DESCANSE EM PEDAÇOS
___ Agora vamos às notícias: mais um corpo esquartejado foi encontrado hoje pela manhã, em um trecho da margem da rodovia 315. O corpo estava distribuído em dois sacos, colocados um ao lado do outro. O conteúdo macabro foi descoberto por um morador de rua que perambulava pela rodovia. Já se sabe que a vítima é uma mulher jovem, de 20 a 23 anos. Ficou constatado que nenhuma parte de seu corpo está faltando. O tronco e as mãos estavam em um saco; no outro estavam a cabeça, os membros superiores e inferiores, e os pés. A vítima usava uma borboleta tatuada no braço esquerdo. Esta já é a quarta mulher encontrada nas mesmas condições em um mês e meio. As três vítimas anteriores eram também jovens com idade entre 20 e 23 anos, e foram identificadas como garotas de programa. A polícia está trabalhando com a hipótese de que os quatro crimes tenham sido cometidos pela mesma pessoa devido aos padrões encontrados, o que deixaria evidente a existência de um “serial killer” agindo em nossa cidade. A identificação do corpo encontrado hoje vai confirmar ou não a ligação desse crime com os outros três.
Percorreu, com os olhos, a página dos classificados. Procurava nos anúncios que vendiam serviços sexuais alguma coisa que o interessasse, que lhe despertasse algo. Parou em um que o fez sentir o que sempre sentia quando entrevia uma próxima vítima em potencial: Era uma coisa estranha, uma sensação indefinível que lhe causava pontadas na virilha, seguidas de uma ereção. Não sabia bem o que tornava aquele anúncio diferente dos outros. Talvez fosse pelo fato da anunciante ser uma jovem de 18 anos, ou talvez fosse devido aos traços orientais que ela dizia possuir. Na verdade garotas desse tipo não eram muito comuns naquela cidade. É, com certeza foi esse fator que despertou o seu apetite, o seu macabro apetite. Aquela iria ser a sua primeira vítima com traços orientais. Estava super excitado com isso. A pele dela devia ser branquinha, lisinha, como só as orientais possuíam. Anteviu-se retalhando-a, rasgando-a com algum instrumento cortante. Masturbou-se imaginando essa cena, mas parou no momento em que ia atingir o orgasmo. Não queria gastar sua energia antes do tempo, pretendia guardá-la para a ocasião real.
Pegou o celular e ligou para o número que estava no anúncio. Uma voz de mulher atendeu no primeiro toque.
___ Quais são os seus serviços? ___ Perguntou ele.
___ Tudo, menos gang-bang.
___ Gang-bang?
___ É, sexo com vários homens ao mesmo tempo. Só atendo um cliente por vez.
___ Ah! Ok, tudo bem. Quero contratar os seus serviços. Onde vamos nos encontrar?
A mulher passou o endereço.
___ Já anotei. ___ Disse ele. ___ Quando você vai estar disponível?
___ Quando você quiser.
___ Certo. Então encontro você nesse endereço em uns 40 minutos, ok?
___ pra mim está ótimo. ___ Concordou a mulher.
___ Então até mais.
___ peraí. ___ Fez a mulher. ___ Você não vai querer saber quanto eu cobro?
___ Por quê? É obrigado a saber com antecedência?
___ Não, claro que não. É que eu estranhei. Geralmente as pessoas procuram saber o preço antes de qualquer coisa.
___ É, mas eu não estou preocupado com o preço. Seja qual for o valor que você cobre, tenho certeza que vai valer a pena.
