A cidade no deserto

Lisa, James e Peter estavam ansiosos, o carro percorria aquela estrada de chão batido em alta velocidade deixando um rastro de poeira para trás. James sabia ser convincente, pois seus amigos preferiam, e com razão, um fim de semana na praia ou em um chalé nas montanhas.

James era alto e forte como um touro, seu corpo rabiscado de tatuagens, usava uma calça jeans rasgada e uma camisa regata amassada. Seu cabelo era negro e oleoso e sua sobrancelha direita tinha uma pequena cicatriz que ganhara em uma briga na faculdade.

Peter era o mais jovem, tinha a pele clara como a neve e seus enormes olhos azuis eram bem visíveis mesmo atrás dos óculos fundo de garrafa que ele usava. Vestia roupas caras e alinhadas.

Lisa era tão bonita quanto a primavera, seus cabelos eram ruivos como o fogo, seus olhos eram verdes e brilhantes como esmeraldas lapidadas. Ela vestia uma calça jeans desbotada e uma blusa de mangas listrada de vermelho e preto. Ela olhou para fora, incomodada, e disse:

— Você falou que a pousada ficava a 1km.

— Relaxa, Lisa — respondeu James, na direção.

De um lado e do outro do carro só havia arbustos secos, arvores mortas e ossos de animais que haviam sucumbido devido ao calor infernal.

— Eu avisei que essas viagens eram uma droga — Peter cochichou.

— Cale a boca! — James disse, rude. Acendeu um cigarro e ligou o rádio no volume máximo.

Então Lisa pensou no verdadeiro motivo da viagem: uma discussão terrível que ela e James tiveram duas semanas antes. Peter decidiu acompanha-los pois não tinha nenhum programa para aquele fim de semana.

— Estou com um mau pressentimento — Lisa falou, seus olhos novamente fixos na imensidão seca.

— Relaxa — Peter disse. Pegou uma bebida e espreguiçou-se no banco de trás — nós estamos com o grande James Walker! Vai ficar tudo bem.

Mas Lisa tinha um alarme dentro de si, um tipo de alerta que só soava quando algo terrível estava para acontecer. Mas talvez estivesse com defeito, afinal nenhum pressentimento havia lhe alertado sobre o comportamento do namorado.

— Eu preciso descer. — Peter falou, tapando a boca com as mãos — acho que vou vomitar...

— Não no meu caro! — James respondeu e parou o veículo.

Fazia tanto calor que podiam fritar um ovo naquele chão fumegante, o sol queimava a pele dos três, as ondas de calefação subiam da areia e o ar seco dificultava a respiração. Peter correu até um arbusto perto do qual colocou para fora tudo o que havia comido mais cedo.

Lisa estava tão quieta que deixou seu namorado desconfiado. Ele foi até ela, fixou os olhos nos seus e disse, irritado:

— Já falei que estou arrependido. O que você quer?

— Eu quero esquecer... — ela respondeu, rude, se afastou dele com os braços cruzados e uma expressão de nojo.

James voltou para junto do carro e para sua surpresa a gasolina estava acabando e ainda estavam bem longe de qualquer cidade. Ele chutou um dos pneus traseiros, xingou Deus e o mundo e agachou-se com as mãos sobre a cabeça.

— Eu não acredito! — Peter apontou o veículo como se fosse um barco com um enorme furo e prestes a afundar.

— Eu estou cheio de suas reclamações! — James levantou, enfurecido, foi para cima de Peter como um trem desgovernado, seus punhos cerrados e o rosto desfigurado pela raiva. Então lembrou do pai de Peter (um homem poderoso) e recuperou a razão — quando foi que te deixei numa fria?

— Nunca — Peter respondeu. Se afastou lentamente, já estava encharcado de suor, seus olhos ardiam e sua cabeça latejava. Não queria mais problemas.

— Só precisa confiar em mim — James gritou para o amigo.

Peter olhou sobre o ombro esquerdo, esboçou um meio sorriso e fez que sim com a cabeça.

— O esquentadinho ali quer bancar o machão. Não é? — disse Lisa para Peter. Ela tinha aberto alguns botões da blusa para aliviar o calor, o suor descia em pesadas gotas até seu busto e franzia a testa tentando enxergar além do horizonte.

