Saci Pererê - O lado sombrio da lenda
Há um tênue limite entre o misterioso e o anormal. Existem os que defendam que o mistério se extingue quando é revelado, podendo tornar-se sobrenatural ou simplesmente vulgar, dadas as circunstâncias. O anormal incendeia todo o ambiente da mais pura falta de lógica, podendo desenhar situações sombrias e inquietantes.
Os dias nessa prisão são perturbadores, e confesso que, tivesse coragem, abreviaria meu sofrimento agora mesmo.
Somente quem se deparou com essas situações pode afirmar com propriedade, quais são as consequências psicológicas deixadas após experiências fantásticas com seres de outro mundo. No meu caso, bem... é melhor que vocês mesmos tirem suas conclusões.
Hoje em dia ele é uma figura festejada em nosso folclore e até já figura no calendário com seu próprio dia de comemoração. Mas, para os milhares que, assim como eu, vieram de outras épocas e foram criados na roça, a situação é bem diferente. Era comum ouvirmos as mais diversas histórias sobre ele nas noites de seresta em volta da fogueira, quando padrinho nhô Eleutério vinha de suas terras trazer mandioca mansa, milho branco pra fazer canjica, couve coração-de-boi, manga espada, jabuticaba, uva merlot pra fazer vinho. Enfim, tudo o que havia em seu sítio, mas que não plantávamos aqui.
Em nossa roça era comum dar mamão, banana, goiaba vermelha, cenoura, quiabo, abóbora, além das hortaliças, como o espinafre, hortelã, coentro, salsa... mas a grande plantação de meu pai era mesmo o canavial. Com a crise do petróleo de 73 e o programa de incentivo ao álcool, bem, nossa família investiu tudo na produção de cana-de-açúcar.
Mas, bem que o avô de meu pai, assim como outros antigos diziam, alertou-me.
- Rapaz, já avisei o Geraldo, mas ele não deu ouvido. Esse tipo de plantação aqui nessas bandas não dá certo não. Disse meu bisavô, enquanto enrolava um naco de fumo com uma palha seca. Canavial é chamativo pro matita.
- Essas coisas não existem, meu velho.
- Qual o quê? Pois plante e verá. Disse o senhor, levando-se com difuldades.
As histórias que ouvíamos sobre o saci eram bem heterogêneas e beiravam a inocência. Nho Bento Ferreira contava que o negrinho era um ser brincalhão. Que não tivesse medo, pois apenas gostava de esconder as ferramentas, trocar as sementes, o sal pelo açúcar, irritar os animais, fazendo-lhe tranças, coisas do tipo. Já meu bisavô se irritava quando alguém, em uma das noites frias, quando ficávamos em volta do fogo assando milho, puxava alguma história do saçurá. O velho dava uma grande baforada em seu cachimbo demonstrado insatisfação, pegava seu chapéu e ia dormir.
De todos os contadores de histórias e causos desse interior gigante sem fim, era do compadre Bismarque que eu mais sentia medo em minha meninice. Bismarque tinha um olhar diferente, meio que de lado, puxando a alma da gente, parecia sempre desconfiado, pronto para qualquer adversidade. E nunca, nunca sentava em banco. Quando vinha pra alguma seresta em volta do fogo, ficava acocorado como um índio, pronto para um bote, como se pudesse a qualquer momento sair em disparada. Era o Bismarque tropeiro, fazia a antigo caminho das tropas, uma velha rota que existia ligando o Rio Grande do Sul à Capitania de São Paulo. Dissera ter visto de tudo nessa vida de andanças. Desde o bebê diabo, a mulher na estrada, a cobra que roubava leite, o cachorro de Dom Bosco, os meninos verdes, o demônio dentro da garrafa... mas nada, nada havia sido de mais hediondo, segundo o que dizia Bismarque, do que as aparições do Saci-pererê.
