A Hora mais Sombria da Madrugada

A hora mais silenciosa da madrugada

Marcelo Fávaro

Poucos sabem os infindáveis labirintos que a mente humana pode abrigar, sobretudo quando as lembranças presentes são perturbadoras o bastante para criar bloqueios intransponíveis. O inexplicável vive presente em nossa existência e não há terreno seguro quando o subconsciente domina nossos atos até definharmos em atitudes desonráveis. O que venho vergonhosamente dizer-lhes permaneceu entranhado comigo por dezenas de anos e somente agora, ao final de minha trajetória por esse mundo, tenho coragem de expor os devaneios que me privaram de ter uma vida plena. Permaneço em uma existência febril, tentando dominar o asco pessoal que precede o crucial momento. Meu corpo doente prostrado no leito aguarda a vinda do barqueiro solitário e frio.

Minhas mãos, embora trêmulas e enrugadas pelas investidas dos anos, ainda me permitem escrever a triste história. Ou pelo menos um capítulo dela. O remorso, que sempre me acompanhou como um parente próximo, agora invade meu peito, sobretudo após o momento em que o doutor saiu por aquela porta hoje pelo fim da tarde nublada, dizendo friamente à criada, imaginando meu sono, que aquela seria minha derradeira noite.

Não posso deixar este mundo sem evocar minhas lembranças juvenis, onde deu-se o episódio, cujas consequências resultaram em uma profunda melancolia que atravessou os anos e tomou minha existência. Com efeito, pois, desde a mocidade, meus nervos frágeis não suportam gritos, barulhos recorrentes, algazarra e festas. O fato sinistro tornou-me um homem recluso, enclausurado na minha amarga solidão. Mas agora, às portas da morte, sinto-me na obrigação pessoal de colocar no papel minhas velhas lembranças, ou pelo menos a versão que eu vi disso tudo.

Contava eu com 20 anos, um rapaz agraciado com uma bolsa integral, quando cheguei à Universidade Federal de Mata Cruzeiro, em Minas Gerais, para cursar Medicina. A UFMC, antiga Escola de Medicina das Minas Gerais, já possuía os imponentes prédios seculares quando efetuei minha matrícula. Iria o semestre, por conta das fortes chuvas de 1967, começar somente em agosto. E, embora estivesse ansioso já pela nova etapa de minha vida, estava longe de casa, experimentando um estranho sentimento de angústia que me invadia naqueles dias frios nas montanhas de Mata Cruzeiro.

Fui conduzido por um secretário acadêmico por uma alameda arborizada ao local que me serviria de abrigo, a moradia de estudantes, apelidada ironicamente pelos antigos estudantes de o Castelo. Um velho prédio escuro no alto de uma colida aos fundos das muralhas da universidade. Havia uma guarita em sua entrada, logo a frente do edifício, que em outros tempos servira de posto para um guarda da universidade, responsável por manter a ordem no edifício, inspecionar a entrada de estranhos e bebidas alcoólicas. Hoje, a guarita permanecia fechada, sem funcionamento, com cadeiras e mesas quebradas trancadas em seu interior. A construção dava a impressão de ter sido cuidadosamente projetada para durar séculos, com balaústres imponentes em sua fachada, demonstrando que em melhores épocas aquele seria um local suntuoso, grossas colunas de cimento ascendiam até o sétimo andar. O hall de entrada lembrava bem um hotel decadente, a todo momento entravam e saiam jovens de todos os estilos. O corredor do primeiro andar seguia com paredes emboloradas até a escada de mogno que dava aos andares superiores. Cada pavimento trazia uma ideia igual da moradia, com cores cinzas e desbotadas, representando os rostos cansados dos moradores, seja pelo ritmo enlouquecedor de trabalhos acadêmicos, seja pelas noites entregues aos encontros etílicos juvenis. O último andar era conferido hierarquicamente aos calouros, já que não existiam elevadores, quem fosse chegando, abrigava-se no último andar, descendo os pavimentos conforme fossem esvaziando com a saída dos formandos.