Quando finalmente os alcançou, James pediu que voltassem ao carro e pegassem só o necessário, em seguida mostrou o mapa que estava com ele. Os outros dois concordaram com suas resoluções, conferiram os itens nas mochilas e seguiram rumo ao desconhecido.

Eles andaram bastante, as garrafas de agua já estavam quase vazias e o céu começava a enegrecer, as estrelas surgiam como dezenas de pontos luminosos no céu. Lisa diminuiu os passos de forma que estivesse um pouco atrás do namorado.

— Acho que não tem volta... acabou para a gente — ela disse.

— Não, meu amor... você precisa me ouvir. — Ele tentou abraça-la mas ela recuou. Ele apertou seu braço. — Você sabe que não tem sido uma boa namorada.

— O que está dizendo?! — ela se desvencilhou dele. — Estou cansada de suas mancadas.

— Você é livre para fazer o que quiser. — ele disse com desdém e deixou que ela o ultrapassasse.

Lisa alcançou Peter e os dois começaram a conversar.

— Vocês estão bem? — Peter perguntou.

— Eu não sei... — ela respondeu, baixinho, e enxugou os olhos com o punho — você conhece o James melhor que ninguém... sabe que ele não presta.

— Bem, isso é verdade — ele sorriu.

— Não deve se envolver, não pode prejudicar a amizade de vocês.

Lisa seguiu. Peter pensou em todas as vezes em que o amigo havia lhe ajudado na escola com os valentões, como suas roupas na época pareciam surradas e como sempre estava irritado.

Pensou em Lisa: quando a conheceu ela era uma garota incrível que trabalhava em uma lanchonete suja em um bairro nada amistoso da cidade e pagava suas contas com grande dificuldade. Fazia aulas de canto no centro da cidade nos fins de semana e quando estava no banho os vizinhos podiam ouvi-la cantarolando.

Uma vez no ano organizava doações para pessoas carentes, distribuía sanduiches na praça onde os mendigos faziam enormes filas, famintos e congelando devido ao frio do inverno.

Alguns metros à frente James acenou para eles. Estava eufórico.

— Vejam isso!

Peter correu até ele, suas pernas doíam bastante, sua vista estava turva e sua língua ressecada. Lisa foi em seguida.

— O idiota conseguiu — ela murmurou.

Era uma cidadezinha, tão pequena quanto decadente. Como um oásis... um pontinho na vastidão árida. Ela parecia desafiar o tempo.

— O que estamos esperando? — Lisa questionou.

Eles correram, tropeçando, sedentos e cansados sem mesmo saber o que lhes aguardava.

— Tem alguém aqui? — Lisa gritou e não houve resposta. Seu cabelo longo esvoaçava devido ao vento forte, sua blusa antes branca, já estava marrom como aquela terra que ela havia aprendido a odiar tanto.

Na entrada uma grande placa de madeira dizia: “Bem vindos a Arville, você jamais desejará sair”. Eles se entreolharam, desconfiados.

Haviam quatro prédios do lado direito: um restaurante, algo semelhante a um banco, uma joalheria, um bordel e uma pousada. No lado esquerdo: uma igreja protestante, uma delegacia, um casarão rustico e uma taberna. La no fim, na pracinha ornada por arbustos secos e arvores infrutíferas havia uma igreja de madeira, seu telhado estava parcialmente destruído e suas portas escancaradas.

— Estamos sozinhos — Lisa supôs. Seus olhos passearam por todo o lugar e nem sinal de pessoas, somente cobras e alguns outros animaizinhos que rastejavam entre aquelas ruinas de um filme de faroeste.

— Vou procurar alguém — Peter avisou e seguiu para o lado direito.

Ele entrou no restaurante imundo, as mesas ainda estavam dispostas de forma harmônica mas descobertas e empoeiradas, o chão de madeira repleto de folhas secas e os quatro cantos daquele salão imenso estavam cobertos de teias de aranhas. Ele deu alguns paços em direção a cozinha, viu algumas fotos em preto e branco: uma mulher morena e gorda sorria, cansada na moldura, segurando um prato cheio de milho na mão esquerda.

