O Antídoto da Morte (Parte IX)

Não tinha espaço para armazenar o ar que meu corpo tanto ansiava. Eu já estava perdendo as forças quando a possante cauda se desprendeu. Aspirei com sofreguidão e a vida outra vez passou a fazer morada em meus pulmões.

A criatura se afastou e caminhou pesada até a saída da caverna. As asas, antes encolhidas, foram projetadas para o exterior. A cascata, à medida em que o monstro ia saindo, tinha o poder de desintegrá-lo. Pude ouvir as asas se debatendo lá fora, ou foi o barulho do vento? Não importa... Só sei que a última coisa que presenciei foi a poderosa cauda sendo arrastada por algo invisível e, pouco a pouco, desaparecer.

Josué acordou e, em sua pele bronzeada, não tinha uma gota sequer do sangue da tartaruga. Já a carcaça estraçalhada estava no mesmo lugar. Fadas e duendes consumiram apenas pedaços da alma, e eu, apavorado com seus dentes afiados, achei que tinham o poder de devorarem a carne, e até, vejam só, de triturarem os ossos.

O índio então se levantou e após alguns minutos olhando para a cascata, fazendo expressões, como se assistisse a um filme de horror, disse:

- O ritual foi realizado, tens impregnado em seu corpo, o antídoto da morte. Agora é chegada a hora de partir, viver o tempo estipulado pelo destino e depois suportar as consequências de ter a alma ligada a dois mundos.

Josué me levou até à beira do rio. Havia uma canoa atada a uma corrente. Ao pisar na embarcação lodosa, escorreguei feio, bati o joelho e ele riu da minha cara de dor. Enquanto remava falou que me levaria à aldeia de onde um guia me conduziria de volta à minha cidade.

Em meio a seu povo, Josué era chamado por um tradicional nome indígena. Lembrei-me da bíblia que vi na caverna. Talvez o jovem índio, por influência dos brancos, leu e se apaixonou pela história do ajudante de Moisés. Não quis entrar em detalhes, eu precisava partir e fazer uma infinidade de planos.

***

Fui efetivado na prefeitura, me casei e tive um casal de filhos. Minha mulher, que Deus a tenha, era filha única e, quando meu sogro morreu, herdamos uma pequena loja de material de construção. Meus filhos tomaram gosto pelo comércio e ao longo dos anos enriqueceram no ramo da construção civil.

Para quem não teme a morte, o tempo passa depressa demais e, quando dei por conta, estava comemorando o meu quadragésimo quarto aniversário, porém, enquanto soprava a velinha, lembrei-me das palavras do índio: " Posso ver o seu futuro refletido nas águas... Aos quarenta e quatro anos você sofrerá um acidente terrível. Mesmo mutilado, vai mesmo querer continuar vivendo?

Com aquilo martelando na minha cabeça, passei a sofrer da síndrome do pânico. Quase enlouqueci. Entretanto, depois de procurar auxílio médico, passei a acreditar que, se chegasse ileso aos quarenta e cinco anos, estaria salvo da maldita premonição.

Eu tinha de me sacrificar, afinal, o que é um ano para quem tem tanta vida pela frente?

Resolvi não sair mais de casa e permanecer o tempo todo dentro do quarto. Juro que todas as noites eu ouvia uma respiração ofegante embaixo da cama, mas tinha medo de ver o que era...

Minha mulher e meus filhos acreditavam que eu estava louco e sofriam com a minha doença. Pobre Laura, quantas vezes olhou embaixo da cama e, com um sorriso triste no rosto cansado, me dizia que não havia nada lá.

Foram exatamente trezentos e sessenta e dois dias de tormento, até que, em uma manhã ensolarada de setembro, o acidente aconteceu.

***

Laura vagava pelo quarto quando o caminhão invadiu o nosso lar. O barulho ensurdecedor fez com que ela levasse as mãos aos ouvidos e corresse para me ajudar. Não fui atingido pelo veículo, mas uma coluna de sustentação da laje caiu sobre mim. A cama se espatifou e o grosso colchão em que eu estava deitado não foi suficiente para amortecer toneladas de ferro e concreto. Senti o momento exato em que todos os ossos da pélvis foram reduzidos a pó.

Minha mulher pôs-se a gritar por ajuda. Suas pequenas mãos passavam por dentro de mim e nada conseguia agarrar. Foi então que percebi que já estava morta.

O caminhão desgovernado a colheu e esfregou o delicado corpo na parede, que se transformou em um dantesco painel de secreções humanas.

Laura só percebeu que era chegado o fim quando conseguiu ver a coisa medonha que se escondia embaixo da cama e, cuja respiração ofegante, tanto me assombrava...

Continua...

Luiz Cláudio Santos
Enviado por Luiz Cláudio Santos em 07/09/2019
Reeditado em 10/12/2019
Código do texto: T6739388
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