Terror nas ondas do rádio

Marcelo Fávaro

Terror nas ondas do rádio

Marcelo Fávaro

Quem nesse mundo não ouvia o programa do Almerindo Graça? Há de se lembrar daquelas noites solitárias nos fins dos anos oitenta. Lá estava o aparelho ligado no Almerindo. Rádio Campos Elíseos, ZYB 491 FM, Capital.

Grande locutor o Almerindo. O Campos Noturnos, seu programa, que ia ao ar das dez da noite às duas da madrugada, era muito bem ouvido pelas almas desajudadas, Marias abandonadas, motoristas de taxi e a gente em geral, que preferia a voz do digníssimo amigo ao amargor da insônia remota. Programa de amor, como ele mesmo dizia no dial. Nas noites quentes e frias da pauliceia, Almerindo tocava as mais belas canções de afeto, onde podíamos ouvir desde as baladas dos anos sessenta ao rock romântico da última década. Eu mesmo passava as noites relembrando paixões de antigamente ouvindo o Campos Noturnos.

Ainda havia o momento da carta, onde Almerindo dramatizava a história do ouvinte, emocionando a todos. Geralmente era uma crônica de amor e perda, com a música dedicatória ao final. Mesmo em dias em que as cartas não chegavam, como ocorreu naquela semana da greve dos correios, Almerindo inventava na hora uma narrativa bem marcante, em que os leitores sequer desconfiavam do truque do radialista, como ele mesmo divertidamente me confidenciara nas últimas cervejas que tomamos no boteco do Messias, na Barão de Limeira.

O grande povo adorava a hora da tradução, era o momento em que nosso amigo se sobressaía sempre. Americana, francesa, italiana... não haviam obstáculos, Almerindo sempre encontrava a tradução para a música internacional. O bom profissional procurava com veias arqueológicas as velhas revistas de tradução nos corredores empoeirados dos sebos nas ruas da Glória e Liberdade durante o dia, para poder sustentar o quadro à noite. Quando não sobravam mais novidades, ele mesmo sentava-se com o dicionário inglês/português ao lado e, ouvindo a canção concentrado, tentava distinguir algumas palavras, o resto ele mesmo criava.

Essas e outras invenções apenas sublinhavam o determinado amor que Almerindo Graça nutria por seus ouvintes. Seu povo era sua vida, dizia o homem grandalhão de olhos marcantes nas mesas, entre uma taça e outra de vinho com amigos.

Era realmente um homem singular o Almerindo. Sua inigualável arte de conduzir uma boa palestra de boteco conferiu-lhe fama entre os boa-praças e bons malandros do Arouche ao Paisandu. Ali o inestimável camarada era soberano, respeitado entre prestigiosos e vagabundos, sempre pronto para um agradável dedo de prosa, quando saía de seu programa, na alta madrugada, esticando sua caminhada pela Rua Aurora, parando na Praça da República para saldar os amigos, e voltando até a São João, onde residia.

Todos ficaram impressionados com o triste fim do Almerindão. Aliás, aquele havia sido um ano bem borocoxô para o locutor da alvorada. Sua mãe, única parente, morrera em fevereiro, vítima de um infarto fulminante, deixando o pobre homem sozinho nesse mundo de Deus. Vinha ele espaçando as visitas aos amigos, os bocados de parla no bar Leo e as rondas noturnas pelo Centro Velho garoento. O indivíduo andava pelas sombras.

O inverno chegou enternecendo os corações enfeitiçados. Era nessa época que o Campos Noturnos ganhava mais audiência, afinal, os que já possuíam seus amores, apreciavam juntos, os que não os tinham, desejar-vos-iam ardilosamente ao ouvir em seus leitos gélidos as melodias afetuosas do programa. Afinal, amor é uma empresa bagunçada, sobretudo às almas da Paulicéia noturna. Bem era verdade quando um ouvinte ou outro ligava na rádio e pedia para falar ao vivo com Almerindo, quando conseguiam, não poucos choravam ao relatar seus desamores aos quatro cantos da cidade.

Foi numa dessas participações ao vivo que Almerindo conheceu Marilda das Graças. Não seria Maria das Graças, minha flor? Não, Marilda mesmo, creio eu ter sido erro do cartório, mas já acostumei. Fique à vontade, meu amor. O espaço é teu.

