais sofria com as maldades dele eram os chamados garotos “engomadinhos”, “os filhinhos de papai”, os “quatro olhos”, meninos limpinhos, que usavam óculos e roupas bonitas. Geralmente eram garotos bem educados, que não conheciam os truques sujos que o Adazil e seus amigos aprendiam na rua.
Um desses truques era o chamado “Pau de Bosta”. Essa brincadeira nojenta consistia em simular uma briga, na qual um dos lutadores se recusava a brigar porque o outro tinha um pedaço de pau na mão. Então o brigão desarmado dizia para ele largar o pedaço de pau e brigar de mãos limpas, se “fosse homem”.
Em volta dos dois valentões sempre se ajuntava um bando de “torcedores”, que ficava estimulando a briga, ou simplesmente para ver no que dava. Então o brigão “armado” escolhia um dos garotos “limpinhos” e pedia para ele segurar o pedaço de pau para ele. E quando o bobão pegava o bastão, o sacana o puxava rapidamente deixando a mão do “engomadinho” toda suja de excremento.
Brigar na rua era uma das atividades preferidas do Adazil. Aos doze anos já havia saído na porrada com todos os garotos da rua e com um sem número de moleques de outros bairros. A conta dele era pelo menos uma briga por semana.
Aos quatorze anos ficou conhecido como matador de gatos. Caçava gatos para esfolar e tirar o couro. Vendia-os para a escola de samba do bairro, que fazia tamborins com a pele dos pobres bichanos. A carne ele comia e dizia que era muito saborosa. Virou moda entre os garotos da rua fazer churrasquinho de gato. Era comum, à noite, encontrar a rodinha da turma do Adail, em baixo da torre da Light, em volta de uma fogueira, assando uma “carninha” de gato. Quando a população de bichanos começou a diminuir no bairro os donos dos animais se deram conta do que estava acontecendo. Chamaram a polícia para tentar resolver o problema. O delegado convocou os pais do Adazil e exigiu que ele desse um jeito no moleque. O velho, que não tinha muita ascendência sobre o filho, mandou o garoto passar umas férias na casa da irmã, em São Paulo, até as coisas se acalmarem.
Aos quinze anos Adail foi preso pela primeira vez, juntamente com mais três outros moleques, por roubar o armazém de um japonês. Entraram no estabelecimento à noite, arrombando uma porta nos fundos do salão. Levaram algumas caixas de sardinhas em lata, umas latas de conservas e uma meia dúzia de garrafas de vinho. Foi tudo que conseguiram carregar. No dia seguinte começaram a vender a muamba para quem quisesse comprar.
Não deu outra. Em menos de três horas os três estavam na delegacia, enfrentando um colérico japonês, que mal sabia falar português, mas que dizia palavrões aos montes, os quais todo mundo entendia. Os pais pagaram o prejuízo, o japonês ficou satisfeito, o delegado passou um sabão nos garotos e tudo ficou por isso mesmo. Não havia FEBEM naqueles tempos e o juiz de menores não quis nem tomar conhecimento do caso.
Os pais do Adazil nunca aceitaram que seu filho fosse perverso e caminhava a passos largos para a bandidagem. Preferiam botar a culpa nos outros. Sempre diziam que eram os garotos do bairro que o levavam para o mau caminho. O filho deles era um santo.
Aos dezesseis anos foi preso novamente portando maconha. Fumar ele já fumava há algum tempo. Mas logo passou a traficar também. Felizmente, para ele, nessa ocasião a quantidade era pequena demais para caracterizar tráfico. Foi solto três horas depois, após o pai ter chorado as pitangas frente a um membro do Lions Clube local, que trabalhava como voluntário no centro correcional de menores da cidade.
Era assim que funcionavam as coisas naquele tempo. Menores apanhados em infração desse tipo eram levados para um centro correcional, onde membros de entidades filantrópicas faziam às vezes de psicólogos, assistentes sociais e agentes correcionais.