O tropeiro viajante, quando lhe perguntavam sobre o negro, mudava seu semblante imediatamente. Ficava alguns minutos em silêncio, como se soubesse ter poder sobre sua plateia. Preparava um cigarro de palha enquanto nos olhava com aquele olhar desconfiado, desafiador. E então, calmamente começava a falar. E o que dizia era monstruoso e aterrador. Alguns detalhes o homem só revelava quando não havia mulheres em volta. Geralmente no fim da noite, quando nossa mãe e as tias já tinham se recolhido. E assim crescemos, ouvindo cheio de pavor as maldades cometidas pelo selvagem.
O terror, a tortura e a destruição de minha família começaram quando o canavial plantado ultrapassou a altura de um adulto, tornando-se a vista intransponível em relação ao outro lado do cultivo. Meu bisavô a propósito da decisão de meu pai pouco saía de seu quarto. Mudou seus costumes, deixou de comparecer às noites enluaradas com a família em volta da fogueira.
A princípio considerei que o quase centenário homem estivesse fora de seu juízo normal. Chegamos realmente a caçoar de sua ojeriza, deixando-o ainda mais possesso. Quem mais zombeteou meu bisavô foi seu José Geraldo Pereira, meu pai. Chegou um dia a voltar gritando do canavial afirmando que vira o Pererê na mata. Seu avô tremeu de ansiedade. Somente quando o velho foi buscar o bacamarte para ir atrás da entidade é que meu pai revelou a brincadeira. Riu até não poder mais, chegando a rolar no chão diante do ancião humilhado.
- Tome cuidado, Zé. Disse meu bisavô entrando para a casa, você pode morrer assim.
De fato, a partir de então algumas anormalidades começaram a ser observadas. Em uma manhã de agosto, se bem me lembro, meu pai cuspiu todo o café que havia virado de um gole. Imediatamente saiu gritando pelo terraço.
- Quem foi o filho de uma égua que trocou o sal pelo açúcar no pote?
Chegou a acusar o avô, que sequer havia saído da cama àquelas horas.
- Quer troçar comigo, velho? Pois agora eu quem quero me encontrar com esse maldito! O senhor já não o viu? Mande ele vir tirar as contas com José Geraldo Pereira.
Certa vez o Galdino, nosso cavalo, sumiu. Ficou o dia todo desaparecido. Não estava na pinguela, nem próximo ao poço e tampouco na estrada. Ficamos bastante preocupados, haja visto que o nosso animal nunca tivera a mania de tentar fugir. Era calmo como uma manhã de Sol.
Ao final da tarde enxergamos sua silhueta vindo lá da estrada em disparada total. Eu corri para abrir o portão. Voltamos todos a frente da enorme varanda que circundava a casa para recepcioná-lo. Qual não foi nosso pavor, quando, em frente a todos, observamos um cavalo em total esgotamento de suas forças, chegar até a frente de meu pai, lançar-lhe um olhar desesperador, para logo em seguida desabar mortalmente.
Nho Severiano, que por um acaso passara o dia em nossa morada, entendedor de cavalos que era, examinou o bicho.
- Esse pingo morreu de cansaço. Pode escrever. Alguém deve de tê-lo feito correr por horas seguidas.
Meu bisavô apenas balançou a cabeça do alto da varanda, apagou seu cigarro de palha e desapareceu para seu quarto.
Foi mais ou menos por essas épocas que meu pai começou a ficar estranho. Sua intemperança foi tornando-o irritadiço. Ele que sempre adorava sua criação, agora agia com indiferença às nossas crias. Permanecia a maior parte do tempo no canavial, ora pitando, ora apenas matutando, deixamos de ver meu pai. Apenas saía de lá para dormir. Apesar que, lembrando-me bem, houve noites em que ele simplesmente não apareceu. E quando vinha, mantinha sua fronte enrugada, como que preocupado, sentindo uma angústia lhe tirar a alma.