Um estudante de nome Xavier me ajudou com as malas até o quarto que me fora destinado, com o número 706. Um dormitório comum, com duas camas de madeira, uma mesa de estudos, dois armários e uma pequena janela que dava vistas ao campus inteiro, de onde dava para ver a pequena cidade de Mata Cruzeiro no horizonte. Organizei rapidamente minhas roupas e livros no meu compartimento, desabei na cama de cansaço e dormi profundamente. Fui desperto pela porta batendo e acompanhei um jovem, provavelmente de minha altura, com o rosto arredondado, os cabelos lisos e pretos em volta do pescoço, denotando um aspecto de desleixo característico dos homens de nossa idade. Entrava no aposento com sofreguidão, suando muito, enquanto carregava suas malas, que em muito excediam as minhas. Seu nome era Gomes e se apresentava dizendo ser do Rio de Janeiro.

Após as apresentações formais, ficou claro que aquele seria meu companheiro de quarto durante pelo menos o meu primeiro ano na faculdade. Gomes era um rapaz de semblante inofensivo, de sorriso fácil, atrapalhado ao se comunicar, até um pouco retraído, porém pouco austero. Já entrando na obesidade, tinha uma fala simpática e um jeito bonachão que me fez simpatizar com sua presença, apesar de sua total falta de organização. Era um bom parceiro de quarto, concluí após uma conversa breve descendo a colina cheia de frios eucaliptos em direção ao refeitório que nos serviria a ceia. Viera o novo amigo em busca do tão sonhado diploma de Direito, objetivo que o fizera perder os últimos quatro anos tentando passar no vestibular. De família abastada, Gomes trazia alguns trejeitos de homem infantilizado pelos mimos maternos, o que conferia a ele uma imagem de criança longe dos cuidados da ama. Sujava-se para comer, tinha enorme dificuldade em subir as escadas do Castelo e se atrapalhava na hora de lavar suas roupas. Fora estes pequenos detalhes, pelo menos nos primeiros dias em que estivemos juntos, não havia defeito severo que me fizesse desgostar do meu parceiro de dormitório.

As aulas enfim começaram e confesso que mantinha um bom ânimo diante da novidade e desafio de vida longe dos desmandos paternos. Não obstante, bastaram algumas semanas para notar que seria aquela uma trajetória muito diferente das explanações românticas que os professores do colégio teciam. Noites em claro estudando, almas entregues aos algozes professores, tão determinados a sugar a juventude errante nos interiores das muralhas do saber. Os dias cinzas atravessavam o mês, trazendo a angústia e a descomunal saudade de casa, que me incomodava paulatinamente. Com exceção de minhas conversas triviais com Gomes, ainda não me fora dada a oportunidade de cultivar novas amizades, não que eu quisesse, visto que durante toda a minha adolescência eu sempre fora adepto à reclusão espontânea. Com o tempo, notei particularidades de Gomes. Pior que eu, ele tinha grandes dificuldades em se relacionar com os outros moradores do Castelo, dizia preferir conversar comigo. Meu companheiro de quarto dormia cedo, e, com as noites que se seguiam, percebi que seu sono era de morte. Galdino não produzia ruído sequer ao dormia, tampouco se mexia. Parecia em estado tétrico de um faraó, prostrado em sua tumba, com a barriga para cima. Outra ocasião realmente indaguei-me se o colega não tivesse morrido durante o sono. Somente depois de observar bem de perto, percebi uma leve respiração que fazia sua protuberante barriga subir e descer suavemente.

Minhas memórias acadêmicas seriam triviais se apenas se detivessem ao preâmbulo descrito, com aulas enfadonhas, professores rancorosos, prédios grotescos e alunos solitários. É como dizem, sempre consideramos algo ruim até realmente presenciar o dantesco. Aquela seria mais uma noite sem luar, fria como a pedra, sobretudo com os ventos espectrais que banhavam a colina da moradia de estudantes, fazendo um estranho som nas janelas de madeira envelhecidas. Era comum faltar luz na moradia, eu já permanecia deitado, com duas velas acesas no criado-mudo ao meu lado. Lia o conto William Wilson e já me preparava para apagar o fogo quando Gomes, que já dormia há poucas horas, soltou um respiro profundo e assustador, produzindo um som quase inaudível, porém monstruoso. Nada também que me fizesse estremecer, pois era apenas um suspiro. Somente lembrei-me do detalhe incomum, já que o amigo nunca manifestara o menor movimento durante a noite, após o inominável ocorrido. A noite que destruiu os meus nervos e que serviria de divisor de águas entre um jovem melancólico comum e um adulto atormentado pelas agruras das sombras.

