ELA PEGA DAQUI E PEGA DE LÁ
I)
A discussão que havia começado pelo telefone não diminuíra, pelo contrário, ganhara ainda mais corpo quando ficaram frente a frente naquela manhã.
- Eu não acredito que você vai realmente agir assim, Roberto. Eu não acredito!
Clara, a ex-esposa, argumentava sem fazer a menor questão de esconder toda a raiva que carregava consigo naquele momento. Seus olhos estavam vermelhos, denúncia de um choro recorrente. De seus lábios, que tremiam involuntariamente, escorriam filetes de saliva pelos cantos.
- Eu já te expliquei, Clara. Já te falei um milhão de vezes. Não posso ir para um lugar desse tipo, eu, eu não consigo. Por mais que eu tente, não dá.
- Por que não? Você disse que me explica, mas não fala absolutamente nada. Só fica repetindo que não pode. Me dê um motivo que faça o mínimo de sentido e eu não falo mais nada.
- Clara, já te disse que não posso falar sobre isso. Mas me entenda, acredite em mim, não posso fazer o que está me pedindo.
- Tudo bem, Roberto. Tudo bem. Mas não é a mim que você está atingindo, é ao seu filho. Tudo que o Davi mais queria era que o pai o acompanhasse nesse acampamento. Ele não para de falar disso há meses. Preste atenção, o seu filho deseja a sua presença hoje, mas ele vai crescer e antes que você se dê conta, será tarde demais.
- Isso não vai acontecer, Clara. Eu faço tudo pelo Davi, só não posso ir a esse acampamento. O André não pode levá-lo, só nessa ocasião?
- Ele irá, Roberto. Fará o seu papel. Mas lembre-se, o André não é o pai dele, ele é o meu marido. O pai do Davi é você, embora cada vez mais isso esteja se perdendo.
A mulher bateu a porta sem esperar por qualquer outra palavra do ex-marido. O homem ficou parado ainda por algum tempo, olhando para a folha de madeira como se tentasse encontrar alguma resposta nas ranhuras revestidas pelo verniz brilhoso, algo que seria impossível. E, ao se dar conta de sua impotente situação, girou o corpo e ganhou as ruas a caminho de casa.
Ele sentia que sua vida seguia ladeira abaixo desde o divórcio, e isso já havia sido há cinco anos. Seu filho, Davi, estava prestes a completar dez anos e ainda o enxergava como um herói. Ele tentava se convencer de que fazia tudo pelo garoto, tudo que estava ao seu alcance. Gostaria de fazer muito mais, mas além de não ter tido sorte no amor, a vida profissional também estava um fiasco e quase nada dava certo para ele.
Na verdade, ele tentava se convencer disso, mas sabia que levar o filho ao acampamento não custaria nada, ou pelo menos, quase nada. Tudo o que teria de fazer era remexer o próprio passado e enfrentar antigos fantasmas que ainda o perseguiam em noites sem lua. Noites tão escuras que enchiam seu peito de amargor e medo. Um profundo e irremediável medo. Algo tão perturbador que o fazia tremer só de pensar. Não. Não tinha a menor possibilidade de chegar perto daquele lugar de novo. A promessa não cumprida era uma sentença de dor e morte, a lembrança era dolorida demais. E, atordoado com as recordações, jogou-se na cama tão logo chegou em casa. Ele desejava apagar, cair num sono profundo, sem pensamentos sombrios, mas pouco tempo depois percebeu que isso seria impossível. Logo, memórias que deveriam ficar enterradas para sempre começaram a revirar a terra enegrecida e fétida, como um morto-vivo em busca de alimento.
Ele se lembrou de quando era uma criança, um pouco mais novo do que seu próprio filho nos dias de hoje, e, assim como Davi, também seguira para um acampamento no parque florestal, local afastado do centro da cidade e fronteiriço a região do pantanal. Seu pai o levara, diferente de sua atitude há pouco. Naquela ocasião, várias duplas de pai e filho se estabeleceriam em diferentes pontos do parque, montariam estratégias durante o pernoite, e competiram numa gincana no dia seguinte. No entanto, as coisas não saíram exatamente como sua mente infantil imaginara.
II)
- Roberto, fique aqui perto da barraca e monte guarda das nossas coisas. Logo vai anoitecer, vou catar alguns gravetos para fazermos uma fogueira.
Ele tinha plena convicção de que o tempo na companhia do filho numa empreitada de colaboração mútua seria fundamental para despertar um sentimento de importância no pequeno. A formação do caráter se consolidaria em atitudes menores como aquela.
- Deixa comigo, pai. Ninguém pode com a gente.
