Reflexo do Mal

— Não posso fazer isso — eu disse.

Jack olhou para mim com certo desprezo, ele fazia isso quando alguém o decepcionava mas era incrível como sempre cobrava dos outros a coragem que não possuía. Já fazia algumas semanas que estávamos nesse dilema: “você deve destruí-lo”, “você fez aquele pedido”, ele insistia. Mas eu não acreditava que a causa dos nossos problemas estivesse na antiga casa da família Thompson.

Aquela sensação foi maravilhosa... eu comtemplei aquele reflexo e o que vi foi uma garota linda, perfeita! Eu sei que não há garotas perfeitas e que os filmes mentem; aquelas pessoas com cabelos bonitos e sorrisos resplandecentes... tudo mentira, puro marketing cruel.

— Você não percebe, Regina?

— O espelho não é o problema... — argumentei.

— Mas... e seus pesadelos? — Jack perguntou. — E a mulher que eu vi ontem à noite no cinema?

— É coisa da sua imaginação, Jack.

Nós saímos. Ele me olhou por alguns instantes e ficou ali junto ao grande carvalho. A casa parecia ainda mais assustadora a noite. Ninguém jamais entendeu o desaparecimento da família Thompson; o Xerife investigou durante duas semanas mas desistiu... não haviam provas de que algum crime houvesse acontecido. Talvez tivessem mudado, só isso.

— Você precisa parar com os filmes, cara! A gente se vê amanhã...

Jack acreditava no paranormal, ele comprava aquelas revistas com contos fantásticos e assustadores, ele usava fantasias extravagantes no dia das bruxas, ele realizava rituais de magia e tudo mais.

— Adeus — eu falei.

— Você sabe que estamos vivendo uma experiência paranormal. — Ele já estava a uma boa distância de mim. — Mas quando precisar estarei aqui. Eu também preciso de respostas.

Ele havia visto! Agora eu tinha certeza. Naquela quinta passada estávamos saindo do cinema e ele começou com aquelas velhas bobagens para me assustar: demônios, bruxas e fantasmas... faltavam poucos dias para o fim do ano letivo e eu já sabia para qual faculdade pretendia ir; Jack queria ser produtor de filmes mas as possibilidades de êxito eram poucas.

— O que você mais deseja nesse mundo, Regina? — ele perguntou, calmo enquanto cruzávamos a rua principal. Todos já estavam dormindo... a cidade era pequena e não havia o que fazer ou onde ir, além do cinema e o clube de boliche.

— Você é meu amigo ou não? — eu sorri. — Eu quero ser aceita... todos sabemos que não sou bonita. Não como as irmãs Grace.

— Aquelas piruás! — gargalhou com desdém. — Você é uma garota especial. E você é bonita, por dentro e por fora.

Mas eu sabia que não era assim! Amigos falam essas coisas para te agradar: “você está linda”, “não está acima do peso” ou “tudo vai ficar bem” mesmo quando tudo está desmoronando. Amigos fazem essas coisas.

— Nossa! — ele exclamou de repente.

Eu procurei o motivo daquela reação. Jack apontou o casarão de madeira do lado esquerdo. O jardim árido e as arvores secas. Uma verdadeira casa dos horrores.

— Você não lembra? — perguntou com um sorriso maldoso. — Você conhece a lenda, não conhece?

A tal lenda era a seguinte: a casa da família Thompson já havia pertencido a muitas pessoas distintas mas a primeira proprietária havia sido Mary Latour. Todos diziam que Mary era uma feiticeira e resolveram assassina-la... simples assim. Outros diziam que ela sucumbiu devido a um enfarte fulminante mas isso não era importante. Aquilo tudo não passava de bobagens de uma cidade caipira!

— Vai querer que eu entre lá e prove que sou mais corajosa que você, Jack? — debochei. — È isso mesmo?

— Fique à vontade.

Eu fui até o jardim, pisei na grama morta, um vento frio me fez arrepiar todos os pelos do corpo. A casa era como todas as outras casas abandonadas: velha, mórbida, escura...

— Então, o que está esperando?

— Você é um idiota, cara — gritei para ele.

Ele foi até mim e disse que eu não precisava provar nada mas minha mãe dizia que eu era a garota mais petulante do mundo ou pelo menos do interior dos EUA. E ela tinha certa razão.

— Eu vou entrar! — eu falei e me aproximei ainda mais. — Nosso pais está infestado de casas como essa.

Eu fui até a porta, estava entreaberta. Dei alguns passos para dentro e ele me acompanhou. A sala ainda tinha alguns moveis antigos de madeira, um piano, uma lareira com fotografias e restos de alimentos, cigarros e garrafas de cerveja largadas em um canto. Os viciados frequentavam aquele mausoléu.