Tudo que me lembro dessa noite foi de apagar as velas, deixar Poe nos pés da cama e literalmente apagar num sono íntimo, sem sonhos, sem barulhos, apenas o vento, que logo findou também, prevalecendo o a mudez absoluta. Todos sabem que o sono vai atingindo estágios mais profundos no decorrer da noite, chegando ao abismo da quietude por volta das três e meia, a hora mais silenciosa da madrugada. Exatamente no momento mais sereno da noite, meu sono foi invadido por um urro demoníaco, um grito de horror, de alguém que sofresse a tortura mais pavorosa. O grito continuava, enquanto eu saia da profundidade da inconsciência e mergulhava de vez no pânico desproporcional. Procurando de forma desmedida encontrar o dono dos berros de terror, imediatamente comecei a gemer de terror, ao ver que o monstro, dono do uivo lancinante era ninguém menos que meu parceiro de quarto, Gomes.

Não sei bem explicar quanto tempo se passou entre o momento do primeiro grito até o instante que me dei conta que tudo não passava de um pesadelo de meu colega. Mas posso afirmar, sem demora, foram os segundos mais horríveis que meu pobre espírito fraco já teve o dissabor de experimentar. Seus gritos não eram de uma pessoa normal que sofre com um sonho ruim, mais se aproximava de um lamento louco de uma criatura monstruosa presente nos livros. Ou um devaneio de quem está à beira da pior morte que se possa imaginar. De toda forma, não havia mundo palavras suficientes para descrever o dilúvio de sentimentos ruins que se apossou de mim.

Levantei-me imediatamente e, fora do estado normal, sacudi o colega, imaginando que ele estivesse no meio de um forte ataque de nervos. Qual foi minha surpresa quando, aos poucos, Gomes foi despertando serenamente de seus sonhos fantásticos. A princípio, sequer entendeu o motivo da minha presença em sua cama, ali, segurando vigorosamente seus braços. Após uma explicação confusa de minha parte, ele finalmente deu indícios de saber do que se tratava. Permaneceu um momento quieto, depois finalmente explanou:

- Eu pensei que era culpa da minha casa, da presença de meus pais.

- Como?

- Desculpe-me, eu deveria ter avisado logo no primeiro dia. Mas as noites foram passando e, como não houve nenhum incidente, achei realmente que a culpa era do ambiente onde eu vivia, causando-me pesadelos horríveis.

Ainda em choque e, embora estivesse recuperando minha respiração natural, iria indagá-lo sobre a desproporcional agonia de seus gritos, quando ouvimos numerosas vozes no corredor. Saímos os dois assustados do quarto e nos deparamos com Xavier, que vinha lívido, tropeçando entre os outros estudantes, que permaneciam tão amedrontados quanto ele.

- Viu o que houve? Perguntou confuso, olhando para todos os lados.

- Não sabemos. Respondi olhando para Gomes, que parecia não entender direito o motivo de todos os alunos transitarem aturdidos pelo corredor, transformado, em plena madrugada, em um salão assustado.

As vozes se confundiam em um pandemônio total. Mas uma frase se destacava diante das falas entrecortadas: os gritos! Os gritos horríveis!

- Só pode ser alguém morrendo, continuou Xavier, era um grito de alguém em perigo! O Campus inteiro deve ter ouvido e até a cidade, se duvidar.