___ Pode ter certeza que vai.
Ele desligou. Sentou-se na cama e puxou a gaveta do criado-mudo. A primeira coisa que viu foi a fotografia dele mesmo, abraçando uma menininha de uns 6 anos de idade. Era sua filha. Sentiu-se desconfortável. Aquela foto não devia estar ali, e sim na outra gaveta. Naquele momento o que menos queria ver era a imagem do seu outro eu, que vivia uma vida normal, de pai solteiro, mas dedicado; de cidadão correto e honesto, acima de qualquer suspeita. Ali, sentado na cama, estava a sua outra metade, a sua outra personalidade: Um predador, um assassino cruel, um esquartejador, prestes a fazer a sua nova vítima. Uma coisa que não podia permitir era que esses dois mundos, em que se dividia sua vida, se confundissem. Eles eram diferentes e contrários tanto quanto o eram a luz e a escuridão. A visão daquela fotografia, que mostrava a outra versão de si mesmo, abraçado com sua filha, num momento em que antegozava o seu próximo ato sanguinário, Causou-lhe a impressão de que os dois universos distintos em que vivia estavam interagindo um com o outro. Isso fez com que se sentisse tão mal como se estivesse diante de uma aberração. Era como se alguma lei da natureza tivesse sido violada. Guardou a foto no interior de outro criado-mudo, no lado oposto da cama. Retirou um envelope amarelo da primeira gaveta que abrira, Puxando de dentro dele algumas outras fotografias. Essas, no entanto, não tinham nada em comum com a que acabara de guardar. Eram de mulheres chorando, amordaçadas, olhando para a câmera com o medo e o desespero congelados em seus rostos. Mostravam-nas também já mortas, os corpos inteiros e depois em pedaços. Ele contemplava aquelas imagens aterradoras, concebidas por suas mãos, com a mesma volúpia com que um homem normal olharia as cenas de suas aventuras sexuais. As coisas hediondas que praticava com suas vítimas faziam-no sentir-se superior às outras pessoas, um ser especial. Seus crimes bárbaros davam sentido à sua existência, pois era da dor e do sofrimento alheios que se alimentava.
Na hora combinada chegou ao local em que a garota de programa disse que o encontraria. Estacionou o carro na beira da calçada. Olhou ao redor e não viu ninguém. Era um lugar com muitas moradias, mas estranhamente ermo como um cemitério. Viu uma mulher aproximando-se. Não percebeu de onde ela tinha saído. Achou que talvez tivesse sido de uma das casas que margeavam a pista. A mulher atravessou a estrada e parou diante da janela do motorista.
___ Foi com você que eu falei no telefone? ___ Perguntou ele.
___ Se foi com uma profissional do sexo, sim.
___ Vou esclarecer logo a você: se está pretendendo ir pra um motel, esqueça. Eu não gosto de motéis. Vai ter que ser ou no meu carro, ou na minha casa. Acho que pra você tanto faz, não é mesmo?
___ Pra mim não faz nenhuma diferença. ___ Disse a mulher. __ Mas a gente pode ir pra minha casa. É um lugar discreto, confortável. E fica bem perto daqui, isto é, se você estiver de acordo, é claro.
O homem deu um sorriso, exibindo uns dentes muito brancos.
___ Sem problema. Vamos pra sua casa então.
A garota de programa deu a volta no carro e acomodou-se ao lado do motorista. O homem arrastou o veículo e, enquanto dirigia, examinou atentamente a sua futura vítima. Era uma bonita jovem com traços orientais. Seu cabelo, de um negro brilhante, e cortado ao nível da nuca, dava-lhe um ar selvagem e exótico. O tipo de roupa que estava usando não era exatamente o que uma prostituta vestiria, uma vez que mais escondia do que mostrava seu corpo. Consistia numa calça jeans levemente desbotada, e uma blusa de mangas longas e gola até o pescoço. A única coisa que se podia entrever eram os seios, que pareciam ser bem pequenos, a julgar pelo tamanho reduzido das protuberâncias que formavam no tecido. Ela não fez questão de puxar conversa. Durante boa parte do percurso permaneceu calada, com exceção dos momentos em que precisou mostrar alguma rua pela qual o carro devia seguir. O homem resolveu quebrar o silêncio:
___ Você não parece ser uma garota de programa. Pelo menos não está vestida como uma.
___ Não gosto de parecer uma, mesmo quando vou atender um cliente. ___ Explicou a jovem. ___ Isso serve pra excitar e estimular as fantasias. O cliente se sente como se estivesse transando com uma garota normal, de família. Entende? Eu causei esse efeito em você?
O homem balançou a cabeça.
___ Não. O único efeito que me causou foi o de estranheza, mas sua estratégia é bem original. Eu gostei. Qual é o seu nome mesmo?