Geralmente tudo ficava só na bronca e na ameaça. Foi o que aconteceu com o Adail naquele caso. Um sujeito grandão, louro e com sotaque de polaco, primeiro quase bateu nele; depois ameaçou mandá-lo para um reformatório e por fim desmanchou-se em avisos e conselhos. Que ele estava acabando com a própria vida; que aquele era um caminho sem volta; que estava magoando seus pais etc, etc. Ele saiu de lá rindo e gozando com a cara do babaca que havia passado aquele sabão nele. Sabia que não existiam reformatórios no Brasil. E o resto que se danasse.
Aos dezessete anos foi parar de novo na cadeia, desta vez por ter cortado o rosto de outro garoto com uma garrafa de cerveja quebrada. Eles brigaram em um bar e o adversário não era muito bobo. Como ele viu que poderia perder, pegou uma garrafa de cerveja que estava em cima do balcão, quebrou-a pelo meio e atacou o desafeto com ela. A improvisada arma fez um baita estrago na cara do garoto, de modo que ele teve que levar uns doze pontos.
Como era menor de idade, não chegou nem a ser processado. Ficou numa cela da carceragem uns dois dias, depois foi liberado. A polícia esqueceu o caso, até porque não tinha para onde mandar o moleque. Os abrigos correcionais estavam lotados e a burocracia era um inferno. Era melhor soltar o delinqüente com repertório de ameaças e um pito nos pais.
Tinha acabado de fazer dezoito anos quando cometeu seu primeiro crime de morte. A vítima foi seu próprio cunhado. Diga-se, a bem da verdade, que o sujeito não era flor que se cheirasse. Era um sujeito beberrão, que costumava encher a cara com frequência e nessas ocasiões ficava muito violento. A principal vítima da sua violência era, naturalmente, a mulher, irmã do Adazil.
Com o as coisas andavam meio complicadas para ele na casa dos pais, ele foi passar uns dias com a irmã casada. Ela morava num bairro periférico de São Paulo, famoso pelo alto índice de criminalidade. Adail até gostava disso, pois já havia feito amizade com alguns caras e, portanto, quando ia para lá já sabia como se divertir. Pouco importava se o ambiente era perigoso, por que ele também era. E ele nunca andava desarmado. Quando saia, levava sempre uma garruchinha de dois tiros que ele havia comprado do dono de um ferro-velho ali nas proximidades, e em casa sempre tinha à mão um canivete de molas, de lâmina fina e bem afiada. Era um daqueles canivetes de que os jovens rebeldes do filme “Juventude Transviada” usavam. Esse filme era o favorito do Adazil.
Foi com esse canivete que ele matou o cunhado. O miserável estava batendo feio na irmã dele. A briga começar na cozinha, onde o cara, bastante bêbado, costumava inicia a seção habitual de espancamento. Ela correu para a sala, onde o Adazil estava assistindo televisão. Viu o rosto da irmã, todo machucado, sangrando, e aquela visão subiu-lhe instantaneamente à cabeça. O cunhado era um cara grandão, tinha pelo menos uns vinte quilos a mais de peso do que ele e era uns quinze centímetros mais alto. Não ia dar para encarar no braço. Mesmo bêbado o cara ia ser um páreo duro. Então puxou o canivete e começou a retalhar o infeliz.
Foram mais de vinte estocadas, bem fundas, no tórax e no peito do sujeito. A irmã gritava, chorava e se escabelava, vendo o sangue que esguichava dos ferimentos do marido. Pedia desesperadamente para ele parar, mas o Adazil parecia ter enlouquecido, ela diria mais tarde. Ele babava e feria, com uma ferocidade que nunca julgaria que alguém fosse capaz.
“Ele ficou que nem um porco”, dizia ele, mais tarde para os amigos, quando contava o feito, e se vangloriava. Todos os garotos da sua turma queriam saber como foi que aquilo acontecera, como ele se sentira ao ver o cara, no chão, se estrebuchando e vertendo sangue por todos os buracos do corpo. O caso saiu nos jornais da capital e até uma emissora de rádio dramatizou o acontecimento, transformando-o numa pequena enquete trágica. O Gil Gomes, principal repórter policial da época, deu grande destaque ao episódio. O Adazil se tornou uma celebridade no bairro. Contava com prazer e orgulho o seu feito e parecia estar realmente feliz com a subida notoriedade que alcançara. Parecia que até as meninas do bairro estavam olhando de modo diferente para ele. Era medo, mas ele queria pensar que era admiração.