O que se seguiu fora o mais triste e belo relato de amor que Almerindo e toda a cidade velha já ouvira. Nosso amigo, que já andava desacorçoado com a vida, mal segurou as lágrimas diante da voz nectárea da moça contando sua infelicidade. Resumindo a obra, tivera ela sido abandonada no altar por um noivo que morrera assassinado a caminho da capela. Não obstante, o maior sentimento que comovera a todos nem foi a trama em si, mas a voz sentida da garota. Suas lágrimas foram remoídas por todos em seus radinhos naquela noite fria de maio.

O vento, que antes soprava terno no meio daquela tarde outonal, agora chegava vigoroso, tremendo as janelas e fazendo Almerindo encolher os dedos dentro do sapato forrado de jornal antigo. O inverno, que rouba as horas do dia, transformando a noite no livro mais extenso e solitário, chegara mais cedo àquele ano, entregando brumas às ruas, fazendo o mais entusiasmado boêmio entristecer diante das noites que vinham cada vez mais densas. A voz doce da garota triste deixou o coração do radialista ainda mais desamparado, diante dos dias vazios que se apresentavam.

Almerindo ouviu com o coração a narrativa angustiante de Marilda, agradeceu sua participação e pediu que aguardasse na linha antes de desligar. Rapidamente o locutor introduziu uma música de amor para poder falar com a ouvinte fora do ar. Seu coração estava acelerado quando pegou no telefone e ouviu apenas o eco de sua voz, entrecortado pelo bip insistente, indicando que a linha tinha caído.

- Maldita companhia telefônica, pensou.

Avisou a atendente que, caso a ouvinte retornasse a ligação, era para transferir para sua mesa imediatamente. Ela não ligou naquela noite. Nem na próxima. Nem na semana. Almerindo ficou desconsolado. Esperou por dias, até que, em outra soturna noite no começo de junho ela ligou. Agradeceu os tantos recados deixados durante a semana, de pessoas que se solidarizaram com sua história, pediu uma antiga canção e quando se preparava para desligar, Almerindo interviu:

- Por favor, não desligue!

Conversaram muito fora do ar. Falaram sobre a vida, sobre as coisas que entristecem e aquecem, sobre o frio, a cidade e o coração. Quando ela desligou, nosso amigo parecia parar em um ar de felicidade e loucura. Que moça! Pensou.

Nesse mesmo dia, encontrei o Almerindo na rua 7 de Abril comendo um bauru no balcão do Sebastião às três e meia da madrugada, onde ele me contou tudo o que se passara nos últimos dias em sua vida. Pegamos a Xavier de Toledo em direção ao Viaduto Santa Efigênia, pois havia ali o bar do Genuíno, que funcionava desde os tempos de Adoniran Barbosa, onde os mais bravos amantes da noite terminavam suas jornadas errantes. Bom lugar para tomar a saideira eterna, para rever os antigos amigos e ouvir algumas do Geraldo Filme. Enquanto descíamos atrás do Theatro Municipal, o estimado amigo me colocava a par dos últimos acontecimentos. Eu ouvira o relato de Marilda do meu radinho, todavia, o resto eu ignorava.

- Estou apaixonado, Carlos. Almerindo admitiu.

- Logo tu, solteiro convicto e invicto. Debochei.

Atravessamos o Largo do Paysandu, onde parei pra acender o cigarro do Josias, velho conhecido das noites de viola.

- Mas você nem conhece a cabrocha. Intrometeu-se o recém chegado na conversa, com seu sotaque mineiro que me fez rir, aumentando meu deboche diante do amigo enfeitiçado de amor.

- Vais rindo, vais rindo. Retrucou Almerindo, chutando a calçada, meio que procurando algo invisível no chão.

- Mas há de convir que essa história é bem exótica, Almerindo. Continuei indo logo atrás do amigo bonachão.

Mal sabíamos que a embolada ainda ficaria mais estranha nos próximos dias. Tudo que sei a partir daí foi relatado pelo próprio Almerindo antes de perdermos contato. Tentarei ser o mais fiel possível aos acontecimentos, transmitindo exatamente o que vi e ouvi do próprio camarada.

O inverno seguia glacialmente, congelando os corações desajustados da megalópole, mostrando a face mais violenta da solidão. O calor das vozes apaixonadas de Almerindo e Marilda destoavam diante do deserto sentimental do conglomerado de pedras paulistanas. Não raro passavam noites completas ao telefone trocando juras inflamadas, desejando estarem unidos de corpo e de alma, almejando o dia de efetivar todos os beijos e abraços prometidos. Entretanto, toda vez que Almerindo propunha encontrá-la, era veementemente contrariado.

