Relatos sobre a Loira do Banheiro
Marcelo Fávaro
O que vou contar aqui não é motivo de orgulho, tampouco de coragem, haja visto que eu nunca antes havia tremido tanto. Vocês já sentiram os ossos de vocês tremerem dentro da carne?
Como todos sabem, eu sou o professor desse colégio há muitos anos. E antes de chegar aqui, eu já passei por muitas escolas. Posso contar-lhe, há muitas coisas em comum entre vocês, aqui dessa sala, e todas as outras escolas por onde passei. Engraçado, não é? O Carlos que está atazanando a Maria Eduarda se comporta de forma idêntica a outro Carlos que dei aula há quase trinta anos. O Carlinhos. Posso vê-lo aí sentado onde você está agora mesmo. Carlinhos era um menino bem danado. Adorava fazer bagunça. As vezes eu tenho saudades de sua energia que na época me deixava louco. Ah, Carlinhos.... Carlinhos, senta no seu lugar! Carlinhos, abre o caderno! Carlinhos, deixe o cabelo da Rita em paz! Pobre Carlinhos. Um menino cheio de vida, como vocês. Ninguém na época acreditou no triste fim de Carlinhos. Eu mesmo, cheguei a mudar de colégio e por lá não passo nem na rua.
Mas não precisamos adiantar os fatos. Tudo ao seu tempo. Como eu vinha dizendo, em todas as escolas onde lecionei, havia grandes semelhanças. Sempre houve. Mas uma delas sempre me causou grande curiosidade. Além da quadra, sala de vídeo, biblioteca, refeitório, pátio, todas as escolas por onde eu passei tinha a história da loira do banheiro.
O interessante de tudo isso é que, mesmo antes de eu lecionar, ainda pequeno, um guri. As histórias malditas desse ser vem povoando os frios corredores de todos os colégios do país.
Certa vez, logo no começo de minha carreira como professor, o Robert, garoto corpulento, repetente por dois anos, o maior da sala, moleque valentão, desagradável, violento mesmo com os outros alunos e até com alguns professores. Pois bem, era uma sexta-feira daquelas que começa a chover às três da madrugada e a chuva ultrapassa toda a manhã, dando a impressão que sequer amanheceu. Poucos alunos foram para a escola naquele dia. Engraçado que, nessas ocasiões, somente os piores alunos aparecem, não é verdade? Pois bem. Aquele foi o dia do Robert vir à aula. O dia seguia pintado de preto, com flashs brancos que lembravam fios brancos descendo do céu. Mal conseguiam ouvir a minha voz, pois os trovões eram esmagadores. O mau aluno fazia questão de não permanecer no lugar, andando por entre as fileiras, destilando sua odiosa presença, pegando materiais, puxando cabelos, importunado. Não tinha aluno que não o repudiasse, assim como o restante do corpo docente. De toda forma, sua ausência era motivo de alívio. E assim era. Apenas uma coisa o Robert era ótimo, nos desenhos. O menino desenhava como nenhum outro. Dava gosto de ver seus rabiscos. Tão vívidos. Tão realistas.
E realmente era um dia feio. Céu negro como a noite. O vento e a chuva davam a impressão de desalento e abandono. A escola gemia diante da tempestade. E quem foi à aula naquela manhã, já estava arrependido. Inclusive este professor, que estava inseguro diante das telhas que zuniam, produzindo um desconforto nauseante. Ninguém sabia, mas alguns desconfiavam, era o mal chegando. Todos permaneciam retraídos, olhando pela janela. Todos, menos o Robert. O menino abusado. Este se divertia, ria alto a cada trovão e zombada dos outros alunos.
- Professor, deixa eu ir no banheiro?
- Senta lá, menino. Vê se aquieta. Abre seu caderno.
- Vai, professor. Deixa eu ir. Eu tô apertado. Pediu o petulante aluno.
- Cuidado com a loira do banheiro... desafiou o Jorge, colega de classe.
- Cala a boca. Acha que sou um bebê? Eu bem queria encontrar essa loira. Ela quem iria ter medo de mim. Esbravejou o aluno.
- Olha lá, Robert. Ela não gosta de ser desafiada. Continuou o menino.
- Vocês que são umas menininhas. Eu não tenho medo de nada. Muito menos dessa loira.
E assim o Robert saiu da sala. Mesmo sem a autorização do professor, que estava olhando os cadernos. Esse foi o seu erro. A aula estava no final. E o professor sequer deu conta da falta do aluno. O sinal bateu e todos se encaminharam para a saída. Todos. Menos o Robert. Seu Elias fechou todas as salas e jura que não ouviu nada. Nenhum grito. Talvez por conta da tempestade. A verdade é que Robert, o menino malvado, ficou preso no banheiro. A família, dando sua falta, ainda foi até a escola, na mesma tarde. Mas estando o colégio fechado por conta da forte chuva, concluiu que o menino saíra juntos com os outros. Bem... era uma sexta-feira feira. A família não tinha muita base. Considerou que o garoto estivesse na casa de algum amigo. Sequer saíram para procurá-lo. Mãe solteira. Dois empregos. Uma hora o menino iria aparecer. Uma questão de tempo.