O acampamento estava montado relativamente próximo do riacho que cortava boa parte da reserva. Não havia sinal de outras pessoas por perto, o que era de se esperar, visto que fazia parte da estratégia de competição ficar o mais afastado possível uns dos outros. Mas a ausência de outros campistas não significava que pai e filho estavam, de fato, sozinhos.
O pequeno Roberto brincava de acender e apagar a lanterna, uma vez que a luminosidade natural estava quase no fim. Estava totalmente entretido quando algo chamou sua atenção, pois, entre a meia luz do ambiente, pensou ter visto uma movimentação nas águas. Então, levantou-se e caminhou para a margem, mas não havia nada nem ninguém lá.
Satisfeito, ele se virou , mas quase foi ao chão tomado pelo susto que o acometera. Diante dele, surgida não se sabe de onde, estava uma mulher alta, magra e extremamente pálida. Alguns trapos, que pareciam constituídos por folhas secas, revestiam minimamente seus contornos. Definitivamente era uma imagem impactante e, embora ela apresentasse boas feições estéticas, seus olhos exibiam uma essência perturbadora, algo hipnótico e facilmente perceptível, mesmo com a parca luminosidade.
- Quem é você, moça?
Roberto já havia se recuperado do susto inicial e, honestamente, não parecia estar amedrontado, apenas legitimamente curioso.
- Menino, fome, tenho fome, menino. Tenho fome.
- Nós temos comida aqui, dona. Temos frutas, biscoitos, umas latas de salsicha e...
- Não, menino. Entenda, tenho fome, fome. Não posso, não posso comer amenidades. Comer, menino, preciso comer, comer.
Os cabelos alourados da mulher esvoaçavam ao sabor de um vento inexistente, uma vez que nenhuma brisa soprava na noite quente e desprovida de estrelas e da lua. Enquanto falava, a desconhecida se agitava cada vez mais, deixando transparecer uma preocupante urgência.
- Moça, o meu pai só foi pegar madeira para a fogueira, ele volta logo. Ele vai arranjar algo pra você comer. Não se preocupe.
- Não. Não. Pai não, menino. Comer. Preciso comer agora. Fome. Tenho fome agora. Agora, menino.
O receio, que até então passava longe dos pensamentos de Roberto, subitamente começou a ganhar contornos por conta da atitude da mulher. Ela balançava a cabeça de um lado para o outro e se movimentava ao seu redor. Executando um andar desengonçado, a estranha mal conseguia dobrar os joelhos, parecia tremer de modo involuntário, era como se uma mescla de perturbação e dor a acometesse. Uma agitação sem fim. No entanto, contrariando qualquer perspectiva, ela parou. De súbito, a mulher ficou imóvel e seu olhar fixou-se no garoto, e só então ficou nítida a linha vertical que fazia as vezes de íris em suas órbitas oculares.
Roberto foi tomado pelo horror, e como resposta recebeu uma deformidade em forma de sorriso, onde a junção dos lábios, de maneira bizarra, se estendia quase até as orelhas da desconhecida. A criança gritou com toda a força de seus pulmões.
- Fome, muita fome, menino.
A mulher tomou a criança nos braços e correu para o rio, jogando-se nas águas no exato instante em que o pai retornava ao acampamento a tempo de presenciar o sequestro do seu filho.
- Não! Pare! Pare!
Os apelos em desespero do homem foram em vão, a mulher desaparecia nas águas escuras do riacho levando consigo seu bem mais precioso. Para o garoto, a sensação de subidas e descidas no curso do rio intercalavam momentos de terror, num quase afogamento, ao alívio do ar puro. O caminho era percorrido com extrema velocidade, ao passo que na parte de terra firme o homem acompanhava o curso d’água correndo da melhor maneira que podia.
O riacho seguia através de uma parte coberta por uma formação rochosa, uma espécie de gruta com um suave declive no solo. O volume de água diminuía sensivelmente naquele ambiente formando um pequeno lago que se estendia por dentro da caverna.
O pai do garoto chegava ao local tendo a convicção de que era para aquele antro escuro que a maldita bruxa tinha levado seu pequeno. Então, munido apenas por uma lanterna, decidiu seguir pela reentrância na rocha.
A entrada da gruta era marcada por pedras irregulares que emergiam do espelho d’água. Os olhos luminosos do instrumento desvendavam uma cena dantesca, onde um sem número de jacarés se aglomerava em torno de uma montanha de ossos despedaçados. Os animais se refestelavam num festim, ansiavam por mais uma gota de nutrientes daqueles restos ressequidos. E, como num gesto ensaiado, os bichos viraram-se ao mesmo tempo na direção do invasor.