- Não queres me ver? Indagou Almerindo com a voz embargada, esperando ansiosamente a resposta do outro lado da linha.

- Não é isso. Não imaginas o quanto o quero. Ver-te seria um sonho!

- Então, qual o problema de me encontrar?

- Você não entenderia... Respondeu tristemente a voz do outro lado da linha.

- Tens medo de eu achar-te feia? Perguntou o pobre homem. Se for isso, podes ter a certeza desse mundo que não pensarei isso. Para mim tu és linda de toda forma, de toda maneira.

- Confio nisso, meu amor. Achar-me-ias bem jeitosa se me visses na rua. Disse a moça com certa melancolia embargada em sua voz.

- Por isso não entendo. Se for preciso, converso com teus pais, peço permissão para te visitar, tudo conforme os costumes. Implorou o locutor.

- Receio que não será possível. Mas não penses em nenhum momento que não te estimo ao infinito. Meus pais encontram-se indisponíveis, infelizmente. No entanto, daria a vida para te ver, nem que fosse por um minuto.

Almerindo continuou sem entender. Era demasiadamente angustiante a situação. Já fazia dois meses desde à primeira ligação, os dois já haviam conversado muitas vezes ao vivo e fora do ar. Sempre com Marilda efetuando a ligação, pois, apesar dos constantes apelos do namorado, ele nunca informara seu número.

- Minha família não aceitaria que você ligasse aqui. Revelava a moça.

E assim se passaram semanas. Cada vez mais próximos, apesar da distância física, cada vez mais apaixonados. Diante da recusa sistemática em lhe ver, Almerindo pensou em todas as possibilidades. E se fosse casada? Não poderia ser, nenhuma esposa ficaria ao telefone por horas varando as madrugadas sem levantar suspeitas de seu marido. A não ser que ele fosse guarda-noturno ou caminhoneiro. Esses pensamentos tiravam o pouco sono que o rapaz tinha. Sua angústia aumentava paulatinamente. Nenhum rosto, nenhum endereço ou número de telefone. Nada. Almerindo estava ficando louco.

- Não posso mais esperar. Quero tê-la ao meu lado. Confessou-me em um comecinho de noite lá no Bar do Bigode, perto da Estação da Luz.

- Se quiseres, tem o Genésio. Respondi ao impulso de uma ideia que tive naquele mesmo momento.

- Que tens o Genésio?

- Ora, homem, não sabes? O Genésio trabalha no prédio da Telesp, na Sete de Abril, podes muito bem rastrear as ligações da pequena.

- Isso seria fantástico! Reagiu o amigo dando um sobressalto, mas logo se sentou novamente desanimado. Não teria coragem de faltar com a confiança de sua amada. Seria jogar sujo com ela.

- Qual o quê? Divergi. Quem mais poderia ajudar? Além do mais, se a cabocla insiste em se esconder, é porque aí tem.

Almerindo nada falou, mas percebi que a ideia mexeu com seus nervos. Julho já ia pelo final quando o encontrei novamente, dessa vez depois do almoço, coincidentemente na Rua Marconi.

- Chega, não aguento mais! Morro de saudade de quem nunca vi em minha vida. Choro de pensar que ela possa estar me enganando. Procuraremos Genésio agora mesmo.

Assenti com a cabeça. Fomos andando, eu calmamente, ele de forma inconstante, alvoroçado. As pessoas passavam apressadas pela rua, disputando espaço com os carros, entrando e saindo dos antigos prédios cheios de escritórios, cheios de papéis. Os office-boys com suas pastas, os homens-placa anunciando oportunidades de emprego, comprando e vendendo ouro, ambulantes, aproveitadores, mocinhas datilógrafas, enfim, tudo confluía em um organismo solidamente fortificado. Tão forte que ainda hoje, passados quase trinta anos, ainda paro observando esse ballet dos engraxates, vendedores de rifas e batedores de carteira. Alguns ainda daquela época do programa do Almerindo, outros novos, recrutados pelos melhores. O Centro se renova, toma folego com novos produtos, reciclando antigas técnicas, como o jogo de adivinhar a bolinha embaixo dos copinhos. Pastores semianalfabetos gritavam em meio ao calçadão, enquanto Almerindo e eu apertávamos o passo em direção ao escritório de Genésio.