___ Ramona.
___ Nome verdadeiro, ou é o de guerra?
___ De guerra, Mas esse é só pra você. Pra cada cliente eu tenho um nome diferente.
A residência da jovem era uma casa velha, de dois andares, na beira de uma estrada. Sua pintura estava totalmente encoberta por uma sujeira negra, que não tinha outra causa senão o monóxido de carbono expulso pelos veículos que passavam por ali, e que foi se acumulando, ao longo dos anos, em suas paredes, porta e janelas. Ficava num local de poucas moradias, intercaladas por extensos terrenos baldios e longos trechos de matagais. O homem, orientado por Ramona, estacionou em frente à construção.
___ Então é aqui. ___ Disse ele, examinando o lugar ao seu redor.
___ Exato. É aqui que eu me escondo. ___ Disse Ramona, saindo do carro.
O homem fez o mesmo, abriu o porta-malas e pegou uma maleta antiga, de couro preto.
___ Pra que é isso? ___ Estranhou a jovem.
___ São só alguns instrumentos eróticos que eu gosto de ter à mão. Você sabe, vibradores, pica de plástico, essas coisas. Me dá muito tesão ver vocês usando essas coisas.
___ Não precisava ter trazido nada. ___ Replicou Ramona. __ Eu tenho tudo isso e muito mais. Eu tenho tudo pra qualquer tipo de fantasia.
___ Mas eu prefiro usar os meus instrumentos. ___ Tornou o homem.
___ Tudo bem. Como você quiser. ___ Disse Ramona, dando de ombros.
A jovem destrancou e abriu a porta da casa.
___ Você gosta de morar aqui? ___ Perguntou ele.
___ Gosto porque tem poucas residências. ___ Explicou Ramona. ___ E, além disso, são muito afastadas uma da outra. Assim não tenho que me preocupar com bisbilhotice de vizinhos.
Entraram no imóvel. Seu interior era muito pouco mobiliado. Na sala só havia, apenas, uma mesa com quatro cadeiras, Uma TV e um aparelho de DVD sobre uma envelhecida e desgastada bancada. As paredes eram de um branco encardido e, em muitas partes havia manchas escuras, provavelmente causadas por infiltrações.
___ Fique à vontade. ___ Disse a jovem.
O homem puxou uma cadeira e sentou-se, colocando a maleta sobre a mesa.
___ Eu queria sugerir uma coisa antes de começarmos. __ Disse Ramona, encarando seu cliente.
___ Pode dizer. Sou todo ouvidos.
___ É que eu queria lhe oferecer uma bebida afrodisíaca que eu mesmo criei. É uma cortesia da casa.
___ Eu dispenso. ___ Disse o homem. ___ Eu não preciso de afrodisíacos. Isso é pra gente insegura, que não põe fé no seu taco, ao contrário de mim.
___ Não, engano seu. Afrodisíaco não é cura pra insegurança, é um recurso pra tornar os sentidos mais receptivos aos estímulos sexuais. Olhe, aproveite, porque eu sou a única garota de programa do mundo que presta esse tipo de serviço, e o que é melhor: de graça.
___ É algum tipo de droga?
___ Claro que não. Os ingredientes que eu uso são completamente inofensivos, posso lhe garantir. Todos os clientes que eu já trouxe aqui experimentaram, e não se arrependeram.
___ Tudo bem. ___ Concordou o homem. ___ Vou tomar um pouco pra não fazer desfeita.
___ Ótimo. Você vai mudar completamente de opinião depois que beber meu afrodisíaco, você vai ver.
Ramona foi para a cozinha pegar a bebida. Ele aproveitou para checar o conteúdo Da maleta. Abriu-a sem afastar muito as bordas e olhou os objetos que havia dentro. Não eram instrumentos eróticos como dissera à Ramona, mas lâminas de diversos tipos que utilizava para cortar, furar e retalhar as suas vítimas. Já estava super excitado. Mal podia esperar para usar aqueles metais afiados e reluzentes na pele branquinha dela. Fechou a maleta ao perceber a aproximação da jovem, que retornou com um copo de vidro cheio de um líquido cor-de-rosa e de aspecto cremoso.
___ Aqui está. ___ Disse ela, passando-lhe o recipiente.
O homem sorveu um pequeno gole para experimentar o gosto. Depois de fazer uma expressão indicativa de aprovação, Virou o copo na boca, engolindo todo o seu conteúdo de uma só vez.