Pouco comia e então, diante de suas mudanças, foi emagrecendo. Sua face ficou ossuda, os olhos fundos e a boca cheia de rachaduras nos lábios. Passou a andar com sua carabina, coisa que não era de seu costume. Parecia procurar por algo.
Espero que todos entendam. Eu era muito jovem. Nasciam os primeiros pelos em meu rosto, já queimado de Sol. Nossa vida, apesar de simples, era digna e muito satisfatória até aquele dia, aos meus doze anos quando, no meio da tarde, ouviu-se um tiro vindo do canavial. Assustei-me diante da quebra momentânea da paz naquele ponto esquecido do mundo. Precipitei-me rapidamente pela plantação, com um péssimo pressentimento diante do espírito da perversidade que rondava nossa casa. A escuridão se fez pela densidade das canas, deixando-me desnorteado diante da ausência completa da luz solar, que não conseguia penetrar pelo negrume das plantas. Finalmente ouvi gritos do meu velho pai, gritos de total desespero, da lancinante dor que parecia sentir. Durante anos perseguiram-me esses urros de tortura diabólica que ele sofreu.
Finalmente consegui encontrar a clareira onde tudo ocorreu. É inenarrável a cena que me esperava ali, no meio do canavial. Deitado ao chão com o corpo destruído pelos golpes que levara, fazia os restos de meu pobre pai, fatalmente golpeado, cheio de fortes hematomas, vitimado pela maldição funesta do ser monstruoso da plantação.
Um ódio terrível tomou conta de minha existência, quando o vi pela primeira vez a entidade horrenda que liquidou meu amado genitor. Lá estava ele, impávido, equilibrando-se em seu único membro inferior. Ostentando sua compleição física imponente, forte como um touro, com sua tez negra como a noite e dura como o mais espesso couro. Sem pelos no corpo, demonstrando que a evolução humana demoraria eons ainda para chegar a esse estado de plenitude e integridade. Seu olhar, negro e fosco como a treva, transmitia a maldade atroz. Maligno e abominável era seu sorriso que, de lado segurava quase na ponta, um malcheiroso cachimbo aceso. Seu único pé era uma garra grotesca. Suas mãos eram gigantescas e potentes como uma máquina de moer carne.
A vigorosa criatura permanecia parada me observando, enquanto ria, produzindo em mim um assombro gigantesco. Segurava um pedaço de pau manchado de sangue. Em sua cabeça, o famigerado gorro que lhe concede poderes. A brutalidade de suas feições denotavam profunda maldade, ridicularizando minha dor. Imediatamente avancei sobre sua montanha de músculos, golpeando-o com toda minha fúria. Seu escárnio aumentava na medida em que meus golpes em nada o afetavam.
Quando, enfim, cansou de meus golpes, lançou-me facilmente ao chão fazendo-me cócegas. A princípio tentei me defender, mas logo fui perdendo a força pois os risos que me foram provocados fizeram-me perder o folego e então, logo a minha vista se turvou e por um instante pensei que fosse morrer com falta de ar.
E realmente o ser mitológico estava disposto a me sufocar quando, do meio da plantação, meu bisavô apareceu, pronto para enfrentar seu antigo desafeto.
- Saçura, Sarerê, Siriri, Trique, Tapererê. Chegou a sua vez. Disse o velho, desafiando a criatura.
O saci sorriu, resolveu demonstrar um pouco de seu poder, transformando-se em um redemoinho.
Meu avô não pareceu impressionado com a feita do inimigo, e imediatamente lançou sobre ele uma peneira, que vinha segurando escondido. O simples objeto prendeu o ser das matas no mesmo instante, deixando-o à mercê de meu avô, que retirou uma garrafa de vidro da sacola e caiu sobre a peneira, guardando o saci dentro do recipiente.