- Que história! Surpreendeu-se Genésio, ao ouvir nosso relato, apagando o cigarro no meio-fio em frente ao prédio da companhia telefônica.

- Não sei mais o que faço, Genésio. Exclamou o radialista. Faço qualquer coisa para ter o seu endereço.

- Calma, não é para tanto. Vamos lá tomar um café na esquina. Logo mais e puxo as ligações. Essas coisas são fáceis de se resolver. Mas, me diga, Carlos, como anda seu Palmeiras, hein?

Genésio era um homem legal, tinha grande talento para a vida noturna com os camaradas, entretanto, caiu-se de amores por uma menina vinda lá do Espírito Santo que o fez largar a existência de boêmio e contrair matrimônio. Hoje, se passar dos dez minutos ao banheiro, a mulher bate-lhe a porta inquirindo sobre o que ele anda fazendo. Pobre homem, bom de coração, mas sequer consegue fazer suas necessidades em paz.

Almerindo pagou-lhe o café, também já deixou salvas duas cervejas para o amigo beber mais tarde e finalmente entramos no prédio. Pela duração e frequência das ligações, foi fácil encontrar o número do telefone que andara fazendo as ligações à rádio. Com o número em mãos, Genésio foi à sala enorme que continha os arquivos com endereços dos clientes.

- Veja só! Você está com sorte, as ligações vieram de um local não muito longe daqui. Vocês podem até irem andando. Eu até iria junto depois do expediente, mas sabe como é a Jussara, fica chateada se o jantar esfria...

Almerindo já suava frio quando interrompeu o amigo:

- Homem, por favor, diga logo de onde vem as ligações.

- Aqui mesmo no Centro.

O formidável Genésio passou o endereço. Rua Aurora! Exclamou meu amigo surpreso ao ler o bilhete. Se corrermos, ainda chegamos antes das quatro. Vens comigo, Carlos? Não saberia o que fazer se ela for comprometida.

Concordei com a proposta. Almerindo não estava em condições plenas, até tentei convencê-lo de esperar uns dias, mas confesso que eu mesmo estava me segurando de curiosidade em ver o desfecho dessa história.

Demos adeus ao saudoso Genésio, digo saudoso, porque uns anos depois ele se trancou no banheiro e tomou formicida. O que não o livrou ainda de se ver com a mulher, que o encheu de porradas mesmo morto. Descemos pela Ipiranga, passando em frente aos antigos cinemas e ganhando a galeria que dá para a Rua Aurora. Estávamos excitados com a possibilidade de ver a mulher misteriosa.

- É aqui. Disse Almerindo com a voz agoniada.

Era uma antiga casa, modesta moradia com duas grandes janelas de madeira voltadas para a rua e um pequeno portão de ferro que dava para um corredor lateral que se prolongava acompanhando a velha construção. O sobrado era rodeado por duas lojas mais novas, espremido pela modernidade da cidade. Algumas motos, ou pedaços de motos eram encostados próximos à calçada suja esperando pelo mecânico que trabalhava distraído um pouco à frente. Tudo naquele pedaço da cidade era meio desolado. Alguns sujeitos passavam olhando fixamente para nós, deixando o ambiente mais opressor. Lembro-me de tudo como se ocorresse novamente em minha memória agora mesmo. Misto de ojeriza e inquietação. Estávamos tensos, parados em frente a casa remota sem saber se era melhor chamar ou ir embora correndo. Mal sabíamos que, aquilo que nos esperava lá dentro, iria nos assombrar para o resto de nossas vidas.

A tarde, que já vinha sem sol, agora se tornava escura e uma insistente garoa caía, deixando o aspecto do cenário ainda mais sinistro. Eu tentava em vão esquentar minhas mãos nos bolsos do paletó. Almerindo, entretanto, mal sentia os efeitos do frio que descia lentamente sobre nós. A boa verdade era que naquele momento meu amigo padecia de enorme exasperação, paralisado de temor diante da moradia do que poderia ser o amor de sua vida. Ia eu tocar a campainha, mas fui impedido pela voz entrecortada do amigo, que tomou a frente e, num ápice de coragem, apertou o botão sonoro. Um momento de extrema tensão nos invadiu, durou alguns instantes, quando finalmente a porta se abriu, e da escuridão que denunciava o interior do recinto, vimos a aparição de uma senhora bem idosa. Seus olhos se esforçaram para discernir nossas feições, enquanto falava:

- Pois não?

