ADOTADO POR UMA NOITE
Eu me lembro de tudo. Juro que não tive culpa do que aconteceu! Ele realmente se mexeu! Aqueles olhos! Aqueles olhos! Eu não matei ninguém! Foi uma armadilha infernal que o destino me reservou. E agora meu fim será nesse lugar! No entanto, mesmo que ninguém acredite e antes que eu me vá pra sempre, contarei a minha versão da história.
Quando vim ao mundo fui deixado numa espécie de orfanato que mais parecia uma prisão. As paredes decoradas com desenhos infantis alegres apenas disfarçavam a tristeza do local. À noite, porém, o dono costumava fazer algumas reuniões e sempre levava um de nós. Ele dizia que devíamos nos comportar se chegasse alguém interessado, porém, os detalhes e a forma com que ele nos dizia tais coisas, não mencionarei, pois eram muito peculiares.
A casa que o Sr. Euclides era dono, de vez em quando recebia a visita de casais para levarem um sortudo para um novo lar. Geralmente sempre levavam os mais novos e as mais novas, porém nunca perdi a esperança de que um dia eu encontraria uma família que me tirasse de lá.
Foi numa manhã nublada, quando vimos do vidro da janela um homem que aparentava uns quarenta anos, barbudo, de rosto triste e careca desceu do seu carro preto, entrou e se dirigiu ao Sr. Euclides:
“Quero ver todos.” Ele disse com voz firme.
O Sr. Euclides nos trouxe. Ele nos examinava cuidadosamente. Até que fixou seus olhos em mim. Fiquei calado num misto de temor e expectativa.
“Que lindo! Ele é perfeito!” o homem disse tocando meu rosto e sorrindo.
O Sr. Euclides logo concordou alegremente acenando com a cabeça. Minha euforia era tamanha, mas me contive diante dos meus amigos, que sabiam que era meu último dia ali.
Não pude prestar muita atenção, apenas vi quando o homem colocou um pequeno pedaço de papel no bolso que o Sr. Euclides lhe entregara:
“Finalmente!” ele disse após me buscar. “É a sua vez!”
O homem me tomou do Sr. Euclides com amável afeição e partimos de lá.
Eu, calado, apenas admirava a paisagem que eu nunca pudera ver. As árvores passando mais rápido, os carros na avenida, as pessoas passeando nos parques. Já o homem que me levava ao meu novo lar, sorria com triunfo enquanto dirigia.
A experiência da adoção é uma coisa repleta de sentimentos. Uma pitada de medo por causa da novidade, uma grande alegria por agora completar uma família e ser considerado normal outra vez são emoções que acompanham a todos os “esquecidos” um dia. E agora, chegara minha vez de ser útil e amado.
Descemos do carro no estacionamento de um condomínio. Entramos no elevador, ele apertou o numero sete. Após alguns segundos, a porta automática se abriu dando acesso a um pequeno corredor.
Ao entrar em seu apartamento, senti que estava na casa dos meus sonhos. Uma televisão fixada à parede, móveis planejados de cor bege, um tapete azul escuro cobrindo todo o chão, um sofá preto, um banheiro todo azulejado com a porta sanfonada aberta, dois quartos, uma cozinha, uma geladeira de inox, flores na estante que estava cheia de livros de várias cores e uma varanda que nos dava uma linda vista do lugar.
Ele me levou até um quarto que logo ao abrir dei de cara com um enorme pôster da Marvel na parede. Eram meus heróis preferidos. Vários brinquedos dentro de uma caixa e duas camas com cobertor de carrinho. Tudo isso eu via eufórico, porém tímido.
Saindo do quarto ele disse:
“Aguarde só um segundo que vou trazer seu coleguinha de quarto.”
Quando ele saiu fiz a festa aos pulos na cama:
“Que sorte a minha! Além de ter um pai, terei também um irmãozinho! Meus sonhos se tornaram realidade!”
Depois de mais ou menos uma hora ele voltou com algo no colo:
“Esse é seu novo irmãozinho!”
E em poucos instantes minhas expectativas de uma vida normal se foram.
Era um enorme boneco, da minha altura quase. Tinha um rosto redondo, muitas articulações, uma boca enorme e um olhar que mais parecia o de um cadáver. Ele estava com o rosto virado pra mim.
“Está perfeito! Os dois se darão muito bem!”
Tendo dito isso, saiu.
Com a porta fechada e a sós com aquela coisa recostada na parede da cama, não consegui sentir outra coisa que não fosse agonia.
“Mas o que é isso? Sou irmão de um boneco?!”
Fui até ele. Toquei em seus braços, mexi em suas pernas. Apertei sua barriga pra ver se fazia barulho. Nada. Decidi ignora-lo e fui até a sala.