O sábado veio e a chuva aumentou. Esse menino vai apanhar! Pensou a mãe. Somente no domingo foi à polícia, embora pouco adiantasse. Os policiais pouco fizeram, registraram a ocorrência e prometeram que iriam procurá-lo assim que a chuva desse uma trégua. Não deu.
Na segunda-feira eu fui um dos primeiros a chegar ao colégio, e sequer sabia do sumiço de Robert. Somente ao passar pelo corredor, ouvi alguns gemidos de pavor, vindos do banheiro masculino. Algo mexia na maçaneta, tentando abrir a porta por dentro, sem sucesso. Os alunos ainda não tinham chegado. Quem estaria no banheiro de alunos àquela hora da manhã?
Encostei minha mão na maçaneta e a porta se abriu facilmente. Ela não estava trancada. Definitivamente. Mas cena que encontrei lá dentro nunca vou esquecer. O banheiro estava todo desenhado. As paredes. Espelhos. Pias e sanitários. Todos rabiscados com uma figura horrenda. Pavorosa. E essa figura se repetia por todo o banheiro. Era uma mulher maligna. Com os cabelos desgrenhados. Os olhos monstruosos. Dentes descomunais. Dedos longos e finos. E algo de diabólico que simplesmente não se pode explicar com as palavras que conhecemos. O banheiro todo fora transformado em uma cena do mal. As paredes azulejadas projetando desenhos dignos do inferno dantesco, havia diversos traços diferentes, feitos a giz, entretanto, em todos eles havia a loira, cadavérica, pavorosa, sorrindo e chamando. Confesso que até eu, que sou um homem feito, senti uma fraqueza nas pernas.
Mas ainda eu podia ouvir um gemido vindo do fundo do banheiro, um lamento em sussurro, entrecortado. Segui o rumorejo, até abrir a porta da última cabine sanitária. E lá estava ele, com os olhos arregalados, todo machucado, com as unhas todas ensanguentadas e sujas de giz. O dono dos desenhos. Que passou o fim de semana chuvoso trancado no banheiro. O Robert.
Após a chegada da polícia e dos bombeiros, uma série de exames fora feitos ao aluno. Estava um pouco desidratado e fraco, mas recusou veementemente alimento, precisou ser sedado para receber soro. Robert nunca mais falou. Passou um tempo conosco, a princípio tétrico, fúnebre, sinistro. Sentado alheio a tudo, com o olhar fixo num ponto qualquer. Ficou ainda seis semanas no colégio. Não disse palavra. Não foi ao banheiro. Não tomou água ou comeu a merenda. Até o dia do acidente. Em uma manhã ele se levantou e caminhou até a mesa do Renato, pegou um lápis que o colega acabara de apontar, voltou para o seu lugar e cravou o objeto em sua mão direita, atravessando-lhe a ponta sobre a palma. Ele não gritou. Ele não chorou. Apenas me olhou calmamente e perguntou:
- Você também a viu? Diz pra mim que a viu.
- Vi quem? Perguntei horrorizado.
- A loira. A loira do banheiro.
Foram tempos difíceis aqueles. Depois de alguns exames e duas operações, Robert nunca mais iria desenhar, pois alguns nervos essenciais para o movimento dos dedos foram danificados. Após a alta médica, o aluno foi encaminhado para um sanatório. E lá ficou. Ainda fui visitá-lo e levar algumas cartas de amiguinhos, desejando sua melhora. Mas ele não mais lembrava de mim ou de qualquer aluno.
Eles falam sobre aquela menina que deu origem à lenda. Cheguei até a estudar sobre o caso. Maria Augusta de Oliveira Borges. Menina nascida em 1866. O pai lhe obriga a casar aos 14 anos com um conde, em Guaratinguetá, onde se dá o caso. Aos 18, já maior de idade, a moça foge para Paris. Entretanto, seu sossego dura poucos anos pois, aos 26 anos a menina morre misteriosamente. O corpo é trazido à terra natal, onde é mantido em uma urna de vidro até que o seu jazigo fique pronto. A mãe não queria deixar que enterrasse a moça. Parece até que previa o mal que ainda iria devastar aquela família.
Em 1902, a casa que fora o solar da família é vendida e transformada em uma escola. Com Maria Augusta ainda sepultada sobre suas edificações. Em 1916 deu-se o misterioso incêndio no prédio. E o que dizem, bem... dizem que coisas muito estranhas começaram a ocorrer ali. E logo os relatos foram ganhando proporção, e o medo chegou a todas as escolas. Entretanto, não acredito em nada disso. Essa é uma tentativa inútil de tentar humanizar esses acontecimentos. Aquilo que vive nos banheiros não é e nunca foi humano. Aquela entidade é muito pior do que qualquer ser que por aqui pisou.