___ Não sei se esse afrodisíaco realmente funciona. ___ Disse ele. ___ Mas que é uma delícia, é.
___ Eu não disse que você ia gostar? Vamos subir.
Ramona dirigiu-se para a escada. O homem pegou a maleta e a seguiu. Havia dois cômodos na parte superior da casa. Um estava com a porta fechada, a do outro encontrava-se aberta. Ramona entrou nesse último, e assim que o fez, seguida por seu cliente, foi logo se despindo. No local existia apenas uma cama de casal e uma penteadeira com dois frascos vazios de perfume em cima. Era um quarto relativamente espaçoso, com uma porta em seu interior que dava para um pequeno banheiro. Ele observou o corpo nu de Ramona, que acabara de sentar-se na cama com as pernas abertas, exibindo os grandes lábios. Arriou a maleta sobre a penteadeira, ficando de frente para esse móvel e de costas para a jovem.
___ Você tem alguma fantasia que deseje realizar? ___ Perguntou Ramona.
___ Tenho. ___ Respondeu o homem, enquanto retirava da maleta uma enorme faca feita toda ela, inclusive o cabo, de aço inoxidável. Aliás, todos os seus instrumentos de tortura eram feitos desse material. Cortar e furar a pele com aquele metal reluzente, liso; vê-lo manchar-se de sangue, era, para ele, algo maravilhosamente extasiante, divino.
Ramona não podia ver o que o homem tinha pegado na maleta, uma vez que o corpo dele estava bloqueando sua visão. Ele observou o seu próprio reflexo distorcido na lâmina.
___ Deite na cama, garota. ___ Ordenou.
A jovem obedeceu, com certa apreensão. Havia algo naquele homem que a estava incomodando, provocando-lhe uma espécie de medo vago. Seria sua intuição feminina avisando-lhe de algum perigo? ou seria apenas impressão sua? Ramona olhou para sua calça, que deixara no chão. No bolso dela estava seu celular. Uma voz em seu íntimo lhe dizia que devia pegá-lo. Ia levantar-se para fazer isso, porém nesse momento o homem virou-se para ela com a faca na mão. Ao ver seu cliente segurando uma arma branca, teve um sobressalto. Um calafrio percorreu sua espinha de baixo para cima.
___ Mas o que é isso? ___ Disse ramona, dando um pulo da cama.
___ Você não está me obedecendo. ___ Afirmou o homem, com sarcasmo. ___ Eu te disse pra deitar na cama. Ou você não aprendeu que o cliente sempre tem razão?
Ele caminhou na direção de Ramona, com a faca em riste. A jovem avançou um passo, e inclinou-se para pegar seu celular no bolso da calça, mas seu carrasco aproximou-se muito rápido, não lhe dando tempo de realizar esse intento. Ela saltou sobre a cama, indo em direção ao lado oposto. Sentiu, porém, a mão do homem segurando firmemente seus cabelos. Sua reação foi automática e desesperada: Desferiu um golpe com a perna, atingindo seu oponente no estômago. O homem soltou um grunhido e recuou, afrouxando um pouco a mão que prendia sua vítima. Ramona, aproveitando o ensejo, desvencilhou-se e entrou no banheiro, trancando-se nele. Com o olhar assustado, fixo na porta que acabara de fechar, foi caminhando de costas até dar com a parede fria de dentro do Box. Não podia acreditar no que estava acontecendo. Aquele desgraçado devia ser o autor dos esquartejamentos que tinha visto no noticiário. Com tantos homens na cidade, justo um psicopata foi ler o seu anúncio no jornal. Era muito azar. Agora estava numa situação crítica. Se pelo menos tivesse conseguido pegar o celular, poderia ligar para a polícia. Mas ainda havia uma chance. Uma única chance para escapar daquela com vida.
Ele encostou o ouvido na porta do banheiro para ouvir lá dentro uma respiração ofegante ou um choro, ou qualquer som que revelasse o medo de Ramona. Perceber esse sentimento em suas vítimas o deixava muito excitado. Ainda estava com dificuldade para respirar devido à pancada no estômago, mas em compensação estava sentindo o maior tesão com aquele jogo de gato e rato.