Meu novo pai não estava. A casa estava vazia. Visitei alguns cômodos para conhecer meu novo lar e confesso que estava satisfeito com aquele lugar. Ouvi quando a porta do apartamento fez barulho, então voltei correndo para o quarto e fechei a porta.
Passei à tarde com o boneco em meu novo aposento. Sozinhos.
Ouvi alguma coisa se arrastando lentamente. Ao me virar, era o boneco que escorregara um pouco da sua posição e agora estava deitado com os olhos em minha direção.
Já anoitecendo meu pai adotivo foi até meu quarto e tirou o boneco de lá sem falar nada. Olhou para mim sorrindo e disse que já voltava.
Dei alguns passos silentes pra fora do quarto e fui até a sala. Vi que a porta do banheiro estava entreaberta. O homem estava dando banho no boneco.
Fui rapidamente até o dormitório dele. Encontrei uma cama de casal, um guarda roupa, uma escrivaninha com alguns papéis e duas fotos em preto e branco emolduradas.
Em uma delas ele estava com uma linda mulher. Em outra era apenas a foto de uma criança recém-nascida. Percebi que a porta do banheiro se abria e ele andava na direção do seu quarto. Não sei como, mas escondi-me atrás da porta. Vi quando ele colocou o boneco na cama e chamava-o de Bob.
Ele saíra para o banheiro como quem esquece alguma coisa. Nesse momento tomei cuidado e voltei para o meu quarto de modo ágil, porém silencioso. Mas quis deixar a porta entreaberta para ver o que acontecia.
Eu apenas observava e nada dizia, pois tudo aquilo me era estranho demais para mim, e como era meu primeiro dia de adotado, não queria causar a impressão de que eu era alguém questionador ou irritante.
Quase meia-noite ele veio e colocou o boneco deitado numa das camas.
Após apagar a luz, disse:
“Boa noite!”. E ouvi uma risada baixa dele enquanto fechava a porta.
Pulei da cama, acendi a luz e fiquei olhando para o boneco. Tinha uma expressão inocente e serena. Mas aqueles olhos em minha direção me incomodavam, então o virei para a parede, apaguei a luz, e voltei pra cama.
Um ruído me despertou no meio da noite. Quando olhei para o boneco, ele estava com o rosto virado pra mim.
“Quem virou essa porcaria?”
Levantei-me e coloquei-o com o rosto para a parede novamente.
Saí do quarto na ponta dos pés e fui até o banheiro lavar o rosto. Ouvi a porta se abrir. Era meu pai adotivo com uma maleta. Fiquei observando ele pela porta sanfonada.
Quando ele saiu do apartamento, uma intensa curiosidade me levou a vasculhar algumas coisas. Eu sabia que não devia, mas o silêncio daquele homem me perturbava mais do que os barulhos a noite no abrigo do Sr. Euclides, e a curiosidade tem mais força a noite, mesmo que as vezes de modo perturbador.
Abri seu guarda roupa e percebi que não havia nenhuma roupa de mulher, apenas utensílios masculinos.
Numa gaveta com mais papéis, tinha uma certidão de óbito. Era de sua esposa, onde constava a morte dela e de um menino no momento do parto. Porém nada eu encontrei sobre a criança da foto.
De repente um barulho abafado. Pensei que o homem já havia retornado, mas a porta continuava fechada. Saí apressadamente do dormitório dele e fui para o meu. Ao chegar, encontrei o boneco caído no chão do quarto com as mãos estendidas para a porta.
Estremeci ao pé da porta. Nenhuma lei da física poderia fazer o boneco cair tão longe. Estava sozinho com aquela cena diante de mim.
Minhas teorias sobre quem seria a criança na foto muito me abalaram e para esquecer aquilo tomei coragem e tomei o boneco em minhas mãos.
O boneco possuía um peso muito grande e não pude erguê-lo por muito tempo. Apenas usei minhas forças para coloca-lo de volta naquela cama virado para parede, porém coberto até a cabeça com o cobertor.
Fiquei alguns minutos olhando para ele e decidi apagar a luz e deitar-me novamente.
Por volta das duas da madrugada suponho, acordei de súbito com outro barulho. As noites estranhas no orfanato do Sr. Euclides me deram o mau hábito de dormir pouco. Ainda zonzo pelo sono quando olhei para a cama ao lado. O boneco estava sentado com os olhos em mim.
Saltei de minha cama. Eu podia jurar que coloquei o boneco deitado. Não sabia quanto tempo havia dormido ao certo, porém já não conseguia mais diferenciar o que era sonho do que era real.
Com raiva fui até o boneco, desferi alguns golpes nele, depois o joguei no chão e disse:
“VOCÊ É SÓ UM MALDITO BONECO DE MERDA!! POR QUE NÃO ME DEIXA DORMIR, CARAMBA!”