— Podem vir com tudo! — gritei com os braços abertos e os olhos fixos no telhado de madeira mofada prestes a desabar. — Eu tenho um crucifixo aqui e não tenho medo de usar.

— Você não deveria...

— Como disse... posso fazer o que quiser. Você é o perito nessas coisas, pelo visto está com medo, não é?

— Eu não estou...

Mas ele estava sim, eu podia perceber em seus olhos. Jack era um cara maravilhoso mas não era corajoso, não mesmo, ele tinha medo da própria sombra. A Sra. Margareth, sua mãe, era uma católica fervorosa e arrogante que enxergava pecado em tudo e todos e o deixara complexado.

— Será que há um fantasma nesse piano? — perguntei ao vácuo. — E na lareira? No armário? Nas pinturas? Nas estantes?

— La em cima, Billy disse que há algo assustador lá em cima — ele cochichou, seu olhar fixo na sinuosa escada de madeira. Vários degraus quebrados.

— Nossa! Uma escada antiga — exclamei, irônica. — Para onde será que ela leva?

E subi lentamente aqueles degraus, um por um. Eu precisava convence-lo de que coisas assustadoras e fantásticas só acontecem em filmes.

— Jason? Michael Mayer? Satã? — gritei no meio daquele corredor escuro. A madeira estalava, os ratos observavam entre as frestas das paredes.

Eu vi alguns retratos, mulheres, crianças e até animais. Os Jackson tinham vivido ali cinco anos atrás mas partiram quando a filha morreu afogada na banheira.

— Regina? — Jack parecia atônito.

Ele espiava o maior dos quartos, no fim do corredor a direita. Estava bem conservado em relação ao restante do lugar... cama, armário e uma pintura! Uma mulher de meia idade triste segurava um gato negro. Era bonita mas não seria nada legal encontra-la em uma madrugada qualquer.

— É a senhora Mary Latour! — Jack disse, bobo.

— Vamos sair dessa droga de casa — respondi.

Mas Jack era um cara incansável e como estávamos ali ele resolveu bancar o esperto pela primeira vez. Descobriu um enorme espelho, estava oculto em um canto, largado. Sua moldura era de prata, ornado com estrelas e luas e símbolos exotéricos...

— Billy me falou disso...

— É apenas um espelho — eu falei e puxei seu braço. Ele resistiu.

Jack contou que o espelho era magico, Billy havia dito. Uma porta para o mundo dos espíritos, bastava evocar um ente querido e ele surgiria pouco a pouco no reflexo. Bastava pedir e te mostraria seu futuro... era o famoso espelho negro! Um objeto bem comum nos rituais de magia negra.

— Não quer experimentar? — ele perguntou.

— A Sra. Mary Latour era apenas uma velha louca que teve um fim trágico... o resto são apenas lendas. Nós temos que ir. — tentei convencê-lo mas seus olhos estavam fixos no espelho.

— Eu estou vendo, Regina — cochichou.

— Você é mesmo um idiota — disse, rude e cansada daquela besteira toda. —Eu vou te provar...

Eu fui até o espelho, era realmente assustador... eu pensei na Sra. Mary e porque aquele objeto estava ali depois de tanto tempo? Porque a família Jackson não o retirara? Era medonho e você não gostaria de acordar a noite para beber um copo de agua e se deparar com aquilo. Sua imaginação poderia pregar peças: uma mão saindo daquele vácuo negro, olhos vermelhos e mortais, um demônio ou um fantasma...

— Se você tem tanto poder, me mostre aquilo que mais desejo — ordenei.

Por alguns instantes não houve nada de anormal naquele quarto escuro mas de repente um vento tomou o corredor, era forte e não sabíamos de onde vinha. Então eu olhei no espelho e para minha surpresa uma imagem começava a se formar, opaca com um fantasma...

— Foi uma péssima ideia — Jack exclamou, ele tremia junto a porta do quarto. Fazia gestos para que saíssemos.

— Eu estou vendo...

— Pelo bom Deus, Regina — tornou a falar, desesperado. — O que mais deseja?

Então era eu mesma, sim, aquele reflexo opaco tornou-se nítido na negrura diabólica... eu estava linda, meus olhos, cabelos, sorriso...

Então aquele vulto de um sonho utópico sumiu repentinamente. O vento cessara e somente Jack, ali, parado com seus gestos alucinados tentando chamar minha atenção.

— Eu falei que você não precisava provar nada. Estava apenas brincando. Me desculpe — ele disse quando saímos.