___ Você fugindo assim só está me deixando com mais tesão, garota. __ Informou ele. ___ E com mais gana de retalhar essa sua pele branquinha.
Recuou um passo, e começou a dar pontapés na porta com o intuito de arrombá-la. Ramona, encolhida dentro do Box, observava, impotente, a vibração da madeira a cada golpe que recebia. Sabia que não iria demorar muito para que ele conseguisse entrar, afinal aquela porta velha e frágil não ia resistir por muito tempo. Sentia sua expectativa de vida diminuir a cada segundo. Não demorou muito para que o inevitável acontecesse: Um pontapé fez o trinco se romper, e a folha de madeira abriu-se violentamente, batendo na parede com um estrondo. O homem entrou no banheiro e avançou para Ramona. Agarrou-a pelos cabelos e a arrastou até o quarto.
___ Você foi uma menina muito má. ___ Disse. ___ por isso vai sofrer mais do que as outras.
Ele a fez deitar na cama. Colocou-se sobre ela, espalmando a mão sobre sua boca e encostando a ponta da faca em sua barriga. Seu rosto ficou bem próximo do da jovem, que sentiu, com asco, a respiração quente do psicopata em sua face.
___ Fique quieta, ou vou arrancar seus olhos. __ Ameaçou o homem.
Começou a introduzir a lâmina na barriga de sua vítima, experimentando uma sensação que era tão boa, ou melhor, do que se estivesse penetrando-a com seu pênis. Ramona, sentindo o metal invadindo dolorosamente suas entranhas, soltou um grito, cujo som foi abafado pela mão do psicopata. A jovem viu, numa fração de segundos, toda a sua breve vida passar diante de seus olhos. De repente percebeu que a faca havia parado de entrar em sua carne. Viu no rosto do homem uma expressão de incerteza; O olhar dele estava vago, e suas pálpebras pareciam muito pesadas. Ramona não teve dúvidas de que aquela era sua chance de escapar. Empurrou seu algoz, retirando-o de cima de seu corpo. O homem perdeu o equilíbrio e, com a faca ensangüentada na mão, caiu para fora da cama, pousando de costas no chão. A jovem colocou-se de pé rapidamente. Um filete de sangue escorria de sua barriga. Examinou o ferimento com o dedo, e constatou que a lâmina não havia penetrado muito profundamente. Pegou sua calça, em cujo bolso estava o celular, e saiu correndo nua do quarto.
O homem ergueu-se do chão com dificuldade. Tinha alguma coisa errada com ele. Sua visão estava turva, sua cabeça pesada, o cérebro parecia solto dentro do crânio. Aquela puta havia colocado alguma coisa no afrodisíaco, se é que era um afrodisíaco. Era a única explicação para que estivesse se sentindo daquele jeito. Mas, por que ela iria fazer uma coisa dessas? Com que intenção? Será que ela suspeitava de suas reais intenções? Mas como, como ela pôde perceber? Com um andar cambaleante, alcançou a saída do quarto, passando para a área onde ficava a escada de acesso ao andar inferior. A voz de Ramona chegou aos seus ouvidos. Procurou enxergá-la em algum lugar ao seu redor, porém não conseguiu divisar ninguém.
___ ...É, eu estou escutando gritos horríveis vindos de lá. Parece que alguém está sendo assassinado. Por favor, mande logo uma viatura. Eu tenho certeza que alguma coisa muito horrível está acontecendo lá. Essa não é a primeira vez que eu escuto gritos vindos dessa casa, mas só hoje tomei coragem pra denunciar. Ok, está certo. Anotou certo o endereço? Ok. Muito obrigada.
Ele avistou à sua frente uma porta entreaberta. Teve a impressão de que a voz estava vindo de lá. Empurrou a folha de madeira e viu, da soleira, Ramona em pé no meio do cômodo, segurando o que parecia ser um celular. Ao lado dela havia alguém completamente despido, um homem, com os braços suspensos e presos por duas correntes fixadas no teto. Sua cabeça estava pendida para frente, e suas pernas dobradas sobre uma poça vermelha escura. Em seu torso, assim como nos membros superiores e inferiores, espalhavam-se vários cortes produzidos por algum instrumento afiado. Sem entender nada do que estava vendo, avançou, com a faca ensangüentada, na direção de Ramona, mas suas pernas não o obedeceram, e ele desabou de bruços no chão.