Nenhum movimento ele fez. Apenas seus olhos continuavam com expressão fantasmagórica.
Arrastei-o com dificuldade até o quarto do meu pai que aquele horário ainda não voltara sabe Deus de onde.
Antes de sair, fui olhar alguns papéis na escrivaninha. Era o orçamento de dois caixões. Porém a data estava extremamente recente. A mulher e o bebê tinham morrido a poucas semanas da visita ao abrigo do Sr. Euclides.
O último que eu vi era um laudo médico de uma criança que com quatro anos de idade contraiu uma grave doença. O nome da criança era Bernardo Onório Bezerra.
Antes que eu lesse o final do documento, fortes mãos me ergueram com violência pelo pescoço. Era ele. Era o boneco. Era BOB!
Seu olhar estava vítreo, porém firme. Sua boca estava fechada e um conjunto de dentes se mostraram cerrados naqueles lábios. Sua pele branca tornara-se menos clara.
O horror mais demoníaco da minha vida estava diante dos meus olhos. Eu me recusava a acreditar que aquilo era real.
Ele foi me levando para fora do quarto enquanto eu me debatia em vão de suas mãos. Abriu a porta da varanda e me aproximou da queda livre.
Possuído por uma estranha força cósmica consegui fazer uma manobra com meu corpo, erguer-me e afundar meus dedos em seus olhos com força, o que fez com que ele me soltasse e eu quase caísse. Pendurei-me numa grade pequena da varanda num impulso de sobrevivência agarrei em sua perna. Puxei-o rapidamente o que fez com que a grade se rompesse e ele escorregasse. Pude sair da beirada daquela queda, enquanto ele estava preso as grades.
A excitação e a vingança me dominaram. Fui até a cozinha, peguei uma faca e desferi-lhe vários golpes violentos. Cego pelo medo e coragem ao mesmo tempo, empurrei-o da grade e ele soltou-se de lá. Antes que caísse da varanda do sétimo andar, pude ouvir um grito diabólico e desesperador:
“AAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHH!!!”
E desfez-se no chão com o impacto.
Fechei a porta da varanda e tremendo fiquei esperando meu pai adotivo chegar. Acabei adormecendo no sofá exausto.
Horas depois ele chegou. Quando ele me viu gritou tomado de horror deixando uma maleta cair no chão.
Apontou para as minhas roupas, percebi que eu estava cheio de sangue.
Ele foi até o quarto e não encontrou o boneco. Foi até a varanda e viu sangue pelas grades e na beirada. Olhando abaixo, viu o boneco no chão enquanto alguns vira-latas lambiam o corpo.
Fui até ele e disse:
“Pai, por que você me deixou sozinho com esse boneco amaldiçoado? Você colocou o espírito da criança da foto nesse boneco? Quem é você? Por que você fez isso comigo?”
Ele se apavorou tanto que se jogou da janela. Tentei correr até ele para impedir, mas já era tarde.
No salto ele deixou cair um pequeno papel do seu bolso. Vi que era o mesmo papel que o Sr. Euclides lhe entregou antes de sairmos de lá.
Decidi vasculhar a maleta que ele deixou cair. Continha uma pequena carta, seringas e frascos de remédio.
Na carta estava escrito:
“Doutor,
Se receber esta carta, saiba que tomei uma atitude desesperada. Sempre quis ser pai e minha esposa também. Quando meu segundo filho faleceu no parto com ela, o Bob ficou muito sozinho. Ele, mesmo com essa doença horrível, as vezes reagia aos medicamentos, porém acordava muito agitado. O pai sente o mesmo que o filho. Então tomei uma decisão, e amanhã, após comprar os remédios que o senhor pediu na última consulta, lhe mostrarei a solução que tomei, para que quando o Bob olhar pra ele, acreditasse que era seu irmãozinho e a casa ao estaria tão sozinha. Já aviso de antemão que comprei uma cama igual a dele. Pode achar que fiquei louco, doutor, mas eu precisava dar um "irmãozinho" para o meu filho."
Após ler a carta, tremi como nunca na minha vida. Corri até a escrivaninha para ler qual foi a doença da criança:
CATALEPSIA.
Meu desespero aumentou. Comecei a lembrar das reuniões que o Sr. Euclides tinha conosco. Foi quando li o papel que meu pai adotivo recebera:
"VIA DO CLIENTE:
BONECO MASCULINO TAMANHO GRANDE
PREÇO R$ 250,00
DÉBITO AUTOMÁTICO
A LOJA DE BONECOS DO SENHOR EUCLIDES AGRADECE A PREFERÊNCIA!”