Sua fala, apesar de emotiva, transmitia a verdade, ninguém que estivesse presente naqueles sete andares da moradia duvidaria que o grito pudesse ser ouvido da cidade. A procura continuava, queriam saber de onde vinha semelhante e sinistro uivo que amedrontou todo o castelo. Lancei um olhar inquiridor para Gomes, que me suplicava com seus olhos apavorados diante da possibilidade de ser descoberto. Cheguei a ter pena dele, vestido como uma criança grande, de macacão listrado, apertando as mãos em prece para que eu não o apontasse. Decidi manter o segredo, fora apenas um incidente, logo estaria tudo esquecido.

No dia seguinte, a orla de zumbis arruinados marchava em direção ao centenário edifício de estudos, vencidos pela fadiga, pois ninguém que tivesse os nervos no lugar conseguiria dormir depois de tal tragédia teatral apresentada na hora mais silenciosa da madrugada. Apenas uma pessoa dormiu naquela noite, o Borges. A entrega aos estudos era fastidiosa e durava todo o dia. Lembro-me de ver alguns alunos estirados à grama buscando um leve devaneio em meio daquela tarde invernal. Pelos corredores, as fotos penduradas de professores cadáveres pareciam ganhar novos contornos de zombaria. Ao caminhar pelas árvores barulhentas a caminho da colina do castelo no final da tarde, senti que o anormal havia me conjurado durante todo o dia.

Permaneci ocupado com um grosso e antigo livro de anatomia até a noite alta, quando chegou do jantar meu colega de quarto. Parecia bem, pela sua fisionomia disposta. Apesar de todo o nervosismo passado, a intensidade do dia me fizera amenizar as lembranças provocadas pelos urros da madrugada passada. Pensando bem, diante do fato, que nada tem de extraordinário, senti-me até mesmo ridículo por ter dado meu estado de nervos tão facilmente à trama quase infantil. Cheguei a quase perdoar meu colega de quarto e resolvi novamente tocar no assunto de maneira mais leve.

- Que susto! Admiti. Desde quando você tem esses sonhos?

- Na verdade, disse Gomes após uma pequena pausa de meditação, nunca lembro dos sonhos nem dos gritos, apenas sofro pelo estado que encontro as pessoas quando acordo. Minha irmã Gardênia precisou ser internada em uma clínica psiquiátrica após uma de minhas tantas crises. Coitada, foi levada de casa pela manhã em estado de choque.

Eu observava o colega ali, com suas mãos rechonchudas segurando seu travesseiro, sentado de maneira infantil, como um completo bebê gigante, e realmente senti pena dele.

- Tudo começou quando tive um acidente na infância, cai de uma mangueira e bati a cabeça, após esse episódio, começaram os gritos. Minha ama-seca demitiu-se após a primeira noite de crise. Meu irmão mais velho depois me disse que ela preferiria trabalhar em um manicômio ao cuidar de mim. O tempo foi passando, as crises diminuindo, e realmente chegou um momento em que apenas ocorriam esses fatos após uma alimentação pesada, como é o caso da macarronada de minha mãe.

Gomes falava, enquanto eu observava suas mãos gordinhas e vermelhas espremerem o travesseiro. Ele se sentia apreensivo, até um pouco desesperado, e continuou:

- Peço, amigo. Pela primeira vez posso ter uma vida normal longe dos olhos de meus pais. Não conte para ninguém que fui eu. Não saberia lidar com mais essa situação constrangedora em minha vida.

Sua fala era entrecortada, cheia de pudores. Parecia sincero diante da súplica. Acalmei-o, prometendo não falar. Afinal, quem nunca sofreu um ato vergonhoso? O caso agora era de se esquecer. E foi realmente o que minha mente tentou fazer ao fechar os olhos, desvencilhando-se dos ecos insanos que visitavam meus pensamentos. Levou um tempo até o castelo, de uma forma geral, cair nos silêncios do sono.