___ Qual é o problema, não está se sentindo bem? ___ Disse Ramona, com ironia.
Ele tentou reerguer-se, mas não conseguiu. Seu corpo parecia estar pesando uma tonelada. O máximo que pôde fazer foi virar-se e colocar-se de barriga para cima. Ramona havia se aproximado, e estava parada diante dele. Tinha vestido a calça, mas continuava nua da cintura para cima. Para conter o sangramento em seu ventre, pressionava, com a mão, um pedaço de pano sobre o ferimento. O homem olhou para os seios nus de Ramona. Pareceram-lhe mais rijos vistos do chão. Sentiu um desejo ardente de retalhá-los, mas não podia mais. Olhou para sua faca, caída a uma certa distância.
___ O que é? Quer pegar sua faca? ___ Perguntou Ramona. __ Você quer muito me cortar todinha com ela, não é? Como fez com as outras.
___ O que você colocou naquela bebida, sua puta?
Ramona atingiu o homem com um chute nas costelas, o que o fez soltar um gemido.
___ Maneire suas palavras, seu filho da puta. O que eu coloquei na bebida não é o mais importante, o que isso vai fazer com você é que é. O que você está sentindo é passageiro, mas ainda tem as alucinações. Quero que você esteja bem alucinado quando a polícia chegar aqui. Nós somos parecidos, sabia? Somos da mesma espécie. Eu também gosto de retalhar pessoas, como você. A diferença é que nossas vítimas são de gêneros diferentes, e as minhas vêm até mim, elas me procuram. São masoquistas que adoram sofrer nas mãos de uma mulher. Eu dou a eles muito mais do que isso. Eu dou a eles a glória de serem mortos pelas mãos de uma mulher. Esse aqui, por exemplo: ___ Ramona caminhou até o corpo preso pelas correntes e colocou o braço em volta de seus ombros. ___ ele delirou de tesão com cada corte que eu fiz nele. Por fim quando eu cortei a garganta dele, ele estremeceu e ejaculou como um cavalo. No fim das contas era isso o que ele mais queria, assim como os outros que vieram antes dele: experimentar o prazer máximo de ser assassinado por uma linda mulher.
___ Você, além de puta, é uma doida varrida.
___ É mesmo? E você é o normal aqui, não é?
O homem fazia um esforço enorme para se erguer do chão, porém não conseguia mexer um dedo sequer. Os músculos de seus braços e pernas estavam completamente paralisados. Até mesmo para falar estava tendo certa dificuldade.
___ Por que você chamou a polícia? ___ perguntou ele.
___ Você ainda não entendeu? ___ Disse Ramona, aproximando-se do psicopata outra vez. ___ Essa cidade é pequena. Não vai demorar muito pra polícia chegar em mim. Por isso resolvi encerrar minhas atividades aqui. Só que eu não quero a polícia me caçando onde quer que eu vá. Pra isso é necessário que alguém assuma a autoria dos crimes que eu cometi aqui. E você vai fazer isso por mim.
___ Besteira. Esse seu plano idiota não tem como dar certo.
___ Quer apostar? O que essa substância está fazendo em seu corpo não é nada, comparado ao que ela vai fazer com sua mente. Eu vi os efeitos no youtube. Acredite, uma pessoa sob o efeito dessa droga é capaz de coisas terríveis. Quando os policiais chegarem aqui vai encontrar um homem enlouquecido com um cadáver ensanguentado. Preciso dizer mais alguma coisa?
O homem, até aquele momento, não havia cessado um só instante de tentar recuperar seus movimentos. Finalmente, depois de um esforço desesperado, sentiu que podia mover um braço. Sua capacidade motora estava voltando. Aquela puta maldita não perdia por esperar.
___ Bem, agora eu preciso ir. ___ Anunciou Ramona. __ Vou te deixar na companhia de minha vítima mais recente. Adeusinho.
A jovem foi em direção à saída do cômodo. Ao passar pelo psicopata sentiu, inesperadamente, a mão dele fechar-se sobre seu tornozelo. Ela puxou o pé, desvencilhando-se facilmente.