Ele sentiu um calafrio. Quantas alegrias e sorrisos? Quantas festas, pedidos de namoro e casamento não haviam sido feitos ali? E a mulher da foto parecia muito feliz e seria legal saber que fim tivera.

A cozinha estava cheia de ratos, eles subiam e desciam das prateleiras vazias, saiam em fila indiana do armário e entravam em buracos na parede, como nos desenhos animados.

— Na despensa! — Peter pensou.

Mas não havia nada que servisse para matar sua fome, apenas mais ratos e restos de cereais e frutas apodrecidas.

Enquanto o estômago de Peter roncava; James visitou o lugar mais decadente que poderia encontrar: “Paraiso Dos prazeres”, dizia o letreiro rubro na entrada... certamente não acharia nenhuma mulher a menos que ela estivesse mumificada ou empalhada por um lunático como peça exótica de decoração.

As mesas estavam mais ornadas que as do restaurante, havia todo um cuidado ali, um cuidado que resistiu ao tempo. As toalhas vermelhas com babados pareciam vestidos de uma cigana; três mesas de cada lado e um palco lá na frente.

A madeira estalava abaixo dele. Uma escada sinuosa surgia atrás do bar, alguns degraus estavam quebrados e naquele escuro era como se ela acabasse no vácuo. James não encontrou nada que lhe agradasse além de uma garrafa de uísque. Tomou todo o conteúdo.

Enquanto isso Lisa aproximou-se da delegacia, as portas estavam abertas e ela percebeu que alguns papeis estavam jogados no chão. Deu dois paços para dentro e um documento chamou sua atenção:

17/02/1920

Venho por meio desta carta solicitar a ajuda do Coronel Harry.

O temido Bill King escapou da cadeia e matou algumas pessoas!

Estou receoso que ele retorne para se vingar de mim.

Aguardo resposta, Xerife Douglas Mayer.

Lisa virou a página e um rosto medonho, cansado e raivoso estava ali, em uma foto 3x4. Havia algumas anotações e palavras dispersas: “perigoso”, “assassino”, “maníaco” e muitas outras cujo propósito era mostrar o quanto aquele homem era ruim.

— Achou alguma coisa? — Peter perguntou.

Lisa deu um salto para trás e soltou um grito fino.

— Você me deu um baita susto — Ela sentou na cadeira atrás da mesa onde o xerife ficaria se estivesse trabalhando e fitou novamente os papeis amarelados — esse lugar me deixa apavorada.

— Já viu a ficha desse maníaco? — Peter analisou o documento com expressão de desprezo.

— Acabei de ver. Era um homem mau, não gostaria de cruzar com ele por ai — ela sorriu e levantou. — Vamos procurar seu amigo.

James os encontrou antes e pediu que fizessem silencio. Ele contou que havia encontrado um rádio e ouvido a seguinte noticia: “Um acidente terrível na via principal... os jovens Josh e Nina Jones desapareceram... famílias reconheceram o automóvel “.

— É a estrada onde estávamos — Lisa comentou.

— Nós não estamos sozinhos — James cochichou. — Tem um velho aqui. Eu vi quando ele chegou e tirou dois sacos escuros do porta malas. Acho que entenderam o que eu quero dizer

— O homem da foto! — Lisa exclamou.

Eles voltaram para a delegacia e ela terminou de ler aquele mórbido arquivo policial: Bill King era um criminoso procurado em todo o estado... ele casou-se com Rosa Rodriguez, uma linda cigana e enlouqueceu depois de sua morte.

— O que estamos esperando? — Peter perguntou. Fitava a saída como se estivesse em um prédio em chamas e precisasse correr para se salvar.

— Esse cara assassinou treze pessoas. Aqui diz que ele foi caçado por todo o deserto mas nunca foi encontrado. E se esse for o homem de que James falou? — Lisa disse.

— Ele já deve estar morto a muitas décadas — James respondeu, sério. Disse que deviam ir embora o quanto antes.

Os amigos fizeram que sim com a cabeça.