- Perdão, dona, meu nome é Almerindo, trabalho na Rádio Campos Elíseos. Desculpe-me o incômodo, mas a senhora por um acaso conhece uma moça chamada Marilda das Graças?

A senhora, que aparentava ter seus setenta anos, pareceu não entender direito a pergunta simples de meu amigo.

- Com quem que o senhor deseja falar?

- Marilda das Graças, do jeito que eu disse. Marilda. Ela disse ter sido um erro no cartório.

A face da velha empalideceu, por um momento achei que ela iria desmaiar, mas logo ela recobrou os sentidos e apenas disse:

- Os senhores podem entrar.

Um olhou para o outro com surpresos com o convite, será que a idosa já sabia sobre o namoro de Marilda e Almerindo? Qual seria a reação da garota ao ver o homem em sua frente? Passamos pelo corredor lateral, e entramos em uma sala escura, com móveis antigos de madeira. Um ambiente lúgubre me oprimia o coração e uma voz em minha consciência gritava para eu sair daquela casa.

A senhora vestia um xale marrom de lã, tinha um aspecto comum, por se dizer, não exalava vigor, entretanto, não era uma velha repudiante. Era apenas uma mulher envelhecida. O local, apesar de personificar a solidão em um misto de melancolia, talvez pelas longas cortinas e as janelas fechadas, também não era digno de se arrepiar, mesmo assim, tinha meus nervos em sobressaltos de estar naquela casa, uma sensação esmagadora de estar onde não devia. Almerindo estava concentrado demais em ver a amada para perceber a estranheza daquele espaço.

No canto da sala, em cima de uma mesinha, pousava um gato preto, com seus olhos mortos olhando para as fotografias na parede. Estranhei o animal naquela posição tão bizarra. Só então percebi que o felino havia sido empalhado. Aquilo me deu uma espécie de ojeriza diante da cena macabra. A senhora, percebendo minha angústia, interviu:

- Este é o Mentor, o filho que nunca tive nessa vida. Respondeu com certa melancolia. Se foi há dez anos. Como eu sabia que não conseguiria viver sem ele, resolvi mandar empalhá-lo. Não ficou estupendo?

- Certamente. Respondi disfarçando a repulsa.

- Vocês procuram por Marilda, é isso?

- Sim, ela se encontra? Disse Almerindo sem conseguir disfarçar a inquietação.

- Vocês falaram com ela? Perguntou a velha demonstrando profundo interesse.

- Meu amigo falou. Respondi. Conversa com ela todas as noites.

A velha ouvia com atenção. Parou por um momento ao lado de um velho piano, pousou a mão sobre o instrumento, parecia estar em outro lugar por uns instantes, pensando. De repente, disse:

- Ela adorava tocar esse grande piano. Disse sorrindo. Ela falou que gosta de música?

- Oh, sim. Claro. Respondeu Almerindo emocionado. Ela sempre pedia que eu tocasse músicas lindas para ela na rádio. Principalmente as antigas, ela adorava! A senhora então a conhece, presumo. É a avó dela?

A velha soltou uma pequena gargalhada:

- Não, não, rapaz. Não sou avó de ninguém. Nunca tive filhos.

O ambiente continuava sombrio, apenas do diálogo descontraído. Parecia que só eu via alguma coisa de muito errada naquela cena. Foi quando a senhora nos fez um outro pedido:

- Para eu responder-lhes todas as perguntas, teremos que subir até o próximo piso, vocês podem me seguir pelas escadas. Solicitou a velha, já subindo ao outro andar.

Fiquei ainda mais desconfiado e ainda segurei o braço do meu amigo, pedindo com os olhos que déssemos o fora dali enquanto havia tempo. Mas Almerindo já tinha ido longe demais nessa história, simplesmente não poderia voltar, então, seguimos pelos degraus de madeira envelhecida que veio dar num corredor de paredes amareladas, onde no final dele nos esperava a mulher antiga. Ela nos introduziu num quarto antigo, com papeis de parede desbotados. Móveis que contavam com pelo menos cinquenta anos. Uma cama branca de mulher, uma escrivaninha, uma penteadeira cheia de vidros de perfume antigos e um guarda-roupas. Em cima da cama uma boneca de porcelana que me lembrava épocas em que não vivi. Tudo ali parecia soturno ou lúgubre, o ar se mantinha pesado, acusando que as janelas não eram abertas há anos. Mas tudo isso parecia não incomodar a senhora. Na parede, estava pendurado um quadro muito antigo, igualmente destruído pelo tempo, mas que preservava a imagem de uma jovem muito bela, de sorriso hipnotizante.

