Meu outro Eu
Eu me chamo Samantha Moore e estava voltando para casa, fazia frio e eu sempre cruzava o atalho pela densa floresta que circundava nossa pequena cidade. Meus pés grudavam naquela lama e os sons dos animais me assustavam mas era realmente mais prático, em vinte minutos estaria em minha residência.
De repente levantei a cabeça e um objeto luminoso cruzou o céu, deixando um rastro de fumaça; ele caiu perto da antiga usina da cidade. Vinte minutos depois eu estava em frente a lanchonete do Will e meu amigo Travis me abordou:
—E aí, tudo bem? — ele estava trabalhando naquele lugar a menos de duas semanas. Porém tinha grande facilidade para perder empregos.
— Não. A escola está me matando, sabe?
— Você ouviu as notícias? — parecia reflexivo.
— Que notícias?
Ele pediu que eu entrasse, seu patrão estava viajando e a gerente estava ocupada com o namorado atrás do prédio.
— Você quer alguma coisa... aproveita que a Ashley não está aqui. — brincou e me mostrou o cardápio.
— Agora me fala, Travis. Estou curiosa... — mas não estava. Estava muito cansada e queria voltar para casa.
— Parece que um disco voador caiu perto da antiga usina hoje mais cedo. —Ele franziu a testa, depois olhou para fora com os olhos esbugalhados.
— Um disco voador? — perguntei, perplexa — essas coisas não existem. Eu vou para casa... me desculpe.
— Você não quer ouvir o resto?
— Eu não preciso ouvir essas bobagens. Até logo. — E segui para minha casa que ficava na rua de trás.
As pessoas estavam alvoroçadas, correndo, desesperadas e curiosas... sim, as pessoas da minha cidade eram fascinadas por acidentes, sangue, agressões, doenças estranhas (desde que não fossem as vítimas) e todo tipo de aberração que a mente humana detesta.
— O que você está fazendo, mocinha? — a Sra. Madelyn perguntou, atônita —você não soube do incêndio e dos acidentes na estrada 45?
— A senhora está se referindo ao objeto? — minha curiosidade aumentou, cruzei os braços e a encarei com seriedade.
A Sra. Madelyn era extremamente curiosa, católica fervorosa, arrogante e antiquada.
— Sim. Minha querida... o incêndio. — Ela apontou para a floresta, seus olhos vidrados.
A floresta estava queimando, a fumaça chegava aos céus, as pessoas corriam em sua direção com câmeras fotográficas. Os bombeiros tentavam conter as chamas que aumentavam mais e mais.
— Va para sua casa, Samanta. Avise seus pais. — A Sra. Madelyn entrou na caminhonete do Sr. Donovan e partiram como um raio em direção ao tumulto.
E então o calor tornou-se insuportável. Meu prédio estava logo ali... teria que contar tudo ao meu pai pois mamãe estava em Omaha.
— Bom dia, Srta. Moore — o zelador Frank disse, simpático.
Estava com os olhos fixos na pequena TV, a moça do noticiário falava bem alto, relatando o acidente, o incêndio e o pânico das pessoas e o quanto os bombeiros eram corajosos...
— Você está vendo? — Frank berrou.
— O senhor talvez não acredite... bem, eu estava na floresta essa manhã e por sorte nada aconteceu. — Um calafrio percorreu meu corpo quando lembrei da caminhada que havia feito: eu encontrei uma clareira, os arbustos estavam amassados e havia uma espécie de liquido viscoso no chão e uma nevoa estranha cobria a copa das arvores.
— Fico feliz que esteja bem, senhorita.
— Obrigado, Frank. Meu pai está em casa?
— Ele acabou de sair. — Fixou os olhos novamente na TV.
A tal repórter chamava-se Jennifer Fernard, tentava se esgueirar perto do prédio em chamas e berrava com o cinegrafista para que conseguisse as melhores imagens. Certamente estava farta da cidade e talvez, com uma excelente matéria, pudesse finalmente sair daqui.
— Até logo — eu disse e peguei o elevador.
Meu pai chamava-se Jordan, estava doente e desempregado, ele costumava discutir com minha mãe... mas nos amava, disso tenho certeza. Eu pensei eu como queria sair dali, morar em Nova York, cursar uma faculdade e ganhar muito dinheiro. Poderia ajudar meus pais.