Os dias foram passando, sem grandes novidades, aulas enfadonhas, uma legião de jovens desperdiçando energia em salas velhas com cheiros de madeira podre. Professores sádicos expondo suas diagramações intermináveis. Tudo normal. Não houve perturbação até a segunda noite fatídica em que, após uma breve leitura, adormeci antes mesmo de Gomes entrar no quarto. Era uma madrugada fria, enredada de sonhos glaciais, distantes da família e dos amigos. Até os ratos inquiridores estavam reclusos em suas fendas. Os morcegos que rodeavam pela pequena praça arborizada em frente ao castelo pareciam não ter mais atividades no momento mais silencioso da penumbra noturna. Por mais que vente, ou que exista algum grupo de estudantes que prolongue um pouco mais suas conversas ritmadas com violões em roda, por mais que haja barulhos noturnos, sempre existe um momento no meio da noite em que impera o silêncio completo, a total tranquilidade que antecede o estampido, o estrondo. É a calmaria que antecede a tempestade.

O êxtase que antecede o horror, o inimaginável, o frenético que faz estremecer implodiu em um profundo e agudo grito que ascendeu à escuridão. Dessa vez muito pior que o primeiro. Um pavor fatal tomou-me como uma erupção violenta. Não paulatinamente, como quem acorda aos poucos ao ser chamado, mas como alguém que cai de uma cama onde não há chão. A orquestra de sons fulminantes me atingiu, fez-me por impulso pular do leito. Gomes brandia sua ópera dos horrores, gritando frases monstruosas:

- Não me mate! Não me mate! Por favor! Socorro! Socorro!

A aberração permaneceu imersa no sonho ruim, enquanto o castelo novamente acordava tétrico. Aos poucos tentei acalmar o colega, que lentamente despertava de sua treva. Novamente não se lembrava de nada. Vozes nos corredores denunciavam a procura à vítima que estava sendo atacada. Fiquei diante da porta olhando aterrorizado para Gomes, que estranhamente lançava um olhar sinistro para mim, substituindo-o por outro, mais calmo, aos poucos entendendo o que ocorrera.

O castelo permanecia em alvoroço, alguns poderiam tirar risos da situação inusitada, entretanto, quem esteve lá naquela noite há mais de quarenta anos, saberá dizer o quanto aqueles gritos atormentavam qualquer humor. Ao abrir a porta, a situação permanecia a mesma de poucos dias atrás, o corredor estava infestado de alunos que mais pareciam formigas acuadas frente à chuva. Todos investigavam a natureza dos urros malditos que aterrorizaram a moradia estudantil, com exceção de um aluno, encostado ao lado do extintor de incêndio, do outro lado do corredor, olhando fixamente para mim, era o Xavier. Era evidente que ele sabia de onde vinham os gritos. Seu rosto transmitia, além do pânico natural de ser despertado por uma avalanche de horror, uma profunda certeza de que os gritos vinham do meu quarto.

Supliquei-lhe com o olhar para que mantivesse nosso segredo, parece que Xavier entendeu minha consternação. Gomes estava mais assustado com o alvoroço do que com seus próprios desalentos. Aos poucos o corredor se esvaziou e o silêncio voltou a imperar diante da noite escura e fria. No dia seguinte fui direto à secretaria da universidade tentar mudar de quarto. Solicitei, pedi, implorei sem sucesso. Não havia possibilidades de mudar, não pelo menos até o próximo semestre. Não aguentaria tanto, meus nervos não são de ferro! Parei no jardim em frente ao prédio de medicina, olhando para o alto da colina, onde ficava ao longe o castelo, agora de horrores, enquanto alunos passavam por mim com as faces mórbidas da falta do sono natural, pensei, quando será a próxima?

A resposta veio em breve, tão logo que anoiteceu. Meu espírito, transbordado de cansaço dormia profundamente quando, de súbito, os corredores ouviram o urro mortal novamente. Choros e profusões de gemidos adornavam as escadarias da moradia, após alguns minutos de pânico, muitos alunos já se encontravam no térreo, em profunda discussão acalorada diante do fato que já enlouquecia a todos. Jorge, do curso de administração e também capitão do time de futebol do campus, pedia a cabeça do aluno que estava deixando todo mundo louco. Não entendo como, mas imediatamente apareceram alguns outros alunos do time com tochas de acampamento acesas, formando um círculo flamejante em volta da discussão. Algumas acusações infundadas, os mais exaltados empurravam-se e quase se iniciou uma briga generalizada. Xavier me fitava com ódio, esperando que eu mesmo me entregasse, mas não poderia de forma alguma levar a culpa por um desvairado imbecil. Fiquei quieto, Xavier também, talvez por instinto, talvez por medo de ser visto como um dedo duro. Quase que ao mesmo tempo, nós dois olhamos para o sétimo andar do castelo, lá estava o Gomes, com seu olhar bobo, bestial. Não deu pra enxergar direito, mas parecia até que ele sorria.

