A casa dos tijolinhos vermelhos
Entrou para a pequena despensa e ficou ouvindo as vozes vindas do refeitório. Um ar frio, com um toque de frango frito, assoprava pelas frestas. Agitação concentrada. Olhou uma prateleira, outra, captou um som isolado, de fora. Vão me pegar? As marcas dos alimentos lhe falavam de um mundo a que só podia tocar indiretamente. A fome funda; só podia comer quando todas as freiras se retirassem.
Mas, os queijos... duros, vindos da caridade. Teria que disputá-los com os ratos pesados e espertos. Cortou com a faca o lado comido, descascou, limpou na saia do uniforme. Muito pretos, muito doces, olhinhos úmidos iam aparecendo no rosto magro, fazendo a boca doer e inundar-se. Ia enganando a fome.
Soou a campainha. As últimas conversas iam morrendo. O refeitório era seu. Voltou ao salão agora vazio e calmo. Podia ficar à vontade, sozinha. Era assim. O desejo de ficar só crescia cada vez mais e cada vez mais difícil se tornava o contato com as pessoas. Susi podia criar mundos e povoar de seres, criar companheiros indiferentes à santidade exigida naquela instituição. Com seres menores passava bem o tempo. Tudo lhe entrava pelos poros, as sombras, as luzes distantes, um som perdido. A menina se bastava.
Comeu as sobras das religiosas e, para sobremesa, a goiaba caída da mesa. Ia para a segunda mordida, quando viu a larva esbranquiçada que se remexia na podridão do miolo. Era uma companhia, imaginou uma conversa:
— Susi, volte a ser pequenina. Abra as janelas, as portas, deixe entrar o ar. — o parasita falaria para ela.
— Olá, bicho de goiaba! Você sabe de minha mãe? — acreditou nele e devolveu a conversa.
— Sou sua mãe! Sou eu quem estou neste corpinho... Quero dizer, é minha alma! — saber da mãe era sua preocupação constante. A mãe integrada a ela, no íntimo. Disseram que morrera no parto, que nunca saíra do orfanato. Não sabiam explicar a gravidez. Era o destino das duas. Nascer ali mesmo, nunca conhecer outro lugar. Espezinhadas, jogadas. Vinham buscar crianças para adoção: nunca a mãe; nunca ela?
Quase calor. Na sala dos chuveiros: A água tá boa, boa, boa / Estou à toa, toa, toa / Que coisa boa, boa, boa / Tomar banho / / Eu quero molhar, molhar / Eu quero esfregar / O meu corpo todo. Susi desligou-se da cantoria coletiva. Deixou-se ir ao barulho da água que caía, porejando passado. Ficou lá dentro enrodilhada, sem sair da água quente. Depois, deu um passo no box e se aproximou do vidro. Curiosa, procurou distinguir uma imagem que se desenhava, corrompida e difusa, misturada ao vapor. Ficou naquela posição por minutos e não aconteceu nada que pudesse lhe dar resposta. Varreu com os olhos os arredores: nenhuma outra menina a via? Fariam troça dela...
A imagem começou a se movimentar, até que tomou completamente uma estrutura. Teve um sobressalto. Era ela mesma que se desenhava ali, mais velha. Ou era a mãe? Só a conhecida da foto amarelecida do documento escolar. Ninguém nunca tinha dito que se pareciam, mas era evidente que era a mãe: a idade. Tinham o mesmo queixo forte e as mesmas maçãs altas no rosto, o mesmo arco nas sobrancelhas, que confundiam com uma expressão de indiferença.
Acenderam-se todas as conexões elétricas que alimentavam a garota. As células do corpo ganharam energia no diálogo entre aquele reflexo e sua consciência.
— Vim para alertar você. Não posso descansar! Não quero que você tenha o mesmo fim que eu. Faltava-lhe passar por mais essa dor — a silhueta espelhada repetia palavras que ela já ouvira em pesadelos noturnos. — Um incidente violento trará à tona tudo aquilo que ficou guardado — ainda ouviu, traumatizada.
— Mas quando? hoje? — Susi jogou água no rosto. Ergueu a cabeça e nada mais viu. Olhou no espelho, como se o seu reflexo pudesse explicar o que estava acontecendo. Seria essa forma que a mãe falaria com ela?
A mente girava até a tontura... esforçava-se por partir o tempo, ligando-o a espaços, situações. Ah! foi há um ano. No meio da pátio, um homem apertou-lhe a mão, afagou sua cabeça, como um pai. Com evoluções na sua frente, com gestos de descoberta, procurou agradar:
— Está quase uma mocinha! — sentiu-se catalogada, classificada. Não podia rir, não podia chorar.