Por ser primário, seu advogado conseguiu com que ele respondesse ao processo em liberdade. Não chegou nem a ir á júri. O advogado conseguiu convencer o juiz de que ele tinha agido em legítima defesa, dele e de outrem. Sua irmã foi a principal testemunha. Confirmou a tese da defesa e assim ele saiu ileso de mais essa.
A única coisa que parecia preocupá-lo em tudo aquilo era uma superstição que a mãe dele havia plantado na sua cabeça. Ela, que era dada a frequentar centros espíritas, havia dito a ele que quando se mata alguém, o espírito da pessoa morta costuma “encostar” no seu matador, até que ele consiga o perdão da vítima. E ele, embora dizendo que não acreditava nisso, não obstante, andava preocupado, pois desde algum tempo tinha a impressão de que nunca estava sozinho em lugar algum. Aonde quer que estivesse, mesmo no seu quarto, à noite, a impressão era sempre a de que havia alguém observando o que ele fazia. Sentia uma presença muda, indistinta, insensível, como de algo, ou alguém, que não se manifesta como presença física, mas que, no entanto, emite alguma forma de energia, que é captada pela parte mais sensível da nossa mente, aquela onde se alojam os arquétipos fundamentais que moldam nossos instintos mais primários. E daí vinha aqueles calafrios constantes que percorriam sua espinha, acompanhados de arrepios no alto do couro cabeludo e aqueles princípios de vertigem, como se alguém estivesse tentando se apossar de sua consciência.
Ao cabo de alguns meses carregando aquela impressão, ele começou a sentir-se incomodado a ponto de começar a abrir armários para ver se havia alguém dentro dele, a olhar debaixo da cama, a procurar atrás das portas e em outros locais para ver se havia alguém a observá-lo.
Chegou a um ponto em que não aguentou mais e resolveu ir a um dos centros espíritas que sua mãe costumava frequentar. Falou dos seus problemas e confessou o seu crime. Achava que estava ficando louco.
O médium que o atendeu lhe disse que o espírito das pessoas que morrem violentamente costuma ficar vagando na escuridão, e por não encontrar caminho para a luz, não consegue desencarnar definitivamente. Esse tipo de espírito desencarnado fica preso à matéria, mas como não tem corpo para se hospedar, sua única referência no mundo dos vivos é a pessoa que lhes tirou a vida. Por isso “encostam” nela.
“Essa é uma qualidade da mente humana” disse o médium. “Ela gera sentimentos. Sentimentos são energia em suspensão. O ódio, o amor, a compaixão, o apego, o ciúme, a raiva, a inveja, a culpa, são poderosas emissões energéticas que ligam as pessoas na vida e não se diluem depois de elas morrem. Permanecem no mundo físico gerando descargas energéticas até serem finalmente dissipadas, ou pelo tempo ou por outras ações da mente no sentido de neutralizá-la. “Descarregar essas energias negativas, deixadas pela mente das pessoas que morreram sem paz é o objetivo das orações, dos rituais,das oferendas e das seções que se fazem nos centros espíritas”, disse o médium.
Indagado sobre o que fazer para se livrar do tal encosto, o médium lhe indicou uma série de ações que deveria ser praticadas para aplacar o espírito do morto. Eram despachos embaixo de uma cachoeira, muita vela a ser acesa e muita reza a ser oferecida, além de outras oferendas que deveriam ser feitas na esquina da rua onde o morto morava, para que ele o perdoasse e acabasse, afinal, por entender que estava morto e tinha que libertar-se definitivamente do seu invólucro carnal para poder alçar-se ao mundo astral e encontrar o caminho para a luz.