As semanas se prolongavam ao passo que, quem me observasse, facilmente encontraria o caos em meu espírito em frangalhos. Já não havia discernimento em mim, apenas o esgotamento indescritível. Fisicamente acabado, psicologicamente demolido. Os gritos permaneciam, cada vez piores. O colega berrava como um condenado caindo de um abismo. A falta de sono provoca destruição em qualquer mente. Meu rendimento e notas ficaram comprometidos. Emagreci consideravelmente, até tentava me alimentar, mas quando a náusea vinha, devolvia todo meu almoço. Dormia muito pouco e quando, enfim, a exaustão vencia o horror, desmaiava na mais profunda agonia de sonhos ruins. A suprema sandice de Gomes me surpreendia. Dormia bem, comia com grande apetite, parecia o único bem disposto ao sair pela manhã para as aulas. Outra pessoa contando, diria até que ele estivesse fingindo os gritos, entretanto, qualquer aluno que presenciara aqueles acontecimentos, refutaria imediatamente esta hipótese. Ninguém produziria tal lancinante som se não estivesse mergulhado profundamente nos âmagos do subconsciente.

Estava eu disposto a acabar com aquele tormento em forma de guinchos noturnos. O alarido internalizara-se nas mentes cansadas dos estudantes. Não havia mais sono no castelo. Os protestos, que no início eram acalorados, deram lugar a uma queixa esgotada. Somente Gomes permanecia ereto, com seu inocente olhar, um paspalhão sorrindo para as pessoas, como se não houvesse nada para dizer. E os jovens, incapazes de encontrar no simplório e rechonchudo aluno o motivo de todo o estúrdio que os bramidos causavam, permaneciam reféns do seu sono demoníaco.

Já estávamos em época de provas bimestrais e os gritos semanais já produziam lamentosos resultados. A orla de amargurados galgava pela alameda taciturna em direção ao castelo desejando estar longe de sua pungente maldição. Quem pode, transferiu-se para a cidade, alocando-se nas poucas repúblicas estudantis que na época existiam na cidade. Embora essa mudança fosse completamente dificultosa, visto que Mata Cruzeiro distanciava-se pelo menos alguns quilômetros do Campus, tornando a vida do acadêmico uma diária peregrinação. Ainda assim, qualquer caminhada era preferível aos impactos cataclísmicos causados ao cérebro que estivesse sob provação dos alaridos notívagos. Com o tempo, passaram todos a desconfiar do meu quarto, sentia olhares rancorosos em minha direção. Também pudera, mentes tão geniosas, ainda que diante de grande pressão, encontrariam a origem dos sons mais cedo ou mais tarde. Era uma questão de tempo até sermos descobertos.