Mais à tarde, no pátio, Susi criou coragem. Estava parada sob a sombra da Irmã Pilar. Todas as órfãs viviam à sombra dela: era uma figura imponente com olhos azuis, pele pálida como um papel e uma língua afiada sempre a postos para causar pequenos cortes doloridos em lugares inconvenientes. Evitou olhar a linha fina dos lábios reprovadores da freira, que analisava um livro na sua mão e foi desfiando os eventos que a atormentavam. Eram pedaços vagos e inconsistentes de informações que não se encaixavam no quebra-cabeças de mil peças que era o cérebro da orientadora de sua turma:
— Você está me dizendo que a alma de sua mãe está se materializando em larvas, espelhos, sonhos? Voltou para preveni-la de que corre riscos aqui? Uma assombração!!! Toma jeito, menina! Vai parar é num hospício! — Susi sabia que não fazia sentido tentar forçar mais a conversa. Ficou em posição, virando seu corpo em posição contrária à da religiosa, olhando direto para frente e se segurando para não sair correndo. — Hão de trazer-me os problemas de cada dia, compartilhar os acontecimentos. Cantem os parabéns, batam palmas, amarrem fitinhas, beijinhos na face, sorrisos e disfarces. Mas criar fantasmas!!!
Soou a campainha. As últimas conversas iam morrendo. O refeitório era seu. Voltou ao salão agora vazio e calmo. Podia ficar à vontade, sozinha. Era assim. O desejo de ficar só crescia cada vez mais e cada vez mais difícil se tornava o contato com as pessoas. Susi podia criar mundos e povoar de seres, criar companheiros indiferentes à santidade exigida naquela instituição. Com seres menores passava bem o tempo. Tudo lhe entrava pelos poros, as sombras, as luzes distantes, um som perdido. A menina se bastava.
Comeu as sobras das religiosas e, para sobremesa, a goiaba caída da mesa. Ia para a segunda mordida, quando viu a larva esbranquiçada que se remexia na podridão do miolo. Era uma companhia, imaginou uma conversa:
— Susi, volte a ser pequenina. Abra as janelas, as portas, deixe entrar o ar. — o parasita falaria para ela.
— Olá, bicho de goiaba! Você sabe de minha mãe? — acreditou nele e devolveu a conversa.
— Sou sua mãe! Sou eu quem estou neste corpinho... Quero dizer, é minha alma! — saber da mãe era sua preocupação constante. A mãe integrada a ela, no íntimo. Disseram que morrera no parto, que nunca saíra do orfanato. Não sabiam explicar a gravidez. Era o destino das duas. Nascer ali mesmo, nunca conhecer outro lugar. Espezinhadas, jogadas. Vinham buscar crianças para adoção: nunca a mãe; nunca ela?
Quase calor. Na sala dos chuveiros: A água tá boa, boa, boa / Estou à toa, toa, toa / Que coisa boa, boa, boa / Tomar banho / / Eu quero molhar, molhar / Eu quero esfregar / O meu corpo todo. Susi desligou-se da cantoria coletiva. Deixou-se ir ao barulho da água que caía, porejando passado. Ficou lá dentro enrodilhada, sem sair da água quente. Depois, deu um passo no box e se aproximou do vidro. Curiosa, procurou distinguir uma imagem que se desenhava, corrompida e difusa, misturada ao vapor. Ficou naquela posição por minutos e não aconteceu nada que pudesse lhe dar resposta. Varreu com os olhos os arredores: nenhuma outra menina a via? Fariam troça dela...
A imagem começou a se movimentar, até que tomou completamente uma estrutura. Teve um sobressalto. Era ela mesma que se desenhava ali, mais velha. Ou era a mãe? Só a conhecida da foto amarelecida do documento escolar. Ninguém nunca tinha dito que se pareciam, mas era evidente que era a mãe: a idade. Tinham o mesmo queixo forte e as mesmas maçãs altas no rosto, o mesmo arco nas sobrancelhas, que confundiam com uma expressão de indiferença.
Acenderam-se todas as conexões elétricas que alimentavam a garota. As células do corpo ganharam energia no diálogo entre aquele reflexo e sua consciência.
— Vim para alertar você. Não posso descansar! Não quero que você tenha o mesmo fim que eu. Faltava-lhe passar por mais essa dor — a silhueta espelhada repetia palavras que ela já ouvira em pesadelos noturnos. — Um incidente violento trará à tona tudo aquilo que ficou guardado — ainda ouviu, traumatizada.
— Mas quando? hoje? — Susi jogou água no rosto. Ergueu a cabeça e nada mais viu. Olhou no espelho, como se o seu reflexo pudesse explicar o que estava acontecendo. Seria essa forma que a mãe falaria com ela?