Mas a vida seguiu. Mudei de colégio e confesso que até me esqueci por uns tempos do caso Robert. O tempo apaga algumas lembranças. Principalmente aquelas que desejamos de toda forma apagar.
Foi quando me ocorreu esse caso do Carlos. Ou Carlinhos, como chamávamos. O Carlinhos chegou no meio do ano. Veio pela manhã com o papel da transferência nas mãos. Não entenderam o porquê da mãe ou algum responsável não trazê-lo no primeiro dia em sua nova escola. Apenas respondeu dizendo que a mãe trabalhava e o pai era doente. Ok. Seguimos o curso das coisas. A escola estava em reforma, havia muito material de construção pelos corredores, acabamos que esquecemos de convocar os pais do garoto. E as aulas continuavam. Carlos, como eu disse, tinha uma energia muito forte. Menino de personalidade.
Outro dia estava passando lição na lousa quando sem querer ouvi a conversa dos meninos, enquanto copiavam a atividade.
- É só isso?
- Sim, oras. Foi o Fabrício quem disse.
- Oras. Isso é uma grande mentira.
- Se quer pagar pra ver. Tenta lá. Mas tem que ser sozinho, viu?
- Então é só dar a descarga e chamar ela?
- Sim. Mas tem que ser três vezes. E não vai esquecer de dar as três pancadas na parede. É importante.
Passou-se uns vinte minutos e confessor que já nem me lembrava dessa conversa mais. Sala cheia. Movimentada. A gente perde um pouco a concentração. Carlinhos pediu para ir ao banheiro. Apenas orientei:
- Cuidado com a betoneira que está lá dentro. Não mexa na máquina de cimento, tudo bem?
- Tá bom, fessor.
E lá se foi o Carlinhos. Passou-se cinco, dez, quinze minutos e nada de sua volta. Eu não sei como ocorre com vocês, quando a gente recebe uma notícia ruim. Depois de algum tempo não parece que a gente já sabia da notícia? Eu fiquei com essa impressão, quando dona Carmem, a inspetora, pediu licença e perguntou-me: - Onde foi parar o Carlinhos?
- Foi ao banheiro. Por que a pergunta?
- Professor, venha até o corredor comigo, por favor.
- Pois não, dona Carmem. O que houve.
- Esse aluno. Carlos Daniel da Glória. O senhor já viu algum parente dele?
- Não, por quê?
- Vasculhando no banco de dados da secretaria, a Maura descobriu que esse aluno não veio de escola alguma.
- E como pode ser isso?
- Ele não tem pais na ficha, endereço, nada.
Eu iria esboçar uma reação de incógnita, mas fomos surpreendidos por um forte estrondo do banheiro. Um barulho muito forte, que assustou a todos. Corremos em sua direção e a cena que encontramos foi a mais horrenda. A betoneira estava ligada, esguichando cimento a todo o vapor. E a sua frente, uma montanha de concreto se fazia presente, como uma estátua da Antiguidade. Após conseguir desligar a máquina, fomos procurar saber quem a tinha feito funcionar. Os pedreiros não estavam na escola naquele dia. Com certeza foi algum espertinho que a ligou. Observamos que o conglomerado de massa tinha a altura de uma criança e já estava praticamente seco. Um sentimento ruim percorreu toda a minha espinha dorsal. Não pode ser... de novo não... olhei para a pedra enorme que se formara, tentando em vão retirar partes ainda moles de cimento. Se obter sucesso, pude ver por entre a massa, um pequeno dedo sobressaindo.
A polícia fora chamada. E após algumas horas e a ajuda de picaretas e machadinhas, o corpo do Carlinhos foi retirado do meio de concreto. Logo decretaram. Foi um acidente. Eu não me satisfiz com o resultado da rápida investigação. Entrei no mesmo banheiro para tentar entender. E confesso que seria melhor não tê-lo feito, pois na última cabina. Bem no canto do azulejo. Havia um desenho. Idêntico aos que foram encontrados naquela outra escola há vinte e poucos anos. O mesmo traço. A mesma marca de giz. O mesmo sangue desenhado.
Levantei-me sobressaltado, esgueirando-me pelas paredes, dando passos nervosos para trás, até que escorreguei no resto de cimento que ainda jazia ao chão. Foi um belo tombo, pode ter certeza. Eu ali, sozinho, todo sujo de cimento, sequer vi a sombra de alguém se aproximando, bastou levantar o olhar, e lá estava ela, com a boca descarnada, o demônio louro, a imunda serpente, com vermes saindo pelos olhos cheios de ódio, com o semblante frio, porém com a maldade irônica, sorrindo terrivelmente. Ela..
A mesma Loira do Banheiro.