___ Eu vou te pegar sua desgraçada.
Apoiando-se no membro que conseguira mover, o homem tentava desesperadamente colocar-se de pé, porém nada mais além de seu braço estava funcionando naquele momento.
___ Poupe seu fôlego, queridinho. ___ Disse Ramona. __ O pior ainda está por vim.
A jovem retomou seus passos em direção à saída.
___ Você não vai se safar, sua vadia desgraçada. Eu vou sair daqui e vou te pegar, nem que seja no inferno. ___ Ameaçou o homem.
___ Boa sorte pra você. ___ Disse Ramona, desaparecendo pela porta. Ela foi até seu quarto. O ferimento na barriga havia parado de sangrar. Vestiu uma blusa, pegou uma mala, preparada há dois dias, Desceu as escadas, atravessou a sala e saiu, deixando a porta da casa escancarada.
O homem estava recuperando-se, lentamente, da paralisia. Agora, além de um braço, havia recobrado também o controle de uma das pernas. Com alguma dificuldade conseguiu colocar-se na posição vertical. Pulando com um pé só e arrastando o membro inferior ainda paralisado, ele deslocou-se em direção à porta. No entanto, para sua surpresa, a saída do cômodo começou a afastar-se, como se estivesse fugindo dele. O chão deixou de ser extático e passou a mover-se sob seus pés. O psicopata, que mal conseguia manter-se de pé com apenas uma perna funcionando, desabou pela segunda vez. Fechou os olhos e procurou manter o controle de sua mente. Aquilo não era real. Era só a droga agindo em seu cérebro. Precisava continuar acreditando nisso. De repente começou a ouvir alguém chorando. Não abriu os olhos. Ficou repetindo para si mesmo, sussurrando, que não era real. Mas não só continuou ouvindo como também o choro foi tornando-se mais alto e intenso, acabando por transformar-se em gritos de desespero. O homem descerrou as pálpebras e viu, com horror, o cadáver preso pelas correntes retorcendo-se e gritando como se estivesse sentindo uma dor dilacerante. Poder-se-ia dizer que sua alma padecia no inferno, mas era o corpo que sofria. O psicopata Ergueu-se e recuou alguns passos, completamente apavorado diante daquela cena medonha. Nem se deu conta de que tinha recuperado totalmente seus movimentos. Na verdade nem lembrava mais que estivera paralisado. Precisava fugir daquela loucura, daquele pesadelo. Procurou desesperadamente a saída, mas não a encontrou. Percebeu, aterrorizado, que estava cercado por paredes sem porta. O cadáver agitava-se violentamente, soltando gritos aterradores. De repente, movido por uma força descomunal que não era mesmo desse mundo, arrebentou os grilhões que o prendiam ao teto e avançou, furiosamente, na direção do psicopata. Este se jogou para o lado a tempo de evitar ser abalroado pelo defunto, que passou por ele feito uma locomotiva. O homem avistou sua faca esquecida no chão. Pegou-a e esperou nova investida do morto, o que de fato não demorou para acontecer. O cadáver correu novamente em sua direção com os braços estendidos, emitindo um som gutural que não parecia com nada já saído de uma boca humana. De seus pulsos pendiam os pedaços dos dois grilhões partidos. O psicopata aguardou a sua aproximação, e no momento em que o considerou perto o suficiente, cravou a faca em seu olho. Isso, no entanto, não deteve o morto ambulante que, insensível ao ataque sofrido, fechou as mãos em volta da garganta do homem. Sentindo como se o seu pescoço estivesse sendo esmagado por um compressor, o esquartejador desencravou a lâmina do olho de seu oponente e voltou a enterrá-la no mesmo lugar. Repetiu o ato outra vez, e outra e mais outra, e já então passou a esfaquear, sem parar, a face do cadáver. Ouviu de repente, às suas costas, uma voz feminina ordenar que parasse. Ele obedeceu e girou nos calcanhares, a mão crispada sobre o cabo da faca. O que viu o encheu de um êxtase sanguinário. Era Ramona metida num uniforme de polícia. Estava na soleira da porta, empunhando uma automática. Ia poder agora acertar as contas com aquela puta. Ia fazer picadinho dela. Nem sua alma iria sobrar inteira. Soltando um grito animalesco, ergueu ameaçadoramente a lâmina à altura da cabeça e partiu para cima da jovem, ignorando completamente as advertências que ela lhe lançava. A figura uniformizada disparou seis vezes com a automática. O psicopata sentiu seu corpo ser perfurado e imediatamente um queimor insuportável começou a castigar suas entranhas. Era como se o inferno estivesse dentro dele, consumindo-o por dentro. Ele estacou, recuou e caiu de costas no chão. O doloroso ardor em seu interior provocou-lhe uma sede tão intensa como jamais sentira antes. Abriu a boca para clamar por água, mas nenhum som saiu de sua garganta. A vida foi esvaindo-se de seu corpo, assim como um líquido de um copo virado.
