O Antídoto da Morte (Parte VIII)
À princípio achei que estava diante de um ser alado, uma entidade, talvez? Mas, quando se deslocou, percebi que a água que descia pelas rochas eram responsáveis por criar o efeito das asas e, mesmo com a aura criada pelo sol, estava com o corpo e os cabelos molhados, e isso lhe fazia humano demais para ser um Deus. Entretanto, eu queria ter certeza de que era de carne e osso. Esperei, e quando me estendeu a mão, lhe puxei com força:
- MALDITO! Gritou com voz grave. Está querendo me matar?
Simulei que havia escorregado, ele me segurou com força e, com facilidade, fui içado para cima da pedra. Atravessamos em silêncio a cortina de água transparente e entramos na caverna. Havia alguns utensílios de barro e uma bíblia sobre um tronco tombado no chão.
Eu estava com muito frio. Molhado e faminto, senti uma dor profunda no estômago que me fez colocar a mão na barriga e agachar. O índio pegou uma manta escura e jogou sobre meus ombros. Enfim, ele rompeu o silêncio apontando para uma esteira feita de palha de taboa que ficava no fundo onde a claridade quase não chegava.
- Deite-se ali, mas antes vou lhe dar algo para beber.
O conteúdo estava em uma moringa enterrada em uma poça de lama. Ele encheu uma pequena cuia e levou à minha boca. Meus dentes tremiam de tal forma que foi inevitável boa parte do xarope, tão amargo, escorrer pelo meu peito. Peguei no sono e não sei por quanto tempo permaneci apagado, só sei que quando abri os olhos a fraqueza tomava conta de mim.
Josué, de cócoras próximo a uma fogueira, arrancava o couro de uma lontra. Depois de eviscerar, esfregou algumas ervas na carcaça e enfiou um pedaço de ferro por baixo do rabo até romper a goela e sair pela boca de dentes pontiagudos. O sangue ainda escorria pelo focinho peludo quando, amparado por duas forquilhas, foi colocado sobre as chamas.
Demorou uma eternidade até que o cheiro da carne assada invadisse o ambiente. Comecei a salivar. Josué esquartejou a iguaria sobre um pedaço de tábua e me ofereceu. Eu estava tão esfomeado que nem reparei que havia pegado a cabeça. Roí até o crânio, antes chupei o focinho e senti o gosto das ervas que entraram pelos ouvidos e temperaram o miolo do bicho. Depois arranquei os olhos e os fiz, um de cada vez, estourarem em minha boca.
Josué esperou que eu me saciasse para perguntar:
- O que veio fazer aqui?
Falei sobre o meu pai coveiro, os traumas que me levaram a temer a morte, o cemitério de flores amarelas e as histórias de vida que eu inventava para aqueles que já estavam podres no fundo da terra. Ele me olhava atento. Tinha olhos rasgados e verdes como as águas do pântano.
Eu já ia falar sobre o real motivo de procurá-lo quando ouvi um rugido medonho. A onça atravessou a cortina d'água e surgiu bem a nossa frente, tinha em seu dorso um indiozinho cujo cocar era de penas de araras azuis e vermelhas. Não consegui conter o grito: - AFASTE-SE!
Josué olhou para mim com espanto e, passando a mão por dentro da imagem, perguntou:
- Também consegue ver espíritos?
Aliviado, concordei com um simples movimento de cabeça.
Josué, usando um dialeto estranho, conversou com o menino que, segurando o cocar na cabeça, fez com que o animal saltasse. Vi quando atravessaram a cascata sem bulirem com as águas, que continuaram a descer frias e transparentes. Muitas pintas da onça e uma pena azul ficaram pairando no ar, mas logo se dissiparam...
Perguntei quem foi o menino antes de perder o corpo físico. Josué disse que o indiozinho se chamava Jandir e que, em um ritual, foi escolhido para ser costurado dentro da barriga da pintada. A criança, antes de morrer, agonizou por dias. Depois, os cadáveres foram queimados e transformados pelo pajé em uma farinha milagrosa. Os espíritos se fundiram e hoje voam livres sobre as copas das árvores da floresta.
Tanta maldade existe nesse mundo, pensei em voz alta, e disse:
- Foi Alloces quem mandou lhe procurar, o ajudei a encontrar o espírito fugitivo de um marginal.
Enquanto o índio me olhava transformando o rosto bonito em uma máscara de tristeza, falei sobre o antídoto da morte.
Josué baixou a cabeça por alguns segundos. Quando levantou estava com os olhos totalmente brancos e falou com voz metalizada:
- A morte faz parte da vida: um elo que nunca deverá ser rompido, ainda há tempo de desistir...
Gritei que jamais desistiria.
O índio virou-se para a cascata que cobria a entrada da caverna e falou:
- Posso ver o seu futuro refletido nas águas... Aos quarenta e quatro anos você sofrera um acidente terrível. Mesmo mutilado, vai mesmo querer continuar vivendo?
Gritei "SIM!" Pois para mim não haveria de existir nada pior do que a morte. No ano do meu quadragésimo quarto aniversário eu tomaria cuidado e nada me aconteceria, tinha certeza.
Josué então saiu da caverna e, quando regressou, trouxe uma tartaruga gigante. O bicho foi colocado com as pernas para cima e, enquanto tinha a barriga aberta com o auxílio de um machado, os membros se movimentavam de maneira sincronizada.
O índio, após destruir o casco do animal, estava banhado de sangue e suor. Com um último golpe, atingiu a cabeça, retirou o pequeno cérebro, mastigou e engoliu. Depois, parecendo muito cansado, foi para o canto mais escuro da caverna e, sobre a esteira, adormeceu.
Uma legião de criaturas fantásticas surgiram. Fadas e duendes iluminaram tudo e eu pude vê-los, com dentes afiadíssimos, devorarem os restos da pobre tartaruga.
Eu parecia invisível até que, das águas da cascata, uma criatura grotesca apareceu e, depois de lamber todo o corpo do índio, disse com a bocarra cheia de sangue:
- Abra a boca para provar da eternidade.
O ser com asas que riscavam o lodo que cobria o teto da caverna veio em minha direção. Ele rugiu de forma ameaçadora, e depois de me envolver com a grande cauda, pressionou o meu corpo e regurgitou azedo sobre mim...
Continua....