Saí do elevador e me dirigi até meu apartamento: Nº32. Quando entrei tudo parecia normal mas... as janelas estavam abertas.
Eu senti um calafrio e fui até a cozinha, para minha surpresa a geladeira e o armário estavam arreganhados e a comida estava espalhada pelo chão: suco de laranja, cereais, ovos quebrados, leite, farinha...
— Tem alguém aqui? — perguntei.
Nenhuma resposta.
— Eu vou chamar a polícia. Está ouvindo? — o carpete do corredor estava coberto de uma substancia clara e viscosa (semelhante a que havia visto na floresta).
— Olá, Samantha. — uma voz muito parecida com a minha falou. Vinha do meu quarto.
— Quem é você? — perguntei.
— Quem é você? — ela repetiu e gargalhou como uma criança.
— Eu não tenho medo... vou entrar.
E pulei para dentro do quarto e então tive o maior susto de toda a minha vida: uma garota... um clone... uma irmã gêmea. Bem, eu desmalhei, tamanho o susto.
Acordei minutos depois no sofá e achei que aquele horror havia sido apenas um terrível e exótico pesadelo. Minha cabeça latejava.
—Tudo bem, Samantha? — o outro “eu” disse, simpática. Estava sentada de frente para mim com um sorriso forçado.
Eu saltei do sofá, corri para a cozinha e peguei a faca mais afiada que pude encontrar.
— Quem é você? — perguntei, empunhando a faca. — Fale logo?
— Eu... eu sou Samantha Moore. — respondeu com naturalidade e ligou a TV.
Ela foi até a cozinha, revirou tudo e voltou para a sala com uma fatia de bolo de chocolate e com uma lata de refrigerante. Parecia faminta.
— Como isso é possível? — perguntei, aflita. Eu pensei que ainda estivesse sonhando pois a garota era tão idêntica a mim, nos traços, cabelo, olhos, boca...
Ela usava um vestido azul de seda igualzinho ao meu e um casaco de lã marrom e um cachecol vermelho... idêntica a mim.
— Eu precisava parecer com alguém daqui — ela disse com naturalidade enquanto devorada aquela fatia gigante de bolo.
— Da cidade?
— Não. Desse planeta — respondeu, cínica.
— Você tem que sair daqui... meu pai está chegando — berrei, apontando para a porta.
Ela jogou o prato vazio no chão, gargalhou de forma diabólica e foi em direção ao meu quarto. Ela estava revirando meu armário, pegava peça por peça, fazia cara ne nojo e vasculhava as gavetas.
— Esse aqui. — Me mostrou um vestido vermelho que eu havia ganhado de aniversário.
— Que tipo de criatura é você? — berrei. — Você não está entendendo? Eu tenho uma vida, família e meu pai não pode te encontrar... ele vai enfartar.
— Seu pai está ótimo, Samantha — respondeu, irônica.
— Como você sabe?
— Eu encontrei ele quando estava vindo para cá. Sua saúde me parecia muito boa... ele ainda poderá viver muitos anos.
Ela colocou o tal vestido vermelho, voltou para a sala e a TV noticiava o incêndio (ao vivo). A repórter idiota estava desesperada berrando que havia pessoas na mata e que estavam encurraladas e que a igreja local estava fazendo orações e que o prefeito não passava de um incompetente.
— O incêndio! — eu exclamei, em voz alta.
— Sim, sua bobinha. Eu não queria provocar esse tumulto todo mas não sou uma boa piloto. Entende?
E então ela falou que estava farta daquele ambiente quente e desagradável e que queria fazer um passeio pela cidade e conhecer alguns lugares legais, disse que ainda estava com fome.
— Você não pode — segurei a porta.
Ele franziu a testa e me empurrou para o lado com uma força incomum. Eu puxei seu braço e ela me derrubou e então eu comecei a gritar e bloqueei a porta do elevador... ela me segurou no alto apenas como a mão esquerda e me jogou do outro lado do corredor.
— Fique calma, Samantha. Tudo vai ficar bem... eu sou uma garota esperta. —e então ela entrou no elevador com aquele vestido vermelho sexy (que eu evitava usar pois me deixava parecida com uma prostituta) e com um salto alto e com uma maquiagem pesada e o cabelo loiro bagunçado, mascando chiclete...