Continuei acompanhando o comportamento de Gomes quando acordado, sua tranquilidade beirava a sandice. Após confirmar minhas suspeitas de que nosso quarto fora descoberto, encontrei Xavier na entrada do Castelo. Jurou-me não ter dito nada, embora nem precisasse, bastou uma rápida investigação por parte de Jorge e o resto do time, eles passaram algumas noites em claro escondidos, nos corredores para encontrar o dono dos uivos. Xavier não escondia o incômodo em estar ali, em uma conversa a sós comigo. Olhava para os lados, demonstrando apoquentação. Seu desassossego chegava a transbordar em suor que descia pela sua testa em pleno álgido inverno. Disse Xavier que já era de conhecimento geral que os gritos vinham do meu quarto, e que, dado o estado de nervos dos moradores, era de se esperar alguma atitude que poderia beirar a agressividade. Finalizou pedindo que eu tivesse cuidado. Iria ainda pedir mais detalhes, quando ouvi um grito vindo do alto do prédio, chamavam pelo nome de Xavier, mal deu tempo de meu amigo olhar para o alto e senti duas mãos me empurrando ao chão. Quase imediatamente à minha queda, acompanhei com horror uma grande pedra, que fora arremessada dos andares superiores, se espatifar com grande impacto, exatamente onde eu estivera há poucos milésimos de segundos. No mesmo instante procurei buscar com os olhos o autor do atentado. Provavelmente o impacto esmagaria minha cabeça. Fiquei em pânico com o atentado, somente depois de alguns minutos que percebi que Xavier tivera tempo de olhar para o alto e me empurrar ao mesmo tempo, saindo da linha fatal.

Era demais! Estava arriscando minha própria integridade acobertando um louco que sequer conhecia direito. Que sabia eu dele? Viera mesmo do Rio de Janeiro? Com certeza não fora Gomes o autor do atentado. Vi o mesmo subindo a alameda com seu olhar cansado, logo após o fato que me encheu de horror. Continuava tranquilo, acho até que nem percebeu os olhares impetuosos em sua direção. Após acomodar-me, pensei na gravidade de minha situação. Estava decidido a esquecer e perdoar a tentativa de assassinato que eu sofrera. Qualquer um fora de sua sanidade tentaria tal coisa. Observando o colega de quarto em sua cama, dormindo mortalmente, decidi quais seriam minhas atitudes tão logo que acordasse no dia seguinte. Primeiro exporia a situação à reitoria e tão breve falaria com Jorge, denunciando meu colega de quarto. Adormeci ensaiando as frases que usaria no dia seguinte, em total ansiedade de tirar esse peso desgraçado de minha mente.

Não haveria em mim tanta culpa e terror se naquele mesmo momento eu tivesse feito minhas malas e deixado o Castelo para sempre. Tento reconstituir em minha mente a ordem do que realmente aconteceu no quarto 706 da moradia estudantil da Universidade Federal de Mata Cruzeiro. Dormia um sono angustiante, lembro eu, quando novamente fui acordado de forma abrupta pelo alucinado Gomes, que demonstrava sua monstruosidade de uma forma inédita, com possessos urros que me fizeram acordar e pular para próximo à janela. A aberração ainda levantou em pleno sono, emitindo guinchos animalescos, com os braços esticados, vindo em minha direção, buscando meu pescoço. Tentei segurar suas garras, que agora mais pareciam tentáculos de um ser das profundezas, que continuava a gritar frases desconexas. Tentava sem sucesso afastar o sonâmbulo, quando sem querer a velha janela abriu, deixando entrar um vento gelado entre os lutadores noturnos.

Na minha luta com Gomes, já estava metade de meu corpo para fora da janela, enquanto tinha meu pescoço violado pelas mãos gorduchas do rival. Tentando dominar o horror, fiz um movimento rápido, invertendo as posições, agora tendo meu oponente em minhas mãos, pendendo seu dorso pela janela afora. Seus olhos brilharam no vértice do parapeito antes de soltar uma gargalhada furiosa. Tinha ele pendurado numa extrema dificuldade, enquanto os guinchos eram ouvidos pela janela de nosso quarto. Já batiam impacientemente à nossa porta, forçando a fechadura. Dispunha de pouco tempo, logo o dormitório estaria inundado de alunos. Os gritos continuavam, agora agregados a risos maquiavélicos. Só deus sabe o que ocorre em uma mente perturbada momentos antes do crime. Era preciso, todos sabiam. Era necessário tomar aquela atitude. Em um rápido e sólido movimento, empurrei Gomes da janela.