A mente girava até a tontura... esforçava-se por partir o tempo, ligando-o a espaços, situações. Ah! foi há um ano. No meio da pátio, um homem apertou-lhe a mão, afagou sua cabeça, como um pai. Com evoluções na sua frente, com gestos de descoberta, procurou agradar:
— Está quase uma mocinha! — sentiu-se catalogada, classificada. Não podia rir, não podia chorar.
Mais à tarde, no pátio, Susi criou coragem. Estava parada sob a sombra da Irmã Pilar. Todas as órfãs viviam à sombra dela: era uma figura imponente com olhos azuis, pele pálida como um papel e uma língua afiada sempre a postos para causar pequenos cortes doloridos em lugares inconvenientes. Evitou olhar a linha fina dos lábios reprovadores da freira, que analisava um livro na sua mão e foi desfiando os eventos que a atormentavam. Eram pedaços vagos e inconsistentes de informações que não se encaixavam no quebra-cabeças de mil peças que era o cérebro da orientadora de sua turma:
— Você está me dizendo que a alma de sua mãe está se materializando em larvas, espelhos, sonhos? Voltou para preveni-la de que corre riscos aqui? Uma assombração!!! Toma jeito, menina! Vai parar é num hospício! — Susi sabia que não fazia sentido tentar forçar mais a conversa. Ficou em posição, virando seu corpo em posição contrária à da religiosa, olhando direto para frente e se segurando para não sair correndo. — Hão de trazer-me os problemas de cada dia, compartilhar os acontecimentos. Cantem os parabéns, batam palmas, amarrem fitinhas, beijinhos na face, sorrisos e disfarces. Mas criar fantasmas!!!
Oito meses tinham se passado. Um balanço do tempo: escola, tarefas, pouca comida, limpeza, bichos, o diário e as visões que continuavam insistentes. Não queria ficar escondida, remoendo suposições, tremendo de susto. Não estou com medo, convenceu-se. Não estou. Não havia respostas, mas as dúvidas a açoitavam petulantemente. Algo precisava ser feito. Por que a Madre Superiora quer falar comigo? O quê? Susi respirou profundamente, deixou a sala de estudos e se dirigiu para o jardim.
— Querida, já que aqui estamos, separadas das outras... É importante que você se sinta como uma de nós. Você tem mais um ano conosco — estavam num recanto distante, próximas da grade que limitava todo o espaço da instituição; um pedaço de terra barrento ciscado. — Veja! — a velha indicou uma direção.
Ambas olharam para a casa centenária que habitavam. Estava se desmanchando, era um monumento desregrado, de época anterior à dos arquitetos diplomados e das licenças para construção. O sol poente não suavizava os ângulos bizarros. Nada muito além de uma camada obrigatória de tinta branca fora aplicada ao longo dos anos. A porta da frente desbotou para um tom cinza de madeira gasta. O telhado tinha envergado em um ponto.
— Uma reforma requer muito dinheiro. Precisamos que nos ajude para ajudarmos outras meninas sem um lar.
— Como posso? — olhou de novo para a casa de tijolinhos vermelhos.
— Quase nada, docinho. Virão buscar você para uma festa, no final de semana. Vai ganhar umas roupas elegantes, lindas! É só fazer tudo o que lhe pedirem.
— Foi assim com... minha mãe foi a esses encontros? Sou o resultado disto? — Contraiu-se. Não acreditou no que conseguia dizer.
— As únicas pessoas que sabem o que aconteceu com aquela garota são ela mesma, seja lá quem a engravidou e o bom Deus lá no céu. Não presumo que eu seja qualquer uma dessas pessoas e sou da opinião de que você não deveria presumir isso também. É fato comprovado — a freira olhou para o teto. Pareceu abalada com a pergunta que invocara uma imagem antiga que ela não queria ter.
— Devo ser obra do divino espírito santo... — Susi odiava quando usavam o tom de voz de juiz apresentando sentença final e odiava mais quando julgavam a mãe como uma louca irresponsável. Mesmo sem nunca a ter conhecido.
— Modos! Está sempre contrariada? Nós amamos você.
— Não quero esse amor. Não quero nada — a despeito de si mesma, Susi sacudiu a cabeça. Amavam-na como um banqueiro ama o dinheiro.
— Temos passado por um período difícil, minha garota. Não vou mentir e dizer que vai melhorar. Preciso saber que podemos contar com você. Não seja ingrata, só estou dizendo que você precisa ser uma pessoa útil. Acho que já passou daquela fase boba e dramática da adolescência — a madre colocou as mãos calosas nas bochechas da menina e deu a conversa por encerrada. Virou em direção à porta aberta, a testa franzida.