Só me restava as escadas.
— Boa tarde, senhorita — Frank disse para o outro “eu” e ela sorriu.
— O que há de bom para fazer nessa porcaria de cidade, velho? — ela questionou.
Eu estava escondida junto a escada e podia vê-los perfeitamente e temi que Frank pudesse achar aquilo estranho (se é que já não achava).
— Seu pai não vai gostar, Samantha... das suas roupas — Frank sorriu, receoso.
— Isso não é da sua conta.
— Me desculpe. — Frank abriu a porta para ela.
E então o outro “eu” caminhou rebolando até quando desapareceu na esquina da Rua Mayer.
Eu precisava sair do prédio mas Frank estava ali, tive que esperar até que seu turno terminasse. Isso levou meia hora. Enquanto isso a outra Samantha encontrou-se com a Sra. Madelyn.
— O que é isso, garota? — a velha perguntou, azeda. — Por acaso seu pai está sabendo que você tem andado por ai como uma meretriz?
—Seu marido sabe que você tem andado com essa cara feia por ai?
A Sra. Madelyn lhe lançou um olhar medonho de ódio mortal. Cerrou os punhos, deu de ombros e apressou-se em direção a sua casa.
Depois foi a vez de Trevis. Ele estava saindo para almoçar e cruzou com ela na porta da lanchonete. Ele ficou gélido quando a outra Samantha surgiu rebolando a alguns metros em sua direção.
— Você está maravilhosa — Travis disse, bobo.
— O que você disse?
— Que você está muito bonita. Foi isso que eu disse. Me desculpe. — Ele baixou a cabeça.
— Eu preciso comer — ela disse, subitamente, olhando para a barriga que roncava.
— Meu expediente acabou... você pode entrar e pedir algo.
Mas antes que ele pudesse terminar a criatura entrou na lanchonete e foi direto para a cozinha, cheirou as frutas e legumes, provou as tortas de maça, tomou vários refrigerantes. Travis estava de pé, assustado.
— O que deu em você? — ele perguntou.
Ela fitou Travis por alguns segundos e voltou a comer, despreocupada.
— O que pensa que está fazendo? — ele berrou.
Ela ficou enfurecida, pulou em sua direção e deu-lhe um forte empurrão. Travis atravessou a janela e bateu com a cabeça em um automóvel que estava estacionado perto da calçada.
Enquanto isso voltei para meu apartamento e me disfarcei com um sobretudo, óculos escuros e um chapéu.
Frank não estava lá quando eu desci. Contudo o disfarce ajudaria com o restante da vizinhança.
La fora o tumulto havia piorado bastante e as pessoas falavam sobre “seus gêmeos” e compreendi que talvez não fosse a única vivendo aquele horror sobrenatural.
— Pegue ela — o xerife gritava apontando para o interior da lanchonete.
A criatura estava destruindo tudo. Ela havia quebrado mesas, cadeiras e lambia os restos de comida no chão.
— A senhora precisa sair daqui — o xerife disse para mim.
Eu tirei o sobretudo e ele ficou gélido, olhava para a criatura e depois para mim e depois para ela novamente.
— Céus! — ele exclamou, atônito.
—Eu posso falar com ela — argumentei.
A oura Samantha deu um berrou esganiçado e eu tentei acalma-la. Tudo inútil.
— Isso é bem maior que você — ela disse irônica, enquanto devorava um bolo enorme de coco.
— Você precisa parar com isso. A gente pode se entender.
— Eu não quero me entender com você, garota. Eu sabia que você não passava de uma idiota... quando te encontrei na floresta.
A floresta! Aquele criatura estava lá pela manhã.
— Eu vou voltar, Samantha. Nós somos muitos — ela berrou com um olhar perverso e o rosto parecia escamoso e esverdeado. Suas pernas tornaram-se enormes e ela saltou até a floresta, babando e rosnando e finalmente sumiu entre as arvores.
Alguns dias depois nossa pacata cidade estava repleta de “duplos”. Talvez quisessem nos substituir e isso talvez não fosse tão ruim, afinal o ser humano não é a mais digna das criaturas.