A Marcha da Morte
Tenso e angustiado, não conseguia dormir. Desisti, portanto, de tentar adormecer e resolvi realizar uma observação do que se passava em meu mundo interior, sem dúvida, intensamente caótico. Aos poucos, fui penetrando mais e mais nas sombras de minha psique, naquele umbral tenebroso e insolitamente desconhecido... Sim, desconhecido, pois nosso mundo psicológico, nossa psique ou nossa alma, como queiram os leitores, é zona de absoluto mistério... Digo que o homem, tão orgulhoso de seu “conhecimento” que, mesmo em termos exteriores, não é mais do que uma gota no oceano, nada sabe sobre si próprio... Nada sabe sobre o que realmente pensa, sobre o que realmente sente. Isso eu afirmo totalmente destituído de qualquer receio, pois naquela noite profunda, eu principiei meu terrível autoconhecimento e, conseqüentemente, conheci todo o diabólico funcionamento geral da psicologia humana...
Tudo era estranho e nebulosamente sobrenatural naquele universo dantesco em que mergulhava... eu submergia no mim-mesmo, no meu eu de horror e caos. Agora posso declarar, sem medo, que o ser humano já não me pode enganar com sua dúbia “sinceridade”, de minha boca poderão ouvir a recorrente frase: “eu os conheço muito bem e não confio no homem meu semelhante”; ou poderia, ainda me utilizar dos versos de Baudelaire: “ó falso, hipócrita leitor, meu igual, meu irmão”. Eu submergia em minha psique e em poucos segundos percebi o tagarelar e a gritaria insana de uma infinidade de entes, algo como seres perversos, em eterna, estéril e fatigante disputa por uma supremacia momentânea de minhas emoções e pensamentos. Nitidamente, eu “ouvia” berros, relinchos, grunhidos, frases absurdas e desconexas, que provinham ora de um lado, ora de outro, apresentando-se sob diversas e assustadoras vozes, ou estridentes, ou cavernosas, ou satanicamente infantis, ou de velhos decrépitos, ou de monstros mitológicos, ou de bruxas sádicas, ou de pseudo-anjos, ou de supostas fadas celestiais...
E todas aquelas vozes eram eu e, ao mesmo tempo, não eram, algumas eu conhecia, outras me eram absolutamente ignotas, personificando miseravelmente o universo de meus desejos, de minhas lembranças, de minhas saudades, de meus remorsos, minhas cobiças, minhas maldades, minhas vaidades, meus erros, minhas supostas grandiosidades e ações superiores... E então iniciei a perceber os rostos hediondos de todas as repulsivas hostes satânicas que interiormente dominavam e constituem o ego de todo e qualquer ser humano que sobrevive na degenerescência crepuscular deste planeta em morte...
O medonho desfile de rostos demoníacos parecia não ter fim, e todas as sensações, sentimentos e idéias próprias de cada personificação interior iam me assediando, na mente e no coração, conquanto paradoxalmente eu me questionava: quem sou eu? Como posso considerar-me um ser individual, de uma só unidade psicológica, se um batalhão de entidades contraditórias são as formadoras de minha vida interior? Como posso supor e afirmar perante toda a falsa e corrompida sociedade, todos iguais a mim, ou talvez ainda piores, que sou um individuo único e de constante e confiável comportamento, sem em um momento aprecio com ternura e noutro odeio com todas as forças a mesma pessoa? Se em um instante sinto-me alegre e confiante, em luminoso bem-estar, e noutro caio em negros abismos, considerando-me o mais infeliz e desgraçados dos homens? Como posso julgar-me alguém uno, se meus pensamentos e sentimentos nunca permanecem os mesmos por muito tempo? Se sou aquele que faço o que não quero e o que quero, não faço, impelido por forças irrevogáveis? E mais ainda: se nem ao menos consigo manter minha atenção em um único ponto por consecutivos minutos, pois inconscientemente sou invadido, contra a minha vontade, de forma implacável e inexorável, sem que eu tenha o mínimo controle sobre mim mesmo, por uma infinidade indomável de lembranças irrelacionáveis, de idéias desconexas e absurdas, de perturbadoras emoções integralmente discordantes dos propósitos a que intento sofrivelmente dirigir minha débil atenção. Algo que leitor algum poderá negar, e os desafio a tanto. Esse é o homem, essa é “a eterna contradição humana”, nas palavras de Machado de Assis.