A policial, segurando, com as mãos trêmulas, sua arma ainda fumegante, aproximou-se do homem caído. Retirou, com o pé, a faca presa sob os dedos deste, chutando-a para longe. Estava horrorizada com o cenário hediondo em que se encontrava. Olhou para o indivíduo preso, pelos pulsos, com correntes que partiam do teto. Seu rosto estava horrivelmente destruído pelos golpes de faca. Provavelmente essa mesma faca fora usada para abrir as várias feridas espalhadas pelo seu torso. Suas pernas dobradas estavam sobre uma grande poça de sangue, agora coagulado, e os dedos dos pés mergulhados nela. Que tipo de pessoa seria capaz de cometer uma atrocidade dessas? A policial sentiu seu estômago embrulhar. Tinha pouco tempo na ativa, e não estava habituada, ainda, a lidar com crimes tão sangrentos, sem falar que era a primeira vez que atirava em uma pessoa. Sentiu o conteúdo gástrico subindo pelo seu esôfago até invadir a boca. Curvou-se, apoiando as mãos nos joelhos, e vomitou.
A alguns quilômetros dali Ramona acomodava-se num banco de trás de um táxi.
___ Pra onde, minha jovem? ___ Perguntou um sorridente e solícito motorista.
___ Rodoviária.
O taxista colocou o carro em movimento. Mais de uma vez, durante o percurso, Ramona percebeu que ele a estava despindo com os olhos, através do retrovisor. Homens, __ pensou __ tão patéticos e previsíveis. As construções, pessoas e ruas passavam velozmente pela janela. Aquela cidade era um bom lugar para se viver, mas pequena demais para alguém como ela. Ramona tinha em mente agora uma cidade maior, a capital, mais populosa, onde teria à sua disposição muito mais vítimas em potencial. Era como uma predadora a caminho de um habitat onde a caça era mais numerosa.
“Agora as últimas notícias:
Um homem foi morto a tiros depois de ser flagrado, por uma policial, esfaqueando brutalmente um outro que estava atado por correntes em um vão de uma casa. O terrível crime se deu em uma residência, no bairro de... o criminoso, aparentemente sob o efeito de drogas, tentou esfaquear a policial, mas foi alvejado por esta com seis tiros, morrendo no local. A vítima, encontrada já morta, foi identificada. Trata-se do comerciário L. de J. B., de 35 anos, que estava desaparecido a dois dias. O criminoso foi identificado como j. M., de 29 anos, divorciado e pai de uma menina de 6 anos. A polícia suspeita que ele seja o responsável pelo desaparecimento de mais três homens, mas por enquanto não há nada que corrobore essa hipótese.
E a polícia continua ainda sem nenhuma pista que possa levar ao assassino das quatro mulheres encontradas em pedaços, em locais diferentes da cidade. O delegado responsável pelas investigações declarou que não há testemunhas de nenhum dos quatro assassinatos ou da desova dos corpos, que não há registros de câmera ou impressões digitais do assassino, e que essa falta de elementos deixava a polícia no escuro, sem nenhum caminho a seguir. Vamos torcer para que a polícia consiga capturar esse demente antes que ele faça mais outra vítima. Se você tiver alguma informação, por mínima que seja, que possa ajudar nas investigações, ligue para o número aí no seu vídeo. Não é preciso se identificar.
Ficamos por aqui. Tenham um bom dia”.
***
B.B.