- O que vem a ser esse lugar? Não estou entendendo nada. Confessou Almerindo, já impaciente com os enigmas daquele quarto sombrio.

- Este é o quarto de Marilda. Replicou a senhora.

- Parece-me que ninguém dorme nesse quarto há anos. Retorqui.

- Certamente. Retrucou a velha.

- E essa foto na parede? É de algum parente antigo? Questionou Almerindo, olhando fixamente para a imagem.

- Vocês podem não estar preparados para entender. Na verdade sou irmã de Marilda. Confessou a senhora. Meu nome é Marivânia. E este realmente é o quarto da pessoa que vocês estão procurando. Ou pelo menos era.

Agora era eu quem estava tremendo de inquietação. Como poderia ser? Uma senhora com mais de setenta anos irmã de uma garota de no máximo vinte e poucos.

- Desculpe-me, dona Marivânia. Mas não estamos entendendo absolutamente nada.

- Pois vão entender. Devolveu a velha demonstrando apreensão. Entendo e acredito quando os senhores dizem estar procurando minha irmã, no entanto, isso seria impossível.

- Ela por acaso está doente? Perguntou Almerindo com grande aflição.

- Não, de forma alguma. Mas o que tenho para lhe contar, talvez o senhor não vá compreender. Pode ser difícil.

Almerindo já tinha desabado em uma velha poltrona de couro para ouvir com atenção as próximas palavras. Provavelmente sua felicidade dependeria do que dona Marivânia iria dizer em seguida.

- A verdade, rapazes, é que vocês não poderiam ter falado com minha irmã, de forma alguma. Nem vocês, nem ninguém, porque minha irmã está morta.

Deixei-me cair sobre a cama ao ouvir tal afirmação. Almerindo parecia não estar entendendo a gravidade da coisa. Foi quando a velha continuou:

- Minha irmã morreu há muitos anos, quase cinquenta. Foi algo muito triste para nossa família. Era o dia do casamento dela, todos muito felizes, mas algo de errado aconteceu.

- Seu noivo morreu. Completou Almerindo com apenas um fio de sua voz.

- Sim, como sabes? Bem, não importa. O importante é que ela ficou louca com o ocorrido, não comia, não dormia, virou um animal dentro de casa. Nossos pais tentaram de tudo, nada adiantava, padres, curandeiros, médicos. Minha irmã não melhorava. Um dia, meu pai entrou no banheiro e minha irmã estava enforcada no cano do chuveiro.

Os olhos de Almerindo estavam em chamas, ele parecia fora de si. Levantou da poltrona, segurou a velha pelos braços e exultou gritando:

- É mentira! É mentira! Sua velha louca! Mentirosa!

Fui rápido e tirei as mãos enormes de meu amigo da pobre senhora.

- Entendo seu desespero, rapaz. Você não é o primeiro que a procura. Já vieram outros, existem épocas que isso ocorre mais, outras menos. Dessa vez já fazia pelo menos uns dez anos que ninguém a procurava. Pensava eu até que sua alma já havia descansado.

- E o telefone? Onde está o telefone dessa casa? Repetia freneticamente o Almerindo.

- Desliguei o telefone há dois anos. Não há como fazer ligações aqui. No entanto, se o senhor recebeu esses telefonemas, pode crer que realmente foi ela quem ligou. Seu casamento estava marcado para o inverno de 1941. Sua namorada está morta e enterrada há cinquenta anos, rapaz. Sinto muito.

Almerindo parecia sem chão. Soltou um grito de horror lancinante. Depois desse dia, perdemos contato. Todos perderam contato com Almerindo. O programa de rádio acabou.

Há uns quinze dias o vi. Estava na Cracolândia disputando espaço com outro morador de rua. Ele gritava, ria, grunhia em sua demência. Ao me ver, não me reconheceu, seguiu andando com um radinho à pilha em uma das mãos. Pobre Almerindo.

Marcelo Fávaro
Enviado por Marcelo Fávaro em 03/09/2019
Reeditado em 06/09/2019
Código do texto: T6736040
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