- Filho do mal e da travessura! Achou que ia me ganhar? Não dessa vez, filhote do cão. Deu sorte com meu neto, homem teimoso, desconhecedor dos costumes. Mas de mim não... Tapererê, Siriri, Trique. Vosmercê vai agora ficar aí quietinho nessa garrafa pelo tempo que eu viver. Disse meu bisavô, retirando o gorro da anomalia e fechando novamente a tampa com rapidez.
O Saci passou a noite gritando, berrando, proferindo insultos e palavrões. Enquanto a gente chorava nosso morto e preparava o seu velório. Bem, as coisas na roça costumam ser diferentes. Há um respeito maior com esses acontecimentos. Portanto, vieram pessoas de todos os lugares fazer suas últimas homenagens ao meu velho pai.
A princípio, meu bisavô mandou derrubar todo canavial. Eu queria mesmo era ter idade para sumir dali e nunca mais pisar numa roça. Entretanto, ainda ficaria naquelas terras pelo menos até ganhar idade e vir morar na cidade grande.
A vida seguiu. Ganhei minha vida de forma simples e tentei esquecer a história da terrível morte de meu pai. Às vezes, sozinho no quarto alugado no centro da cidade, a sua imagem, todo machucado me vinha à mente. Mas eu ainda tinha o conforto em saber que ele ficara preso na garrafa de meu bisavô. Ficara.
Segunda-feira recebi um telefone de minha cidade natal. Era a minha tia. Em completo pesar. Avisando-me que meu bisavô acabara de falecer enquanto dormia. Sete anos após o incidente. Em sua mão, jazia a garrafa utilizada de moradia para o seu Saci-pererê. Completamente vazia.
O pânico tomou conta de mim. Já era difícil encontrar paz com ele preso, imagine agora sem saber ao certo seu paradeiro.
Os dias que se seguiram tornaram-se sombrios. Comecei a ter medo de andar nas ruas. Senti que vinha sendo perseguido. Uma angústia antiga voltava a me acompanhar. Logo pedi demissão em meu trabalho. Teria ele poderes na cidade, longe do mato?
A dúvida permaneceu até a manhã de ontem, quando senti o dissabor de sua presença, ao provar o gosto salgado tomando o café que eu mesmo preparei. Meus olhos escureceram diante de ódio terrível contra o monstro perseguidor. Era preciso voltar ao fatídico sítio de minha família. Meu espírito atormentado sequer percebeu as horas de estrada que separavam a cidade em que eu morava da roça onde vivi minha infância.
A fúria ensandecia meus olhos, que permaneciam em chamas, quando apavoradas, minhas tias me observaram derramando gasolina em todo o sítio. Disseram que eu falava coisas sem sentido, emitindo risos diabólicos e chamando por ele. A entidade. O Saci Pererê.
- Há, há, há! Não queria me ver? Pois aqui estou eu! Pronto para você, alma descarnada. Aleijado das trevas. Tu levaste meu pai, pois venha me levar também.
O que seguiu, foi a mais pura cena de horror presenciada. Tentaram me segurar sem sucesso, e todos puderam testemunhar o grande fogaréu que logo tomou conta de toda nossa propriedade, enquanto eu ria, ria porque sabia que ele estava lá, ria vendo toda a plantação, assim como a grande casa que fora de meu bisavô arder dantescamente.
O incêndio nos circundou, e logo observei com tamanho horror minhas pobres e velhas tias arderem junto de nossa história. No meio fogo, lá estava ele, o Saci. Sendo consumido pelo fogo que eu mesmo ateei.
E assim, pronto para morrer junto da lenda, desmaiei. Fui desperto somente no hospital e confesso que praguejei fortemente pelo fato de ser único ser vivo a ser poupado da terrível tragédia que acometeu minha família.
E agora, em uma cela fria e escura, passo meus dias e noites, atormentado por seus assovios monstruosos, ainda ouço os risos de escárnio e meu café, vez ou outra, vem salgado como a água do mar.