Mas a principal oferenda que o Adazil devia fazer, segundo o seu orientador espiritual era o do seu próprio caráter de indivíduo perverso. Isso queria dizer que ele devia renunciar as suas ruindades e passar a viver como uma pessoa correta. Não devia brigar mais, nem machucar ninguém, nem judiar das pessoas mais fracas, ou mutilar animais, como ele costumava fazer. Devia também rezar muito e viver uma vida decente, de homem tranquilo, trabalhador e honesto.
Não é fácil mudar de caráter do dia para a noite. Tudo o que a gente faz continuadamente aprofunda as pistas neurais cavadas dentro da nossa mente, e os nossos pensamentos e ações acabam sendo sempre encaminhadas para esses “sulcos mentais” que o hábito faz em nossas neurologias. Nós os chamamos de vícios, mas o que eles são, na verdade, é um “caminho” constantemente percorrido pelo pensamento e pela ação, que uma vez “gravado” em nosso cérebro, passa a fazer parte do nosso comportamento, como algo necessário à nossa própria subsistência. E uma vez instalado em nosso sistema neurológico como um “programa de comportamento”, é muito difícil de ser abandonado. É como o hábito de fumar ou beber. Se você o adquiriu, tente se livrar dele pelo exercício da sua própria vontade e você saberá do que estou falando.
Mas não se pode dizer que o Adazil não tenha tentado. Arranjou um emprego numa fábrica e passou a frequentar o centro espírita. Participava das quermesses promovidas pela entidade e ajudava nas barracas. Arranjara até uma namorada, segundo dizia ele aos velhos amigos, quando estes o convidavam para sair para uma farra. “Não posso”, respondia ele. “Minha namorada não gosta que eu saia por aí fazendo farra.”
Todo mundo se admirou com a mudança sofrida pelo Adazil. Tornara-se um rapaz direito, pacato, tranquilo, que não provocava mais ninguém e só pensava em trabalhar, ir às sessões do centro espírita e namorar a sua Toninha.
Toninha era o nome da menina que ele dizia estar namorando. Conhecera a menina em uma das seções do centro espírita que frequentava. Era uma menina de cerca de uns dezoito anos, pálida e franzina, que dava a impressão que carregava dentro de si uma grande e mortal tristeza, que ela, por mais que ele insistisse, não contava de jeito nenhum o motivo. Eles só se encontravam nos dias de sessão do centro. Nunca nos fins de semana, nem durante os outros dias, eles conseguiam se encontrar, pois segundo ela, seus pais a matariam se soubessem que ela estava namorando.
Por isso ele nunca conseguiu também acompanhá-la até a porta da casa onde ela morava, pois, segundo ela, seria uma tragédia se alguém da sua família a visse andando com um rapaz de noite.
Adazil não estranhou, porque tinha gente que era assim mesmo. Afinal estavam numa cidade de interior, no começo dos anos sessenta. Muitas famílias ainda cultivavam essa noção rígida de moral, que fazia as garotas quase prisioneiras de um sistema, que era, como ele pensava, mais eficiente como modelador de comportamentos do que o próprio sistema penal que buscava redimir criminosos através da imposição de penas de prisão em cadeias e penitenciárias.
Toninha morava numa chácara, afastada cerca de um quilômetro de onde o núcleo urbano terminava. Era a chamada Chácara do Alemão e segundo ela dizia, seu pai era o caseiro da propriedade.
Fazia cerca de três meses que eles estavam namorando e o Adazil achou que era hora de conhecer a família dela. Afinal não fazia sentido aquele namoro às escondidas, como se estivessem praticando um crime. Disse que gostaria de falar com os pais dela para oficializar o namoro. Mas antes queria que ela confiasse nele e contasse os problemas que ela parecia ter com a família. Para ganhar a confiança dela confessou os crimes que havia cometido, as penas que estava pagando para afastar o encosto do espírito do cunhado, e instou com ela para lhe contasse a razão daquele eterno semblante de tristeza e desesperança que ele via no rosto dela.
“Eu me perdi por amor”, disse ela, depois de muita insistência.
Então, esse era o segredo dela, pensou. Ela havia se entregado a um rapaz, ele se aproveitara dela e depois a abandonara. Isso é o que significava, para uma moça naqueles tempos, “se perder”.