Mas antes que pudessem chegar a saída da cidade depararam-se com o velho, sua fisionomia era de um homem de 50 anos, alto, cabelo grisalho e uma barba cheia de falhas.

— Saiam da minha cidade! — ele gritou e aproximou-se.

Lisa tentou explicar tudo o que havia acontecido mas o velho mostrava-se irredutível. Peter sugeriu que corressem.

— Seus desgraçados! — O homem tentou acertar James que se esquivou e acabou caindo.

Os amigos o ajudaram a levantar e depois se esconderam atrás do antigo banco. O homem rondava toda a cidade, farejando como um cão de caça.

— Vou dar um jeito nele — James cochichou e Lisa tentou impedi-lo.

James pulou encima do grandalhão que tentou esfaqueá-lo. Ele lutou com todas as forças, tomou a faca e atirou ela na direção dos amigos, em seguida imobilizou o velho que já estava chorando copiosamente. Lisa e Peter se aproximaram com expressão de curiosidade e comoção.

— Solta ele —Lisa ordenou e o namorado obedeceu.

— Quem é você? — Peter perguntou ao velho. Mantinha uma certa distância.

Ele não respondeu.

— O senhor pode falar... talvez possamos ajudar — Lisa murmurou.

O homem estava encostado na porta do banco com as mãos sobre os olhos, chorando e soluçando.

— Eu sou Bob King — disse bem baixinho.

James pediu desculpas e estendeu a mão para ajudá-lo. O velho levantou, enxugou as lagrimas e mostrou o casebre onde morava.

— Entrem — ele disse, simpático.

Os três amigos estavam com receio, afinal de contas não conheciam aquele senhor e não sabiam se suas intenções eram realmente boas. James tomou coragem e foi o primeiro a adentrar o casebre sujo e empoeirado.

— Vou preparar algo para vocês — o velho avisou e foi até a cozinha.

Os três sentaram no sofá rubro que havia perto da entrada e fitaram os moveis antigos e as fotografias em preto e branco: havia uma foto de Bill King e uma de Rosa.

— Não sei se devemos ficar aqui — Lisa disse enquanto analisava um diário sobre a mesinha de centro.

No antigo diário com capa de couro e paginas amareladas estava escrito os nomes de algumas moças e de alguns poucos rapazes... o nome das mulheres estava rabiscados com desenhos de rosas e corações...

— Veja isso. — Peter levantou e foi até a estante onde Bob King guardava frascos de medicamentos, facas e até uma espingarda.

— A gente devia sair daqui — Lisa sugeriu.

— Também acho — Peter cochichou e então deu alguns paços para trás e seu pé afundou na madeira podre do cômodo e ele soltou um grito.

James tentou soltar a perna do amigo que estava gritando e fazendo um verdadeiro escândalo. Depois de cinco minutos, Peter estava com a perna livre, a calça rasgada e a pele cheia de arranhões.

— Veja aquilo. — Lisa apontou o buraco que havia se formado no chão.

Os três se agacharam para olhar e tomaram um baita susto quando viram que aquele espaço estava repleto de ossos humanos e que um cheiro horrível de carne em decomposição saía dali. Eles deram um salto para trás, enojados e aterrorizados.

— Vamos antes que ele volte — Peter cochichou.

Mas ao deixar o casebre perceberam que o velho estava de pé junto a entrada da cidade com uma faca na mão esquerda e o rosto cheio de respingos de sangue fresco. Os três amigos tentaram pular a cerca e o velho os perseguiu gritando e xingando, espumando de raiva...

— Rápido! — James berrou para os amigos pois ele já estava bem distante da cidade.

Quando Lisa e Peter alcançaram James, estavam enfadados e só nesse momento olharam para trás. Para a surpresa dos três: não havia absolutamente nada... a cidade desaparecera e o grandalhão também. Lisa lembrou dos sacos pretos e do que poderia haver ali dentro, James lembrou do catalogo de viagens e Peter analisava, silencioso, a faca cravada em suas costas. O velho tinha boa pontaria.

Adriel Silva
Enviado por Adriel Silva em 24/08/2019
Código do texto: T6727868
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.