— Eu não sou... — Susi sentiu a garganta fechar. Os dentes começaram a ranger. Não vou a lugar nenhum. Não vão se aproveitar de mim tão fácil. Finalmente tinha ligado os pontos. Entendeu que estava andando para a morte. Talvez eu possa sair e ir para outro lugar.
∞
Sem pensar, Susi esticou a mão até a pia e pegou o martelinho. Segurou-o atrás das costas enquanto andou pelo longo corredor, repassando mentalmente os pontos mais importantes, buscando uma rota de fuga. Todas as luzes estavam apagadas. O céu também tinha escurecido do lado de fora. Caminhava lentamente, tentando fazer o mínimo de barulho possível, com medo que a impedissem.
Imaginou seus chinelos ao lado dos outros na soleira do dormitório, o bastão de bete abandonado em algum lugar do pátio. A mesa da cozinha posta com os pratos lascados, garfos e facas enferrujados.
Ouviu uma tosse, profunda, talvez de uma das irmãs. Talvez da Superiora, porque ela tossia daquela forma ultimamente, como se a fumaça de um incêndio, de algum jeito, tivesse encontrado o caminho até seus pulmões. Outra tosse.
Os pelos da nuca de Susi se arrepiaram em alerta. A porta dos fundos era do lado oposto do corredor, um halo de luz fraca cingia o vidro embaçado. Olhou para trás enquanto continuava pelo corredor. Podia ver a maçaneta. Podia se imaginar girando-a mesmo enquanto se distanciava ainda mais. A cada passo que deu, ela se perguntou se estava sendo tola, se deveria se preocupar. O ar tinha engrossado como algodão, fechando sua garganta.
— Está fugindo? Você acha que é esperta, que pode escapar? — o tom era frio, mais parecido com um alerta. Olhava a garota furiosamente, mas sorria com doçura.
— Deixe-me em paz, Madre. — Susi ficou chocada com a própria ousadia. Estava apavorada, mas cada grama de terror era manchada por raiva.
— Você vai ficar bem. Tudo vai ficar bem. Sua mãe nos ajudou muito. Isso é ruim? Foi a muitas festas, trouxe dinheiro... Mas burra, apaixonou-se pelo homem errado — olhava com malícia para a garota e falava rispidamente.
— Quem é ele? — uma fúria avassaladora a dominava. Perguntou por perguntar, Não interessava. A mãe foi vítima de todos... E avançou sobre a velha com o martelinho erguido ameaçadoramente. Visualizava-o entrando no cérebro dela.
— Eu sei quem é seu maldito e pervertido pai — a freira repetiu com um riso breve, abafado. Esperava deter a menina. Susi estremeceu, a raiva contorcia suas feições. Suas mãos apertaram o martelo com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. Nunca na sua vida conhecera alguém tão cruel, tão profundamente desalmado.
— Não é justo — disse com raiva.
O espanto vinha como punhal pelo coração da Superiora, que aproveitou esse segundo de desorientação para a empurrar com força. Susi foi lançada de costas, com tanta força que uma cadeira caiu e a cabeça dela fez um barulho contra a parede. A religiosa agarrou-lhe o rosto, os dedos segurando o crânio como uma bola, pressionando os olhos da menina como agulhas quentes.
Susi abriu a boca, mas não tinha fôlego para formar um grito. A dor se espalhou pelo seu rosto, quando as unhas fincaram em suas pálpebras. Podia sentir os seus globos oculares afundarem para dentro do cérebro. Sangue escorria pelas bochechas. O martelo caiu-lhe das mãos. A Superiora, num ímpeto o tomou. E, com ele, golpeou-a repetidas vezes.
— Pare! — gritou Irmã Pilar. — Pare! — O que é isso? — A agressão parou de forma tão repentina quanto começou. Olharam uma para a outra, ambas claramente confusas. Era tarde.
— Um acidente! Ela escorregou, caiu... — respiração ofegante, voz seca, enrijecida com a própria determinação. — Vamos ajeitar tudo para não assustar as nossas meninas. Onde conseguiremos outra garota bonita como esta?
Uma criança!! A dureza de Pilar havia derretido. Sabia que não podia, não devia contestar. Ninguém podia saber. O medo conseguiria abafar a sua memória? Sentiu reverberar a raiva. Mordeu a língua com tanta força que o sangue molhou sua boca. Recordava as histórias que não levou a sério. Mesmo que se passassem muitos anos, ainda lembraria como foi a sensação de segurar os dedos trêmulos de Susi dentro dos seus, naqueles últimos momentos de uma vida tão curta.
Susi seria lembrada exatamente como a mãe: cabeça erguida, ombros para trás, dentes à mostra, perseguindo a felicidade. Unidas pelo sangue, inseparáveis no destino.
Temas: orfanato, assombração.