“Não era mais moça”, por isso aquela tristeza, aquela máscara de angústia e desesperança que ele julgava ver na face. Talvez achasse que nunca mais um rapaz honesto fosse se interessar por ela. Aqueles eram tempos e lugares onde essas coisas marcavam para sempre uma garota e as empurrava para o rol das perdidas.
“E o sujeito que a enganou, o que aconteceu com ele?”, perguntou Adazil.
“Quando soube que eu tinha ficado grávida, ele sumiu”, disse ela.
Essa não era uma coisa muito fácil de aceitar naqueles tempos e naquela cidade. Moça que não era mais “moça” perdia o valor no mercado das garotas candidatas a um bom casamento. O hímem intacto era um selo de garantia de honestidade e pureza que valia muito nesses tempos em que a proporção entre homens e mulheres era quase de dois por um para o lado masculino. Hoje a coisa se inverteu, mas no início dos anos sessenta éram os machos que tinham que lutar por uma fêmea e não elas que tinham dificuldade para encontrar um macho.
Adazil passou muitos dias pensando no caso. Então Toninha era uma daquelas meninas que havia perdido a virgindade e se tornara mãe solteira. Situação complicada. Entendia agora porque ela não queria ser vista com ele. Se a família não a abandonara, era porque, de certo haviam perdoado o deslize dela. E se perdoaram, tinham medo que ela se metesse em outra fria. Por isso o pavor dela de vista com outro rapaz.
Pensou bastante no caso. Sem dúvida era uma falta grave a dela. Mas parecia que pouca gente sabia do caso, porque nunca ouvira qualquer comentário sobre esse assunto, tanto no centro espírita que eles frequentavam, quanto de parte dos seus amigos. Também parecia que ninguém conhecia a Toninha.
Isso o tranquilizou. Talvez ninguém soubesse, mesmo, desse caso. Ponderou que ele também tinha muita culpa para pagar. Tinha sido um ladrão e um assassino. Quem sabe essa não fosse a redenção definitiva para o seu caso. Talvez redimindo a namorada ele pudesse afastar definitivamente o encosto do espírito do cunhado, que ele ainda sentia que estava por perto.
Afinal de contas ele amava de verdade aquela menina. Pensar em viver sem ela era algo que lhe parecia insuportável. Soube disso depois das duas semanas que passou sem vê-la. Parecia que a vida tinha perdido todo o sentido.
Durante três semanas ela não apareceu no centro espírita para a sessão da semana. Não suportando mais a ausência dela, no dia seguinte Adazil encheu-se de coragem e foi até a casa da Toninha, decidido a falar com os pais da menina. Não tinha importância o erro que ela tinha cometido. Nem que tivesse tido filho com outro cara. Ele o criaria como se fosse dele. Ele a amava. Por conta disso perdoaria tudo, assim como ela o havia aceitado, apesar dos crimes que cometera.
Queria casar-se com ela o mais rápido possível. Tinha certeza que seu pedido ia ser um alívio para a família da garota. Afinal, todo mundo sabia que moça que se perde desse jeito dificilmente encontra marido. Assim, ele contava como certo que os pais dela iriam concordar alegremente com tudo.
“ O Senhor deve estar louco, ou então está fazendo brincadeira de mau gosto”, disse o sisudo indivíduo que o atendeu na casa do caseiro da Chácara do Alemão.
“Como assim, senhor? Não é aqui que mora a Toninha? O senhor não é pai dela?”, perguntou Adazil.
“ Eu tenho duas filhas, mas são ambas casadas e nenhuma delas mora aqui nem se chama Toninha”, respondeu, com uma cara de poucos amigos, o caseiro.
“Mas ela disse que morava aqui”, insistiu Adazil. “É uma moça magrinha, bem franzina, tem um rosto bem branquinho, cabelos pretos, compridos.”