Seu corpo desceu os sete andares olhando fixamente para mim e rindo, um riso assombroso que durou menos de dois segundos, embora tenha durado uma eternidade em minha mente e lembrança. Tombou Gomes sobre o telhado da guarita, destruindo-o completamente, ainda avistei seu torso entre as cadeiras e mesas quebradas dentro da salinha de guarda. Imediatamente ouvi um estrondo, vi a porta ser derrubada e uma porção de jovens entrando no meu aposento. Um medo tétrico tomou conta de mim, enquanto passava sofregamente por eles a caminho do corredor. Precisava fugir, sair dali, esquivar-me do crime tão horrendo que acabara de cometer. Jorge e sua turma até tentaram me segurar sem sucesso, estava eu tomado por tamanha cólera, que os colegas sentiram temor diante das chamas que eu transmitia em meu olhar.

Saí do castelo sem olhar para o cadáver dentro da guarita e corri para a floresta escura que circundava o campus. Não sei bem dizer o que se passou nessas poucas horas que separaram o terrível assassinato cometido e o amanhecer. Mas confesso, foi a pior noite que um ser humano poderia ter. Vozes horripilantes em minha mente aglutinaram-se ao riso de Gomes enquanto descia os pavimentos rumo ao aniquilamento. De toda forma, sua voz estava agora calada para sempre, ao menos na realidade, pois na minha existência essa voz me perturbaria em todos os meus sonhos.

Quando dei por mim, estava em frente da secretaria, todo sujo e rasgado, vítima de minha própria loucura vagando pelas árvores obscuras. Alguns alunos que vinham para as primeiras aulas me olhavam com repugnância, no entanto, não chegavam perto de mim. Na certa todos já sabiam da morte de meu colega de quarto, e, consequentemente tinham certeza do meu crime. Estava disposto, iria me entregar, confessar o crime barbado e covarde de matar um companheiro de quarto, e pior, uma pessoa doente, que necessitava de cuidados.

Envergonhado, entrei no escritório sem me importar com todo o desalinho:

- Por favor, disse emocionado, preciso relatar um crime!

- O que houve? Perguntou assustada a assistente.

- Meu colega de quarto, o Gomes. Houve uma luta, foi horrível! Meu Deus! Tenha piedade de mim. Ele estava me enforcando!

- Acalme-se, o que você está dizendo não tem sentido! Respondeu-me.

- Eu o joguei! Eu o joguei! Os gritos! Ninguém mais suportava os gritos!

A funcionária me olhava com os olhos estalados, demonstrando uma profunda confusão. Outros funcionários chegaram, a moça continuou:

- Você deve estar sofrendo uma carga psicológica muito grande por conta dos estudos. Aconselho-o a procurar ajuda médica.

- Você que não está entendendo. Essa noite matei Gomes, disse com extrema angústia, meu colega de quarto. O empurrei pela janela, ele está lá, morto, dentro da guarita!

- Isso que não entendemos. Quem é Gomes? O senhor está sozinho no dormitório 706.

- Que absurdo! Isso não faz sentido! Vocês estão enganados. Meu colega de quarto, Gomes. Chegou do Rio de Janeiro no mesmo dia em que fiz a matrícula. Ele tem problemas, os gritos noturnos, ele queria me matar. Eu tentei me defender...

Saí correndo da secretaria, subindo a alameda em direção ao castelo. Atrás de mim, vinham dois funcionários, o secretário acadêmico que me trouxera a primeira vez, e um segurança. Cheguei à pequena praça em frente ao prédio e parei petrificado. Onde estava o cadáver de Gomes? Oras, o telhado fora consertado, só pode! Nenhum sinal de sangue, nada. Tudo como sempre estivera.

Um topor tomou conta de mim, ali, parado diante do castelo naquela manhã horrível. Todo sujo e machucado por correr como um louco dentro da mata. Uma avalanche de imagens me invadiu, como se eu estivesse acordando de um imenso e triste pesadelo. Imagens de minha pobre irmã sendo levada ao sanatório. Imagens de minhas mãos gordinhas quando era criança. Da terrível queda da árvore. De como era importante sair da casa de meus pais, fulminados por meus gritos noturnos.

Marcelo Fávaro
Enviado por Marcelo Fávaro em 02/09/2019
Código do texto: T6735299
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.