Nossa Senhora da Radioatividade

O que restou de todo o mundo senão uma multidão de demônios famintos por destruição, devorando uns aos outros após tudo ter se arruinado?

Havia a massa de sobreviventes mutilados espiritualmente. Suas almas não eram mais que um composto químico de medo e obediência. Não mais pensam, a não ser na própria dor. Não mais sentem, a não ser a fome de muitos dias sem vida.

A Grande Aniquilação havia sobrevindo. A esperança estava morta e esquartajeda em praça pública. O sangue estava fresco e derramado em toda parte.

Os grandes edifícios imperiais. As montanhas sagradas e as árvores dadivosas. Contavam aos milhares os números dos serafins vandalizados. As obras dos grandes mestres de artes. Os ensinamentos dos sábios reunidos na biblioteca de ouro estavam para sempre perdidos.ia

Sob os milhões de corpos distorcidos pelas bombas, queimados, perfurados por fragmentos de aço, rocha e ossos. Ainda se via ali sinais do que seria uma família, um rosto, uma expressão terrivel de dor e de uma vida que nunca mais seria vivida.

Pensávamos diante daquilo tudo se havia algum sentido. Uma vingança, um mal entendido, uma visão distorcida motivadora daquele ódio, uma ignorância trágica sobre o outro - o que lhe é diferente.

Não havia motivo ou sentido claro. Era a própria vontade de destruição, como poder que se impõe inclusive sobre a compaixão, o amor e a sabedoria. A vontade de aniquilação não tinha outro limite que não fosse a satisfação em provocar dor.

Depois da última batalha, já não eramos a resistência, éramos um grupo de esfarrapados movendo-se pelo deserto da ira e do concreto despedaçado.

Andávamos pela escuridão para nos abrigar de sentinelas. Nos abrigamos nos escombros de um antigo clube recreativo.

Então o que vimos nos assombrou profundamente. Estava com as mãos feridas. Pedi para que Teófilo tomasse notas do que vimos, para que aqueles que ainda tivessem algum entendimento das coisas, pudesse compreender.

Para que os que ainda tivessem alguma sanidade enlouquecessem. E para que os loucos convertessem sua loucura em uma sanidade profética.

Enquanto nos abrigavamos nos escombros, de uma porta subterrânea ouvimos o que parecia trancas serem abertas. Engatilhamos as armas e preparamos explosivos para serem lançados. Nos preparamos para dar o último tiro pela resistência. A última carga contra as forças infernais.

Um ser humano vestido com um macacão anti-radiação. Dei ordem para que não atirassem. O tal ser se aproximou da piscina contaminada. Se despiu. Era um corpo femino a mergulhar lentamente na piscina radioativa.

Banhava-se sublimemente. Parecia se perceber observada. Parecia que algum anjo estava ali a purificar aquela água com o toque do seu corpo.

Olhávamos espantados aquele suicídio apoteótico. Até que dois drones de interceptação retalharam o corpo e continuaram sem interromper a ronda.

As perfurações ensanguentadas pareciam como morangos se desmanchando sobre a neve caidos. O rosto parecia como de uma alma liberta do mundo.

Naquele dia não fizemos orações. Os homens diziam que ela era a Nossa Senhora da Radioatividade, evitaram tocar aquele corpo.

***

Tal visão havia de alguma forma libertado aqueles homens. Purificado de alguma forma suas almas da contaminação espiritual.

Os quatro cavaleiros iniciaram a Guerra Santa. Levaram o horror a quem lhes fez o horror. A imagem da virgem ensaguentada de plutônio envolveu o que restou dos homens, tirava de suas mentes a lama da abominação que a todos havia atingido.

Ergueram as armas da aniquilação tendo a Virgem como emblema e arrastaram o demônio acorrentado pelas ruas e humilharam aqueles que o haviam servido.

Wendel Alves Damasceno
Enviado por Wendel Alves Damasceno em 15/08/2019
Reeditado em 16/08/2019
Código do texto: T6721013
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