O caseiro franziu ainda mais o cenho. “Olha moço”, disse o caseiro, agora demonstrando uma incontida impaciência. “ Se o senhor quer saber, a única Toninha que se parece com essa moça que o senhor está descrevendo foi uma tia que eu tive. Ela morava aqui e era irmã do meu pai. Era uma vagabunda que se perdeu com um rapaz que ela namorava e ficou grávida. Morreu de parto, junto com a criança, há uns quarenta anos atrás. As duas cruzes que você vê na entrada da chácara foram postas lá por causa deles.”
O Adazil voltou a ser um cara malvado e sinistro. Perverso e perigoso ele já era. Mas depois disso tornou-se também um sujeito amargo e triste. Largou o trabalho e só podia ser visto à noite, rondando a Chácara do Alemão. Tomava todas, fumava um baseado, depois ficava sentado no barranco, em frente às duas cruzes.
Parecia uma alma penada. Nunca mais foi ao centro espírita. Certa vez, passados uns três meses depois daquele dia em que ele foi à chácara, o velho caseiro, ao sair pela manhã para buscar pão, encontrou Adazil deitado, de bruços, ao pé de uma das cruzes. A princípio não estranhou, pois já o havia visto outras vezes sentado no barranco, em frente das cruzes, como se fosse uma sentinela da morte montando guarda no túmulo da sua amada. Nunca estranhou, pois sabia que ele era um bêbado contumaz. E dessa vez também não, pois pensou que talvez o cara tivesse tomado todas e dormido.
Mas ao tentar acordá-lo verificou que ele tinha um canivete de molas esperado no coração. Estava morto.
Nunca se descobriu quem o matou ou se ele morreu pelas próprias mãos. Como ele tinha um histórico complicado a coisa ficou por conta de alguma briga e ninguém se preocupou em desvendar o mistério. A polícia da cidade logo arquivou o caso e é bem possível que tenha ficado satisfeita em se livrar de mais um problema. Nada mudou naquele bairro. Apenas as cruzes que eram duas passaram a ser três. E o local ficou conhecido como Três Cruzes.
Hoje, a Chácara do Alemão não existe mais. Foi vendida para uma imobiliária nos anos setenta e tornou-se um bairro elegante da cidade. Mas durante muitos anos as três cruzes que se via no local provocaram muitos comentários. Pouca gente sabia o verdadeiro motivo delas. Houve quem afirmasse que elas foram plantadas na época de Dom Pedro I, quando ele passou pela região em direção à então vila de São Paulo. No lugar, diziam, havia um rancho de tropeiros onde ele passara a noite com a sua comitiva. As cruzes foram postadas por conta da missa que foi rezada ali, em homenagem à Santíssima Trindade, de quem o Imperador era devoto. Outros diziam que as três cruzes eram o resultado de uma chacina que ocorrera no local no inicio do século. Três pessoas teriam sido mortas ali de emboscada.
O que maioria das pessoas concordava era que o local ficou realmente mal assombrado. E que quatro almas errantes costumavam ser vistas por ali. Duas eram de homens, uma era de mulher e a outra de uma criança de colo. Um dos homens gritava pedindo de volta a vida que lhe fora tirada; a mulher se lamentava pela sua inocência perdida; a criança chorava pela chance, que não teve, de viver, e o outro pedia preces, velas e perdão pelos pecados que havia cometido na vida.
Quem disse que viu e ouviu essas coisas jura que tudo é verdade. Mas a maioria das pessoas sempre achou que tudo não passa de lenda urbana. Na verdade, o local onde as três cruzes estavam fincadas era um lugar onde o vento soprava tão forte que parecia falar. Ainda hoje é assim. De noite parece que tem gente conversando na solidão das ruas desertas daquele bairro onde ficava a Chácara do Alemão. Deve ser isso que impressiona o espírito das pessoas que passam por aquele local.
Para terminar, vou dizer que quem conheceu o Adazil pode testemunharar que ele era, mesmo, muito, muito perverso. O centro espírita que ele frequentava ainda existe, e algumas pessoas que assistem as suas seções disseram-me que o espírito dele, às vezes, usa um dos “cavalos” da mesa para pedir reza, velas e despachos para ajudá-lo a se guiar no mundo da escuridão onde ainda hoje ele está vagando.