Nos despedimos, ainda sob o efeito da situação inusitada.

Depois daquela noite eu comecei a ouvir vozes e a sonhar frequentemente com a Sra. Mary Latour. No princípio achei que fosse efeito da imaginação e até consultei um especialista que me diagnosticou com estresse e ansiedade. Tomei alguns calmantes e aquilo parou por um tempo.

Mas Jack também sentia e via coisas e não queria admitir. Eu tentei por várias vezes faze-lo confessar mas ele não dava o braço a torcer... até que o peguei de surpresa.

— Vamos mesmo fazer isso?

— Eu te falei ontem... estou decidida! — parei novamente em frente a velha casa com um taco de madeira na mão esquerda. Estava disposta a destruir o objeto de meu suplicio... o causador de meus tormentos e dos de Jack.

— Eu também vi, Regina — ele cochichou. — Naquela noite... era o meu pai mas eu não compreendo. Ele está morto!

— Você falou que o espelho era magico. Talvez esteja pregando peças com a gente, de qualquer forma devemos destruí-lo. Eu farei isso.

— Pode ser perigoso...

— Eu prefiro encarar essa situação. Você me acompanha? — questionei, seca.

Nós entramos novamente mas a casa estava irreconhecível, os moveis, cortinas, o piano... tudo estava intacto. A casa parecia nova.

— Isso é uma ilusão. Não é real — ele falou, esfregando os olhos com força e beliscando o próprio braço.

Haviam outros espelhos na casa e em cada um deles pude notar a presença de pessoas que não me eram estranhas... uma voz baixa chamou meu nome e eu fui até um deles próximo a escada:

— Olá, Regina — minha vó Clarence falava, cabelos grisalhos, com seu vestido branco com bolinhas azuis e seus óculos meia lua.

— O meu pai! — Jack gritou apontando outro espelho no corredor que levava até a cozinha.

— São apenas reflexos... — falei para ele com carinho. — Precisamos subir.

Fomos até o andar de cima, também estava belo, decorado... eu disse que ele deveria esperar lá fora até que eu terminasse.

— Você tem certeza, Regina? — perguntou com metade do corpo para dentro do quarto. Ele já não sentia tanto medo mas não queria entrar; creio que devido aos reflexos de seus parentes falecidos.

— Claro. Não temos escolha.

O quarto estava tão bonito, a cama de madeira ornada com flores talhadas, os vestidos coloridos no armário, o criado mudo repleto de bailarinas de porcelana, uma caixinha de música e um jarro com rosas brancas.

— Você não vai me assustar — disse ao espelho.

— Você não faria isso com sua avó, Regina? — uma voz familiar disse mas não podia perceber de onde vinha.

— Eu já falei que não tenho medo...

— Você é uma garota esperta, Regina. Eu estive te observando... aquelas garotas cruéis vão continuar, você sabe...

A voz se referia a Amélia e Carina, garotas tão bonitas quanto insuportáveis, verdadeiras megeras que faziam de minha vida um verdadeiro inferno.

— Posso te tornar bonita como aquelas princesas nas series de TV, posso faze-la ter os melhores namorados, você quer? Eu te conheço, eu estive em seus sonhos e sei do que você precisa — a voz engrossou. — Você quer dinheiro? Poder? Juventude eterna? Quer seus parentes que repousam no mundo dos mortos ou que o inferno te sirva?

— Não quero nada de você — gritei.

— Sua vadia, idiota e burra! — berrou e a casa tremeu. — Posso matar Amélia White, posso faze-la se afogar no próprio sangue imundo. Posso destruir Carina Taylor, ninguém desconfiara de um atropelamento... as pessoas estão loucas dirigindo por ai, não é?

— Quem é você? — perguntei e aproximei-me.

— Eu posso ser muitas coisas! Mary Latour sabia disso mas não era esperta o suficiente! — gargalhou de forma diabólica. — Ela queria o reflexo do filhinho e teve, mas acho que lhe dei algo mais! Um enfarte fulminante...

— Você é um demônio?

O espelho mudava rapidamente: meu avô Joseph, minha tia Norma, meu primo Henry... todos mortos!

— Eu sou sua perdição...

Mas antes que terminasse eu o acertei com toda minha força e ele se estilhaçou em mil pedaços, a casa tremeu e sua forma mudou; estava tão velha quanto podia lembrar.

Eu e Jack voltamos para nossas casas e prometemos jamais fazer algo do tipo. Não sei se posso cumprir minha promessa mas posso afirmar que Jack deixou de comprar revistas sobre temas paranormais.

Adriel Silva
Enviado por Adriel Silva em 24/08/2019
Código do texto: T6727901
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