Passados alguns instantes dessa abominável constatação, estando eu ainda semi-conscientemente submergido em meu inferno particular, algo de absolutamente terrível e inusitado começou a ocorrer comigo. Tive a brutal sensação de que aquelas entidades satânicas de minha psique, comuns a toda humanidade inconsciente, intentavam agora, não satisfeitas em possuir o controle de minhas emoções e idéias, assumir também meu aspecto físico, ou seja, a minha fisionomia. Levantei-me em pânico e dirigi-me a um espelho... Aterrado, tive a traumática visão de alguém que não era eu... um bicho, uma coisa de aspecto odioso e repelente, que insanamente assumira minhas feições! Tentando tranqüilizar-me, busquei observar com maior atenção aquilo que agora constituía monstruosamente o que então fora meu rosto, quando, para minha maior estupefação, o rosto modificou-se por completo, em uma assombrosa transformação... Prossegui na minha mórbida e masoquista observação, e uma série macabra e absurda de metamorfoses foi se realizando, e todas aquelas faces, muito diferentes uma das outras, era eu mesmo, eu as compreendi como personificações diabólicas do horror que de forma ostensiva ou latente sobrevive e procria em minha adoentada psique... E assim é com todos os meus irmãos “humanos”, que provavelmente ignoram a maior parte de todo esse nosso conflitante e perverso lado negro, causa indubitável de todo sofrimento e destruição. E agora constituíam-se em mim como nefastas densificações moleculares e ectoplasmáticas, obtendo poder de assumir minha aparência externa, embora eu não estivesse totalmente inconsciente, pois percebia e compreendia o ocorrido.
Não obstante, permanecessem as metamorfoses faciais, eu consegui manter-me calmo e, através da serena reflexão, questionava-me sobre o que seria a loucura, ou a psicose... E vi, como um relâmpago de intuição, que a esquizofrenia, por exemplo, era muito semelhante ao que eu passava, mas em um âmbito exclusivamente interno. Ou seja, eram aqueles seres demoníacos que, em um determinado instante, fortalecidos por diversas circunstâncias, alimentados pala energia anímica humana, obtêm o poder de dominar a mente do homem que parasitam, até que assumem a personalidade característica de algum ou de alguns diabos internos, e então dizemos: é um esquizofrênico!
No entanto, em um determinado momento, senti que as trágicas transformações pareciam ter finalmente cessado. Dirigi-me outra vez ao espelho e comprovei que, de fato, voltara ao meu estado normal, apresentando de novo minha face física comum. Todavia, era atormentado por vulcânicas oscilações e inquietações em meu espírito, algo que me impulsionava a abrir a porta da casa e, desvairadamente, entrar correndo no bosque que tinha seu início nos fundos do meu pátio. Alguma coisa se movia, em termos energéticos ou espirituais, no meu universo interior, era uma força e uma vontade que se apresentavam como dotadas de consciência, isto é, como sendo um intuito legitimamente meu, uma revolta profunda e sincera contra a totalidade daquele exército de bestas que infestavam minha torturada psique. Eu me sentia volitivamente poderoso e desloquei-me sem destino por entre o denso e enigmático ambiente da floresta, carregado de dramáticos incensos noturnos, das espessas sombras do mistério sentencioso... de fluídicos vapores espectrais oriundos da Alma do Cosmos... que secretamente falavam-me à intuição exacerbada. Foi nesse preciso instante, onde soavam mudos todos os sobrenaturais alarmes, que uma inefável melodia cantada por celestial voz feminina principiou a invadir toda a atmosfera do bosque... Era uma voz profundamente comovida, acompanhada por divina orquestra, cantando belíssimos poemas que eu nunca conhecera... A música e a poesia tomaram completamente todos meus pensamentos e sentimentos, em um inefável domínio sobre meu mundo psíquico, agora perfeitamente consciente e harmonioso, sem nenhuma espécie de conflito íntimo, que sei que adivinha de meu ser profundo, do âmago que não consigo conceituar.
Então, consecutivamente, senti uma espécie de estranho alívio orgânico-psíquico-espiritual, como se um terrível peso estivesse me abandonando. Olhei para trás e avistei um imenso rastro de um líquido negro e viscoso que, só então, verifiquei que manava dos meus poros epidérmicos. A negra viscosidade fluía copiosamente através de mim e, à medida que saía de meu corpo e espírito, percebi que aos poucos eu ia flutuando, ascendendo, à proporção que me sentia mais e mais leve, melífluo, alimentado sobre-humanamente pela indizível música e pela indefinível poesia... E assim fui... já se extinguia o líquido, as últimas gotas asquerosas pingavam de minha pele, até que se estancou definitivamente, e eu mergulhei nas notas e nos versos daquela feminina voz angelical, mergulhei e me diluí, tornei-me uno e indissociável daquelas artes magníficas, eu era elas, elas constituíam meu ser, e desapareci, aniquilando minha existência na dissolução pelo mistério infinito.
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