As feras emitiam grunhidos e permaneciam alertas, como se esperassem por um comando para atacar. O homem sentia que sua vida corria perigo, mas também tinha plena consciência de que não poderia recuar, pois seu filho estava ali, a mercê daquelas criaturas.
- Roberto! Roberto, meu filho, você está aí?
- Pai! Pai, me ajude!
Impelido pelos sofridos gritos da criança, ele seguiu pé ante pé perscrutando cada metro do terreno lodoso. A iluminação revelava a proximidade com as feras, as quais, aos olhos receosos do rapaz, pareciam muito maiores do que a anatomia usual poderia supor. Mas ele não parou para analisar o fato, o medo e a urgência não deixavam.
Após contornar as bordas do pequeno lago, ele se deparou com uma grande plataforma rochosa. Tocos de velas acesas se espalhavam aleatoriamente pelo ambiente, cuja parte central era ornada por um enorme caldeirão de barro. Para horror do homem, dentro da hedionda panela, estava seu filho. Amarrado. Indefeso. Revestido pelo medo.
- Roberto! Já estou indo...
- Cuidado, pai! Ela está atrás de você!
Antes que o rapaz pudesse se virar, um golpe potente de um cajado talhado pelas eras o jogou ao chão. Logo, filetes rubros mancharam o pavimento rochoso da gruta, atiçando os jacarés na margem do lago.
- Crianças, calma, crianças. Paciência, tenham paciência, paciência.
A mulher se dirigia aos animais, e sua fala parecia fazer sentido para eles, uma vez que tão logo a voz da velha se fez ouvir, todas as criaturas pararam de se mover. Velha. A mulher já não mais exibia os contornos joviais de antes. Seus traços agora eram marcados por sulcos tão ou mais incisivos do que as ranhuras do instrumento em sua mão.
Seu viço parecia evanescer mais e mais, a cada vez que respirava.
- Solte meu filho, bruxa maldita!
- Quieto, quieto rapaz! Carne ruim, ruim, carne ruim a sua. Não serve! Fome. Tenho fome! Comida, preciso de comida. Criança, criança, preciso de criança pra manter juventude, pra manter eternidade.
- Você não vai devorar o meu filho. Não vai!
O cajado, mais uma vez, foi ao ar para em seguida se chocar com o rosto do homem caído.
- Deixe o meu pai!
- Você, você, menino. Devorado. Você vai ser devorado. Carne, vou comer sua carne. Beber seu sangue. Mastigar seus ossos. Jovem. Jovem de novo. Vou ser jovem pra sempre, menino.
Roberto chorava em desespero. Por ele mesmo, por seu pai. Por sua mãe que estava longe. Mas seu temor ainda não havia chegado ao ápice. Ele poderia jurar que jamais teria o medo superado, e quem o visse naquele estado juraria em conjunto, mas as notas de pavor se tornaram ainda mais altas quando viu que a velha se transformava diante de seus olhos.
A pele ressequida e putrefata da mulher era rasgada por suas unhas curvas. Um novo revestimento, escamoso e brilhante, surgia em seu lugar. A mandíbula projetada se abria e da boca antes vazia e escura saltavam novas e aguçadas fileiras de dentes. O menino gritava, mas ninguém o ouvia.
A cabeça reptiliana balançava de um lado para o outro. Mechas alouradas seguiam por ela até a ponta da cauda, fornecendo um resquício humano ao corpo de fera. Indícios que agora se juntavam aos olhos, os quais, de maneira invertida, mostravam-se claramente como os de uma pessoa, com as íris arredondadas e nítidas, mas ainda assim extremamente malignos.
- Não! Não! Por favor, não. Me deixe em paz. Pai! Pai!
O pai de Roberto nada poderia fazer, pois, inconsciente, permanecia no chão.
- Menino, agora eu vou comer você, menino.
- Não! Não!
- Não? Você não quer morrer, menino, menino?
- Não, por favor. Não me coma, por favor.
- Comer, mas eu preciso comer. Crianças, eu preciso de cinco crianças, crianças. Cinco pra comer e descansar. Cinco pra manter minha forma, forma. Você traz cinco pra mim? Crianças, cinco crianças pra mim? Você traz? Eu deixo você ir. Mas, crianças, cinco crianças você tem de trazer pra mim. Pra mim. Ou vai perder sua infância. Sua infância você vai perder.
- Eu trago, eu trago pra você. Me deixe ir. Eu trago as crianças pra você.
- Feito!
A criatura agarrou Roberto e o tirou do caldeirão.
- Vá! Traga crianças. Crianças.
- Vamos, pai...
-Não! Menino vai sozinho. Sozinho.
- Preciso do meu pai e ...
- Não! Sozinho. Ou vai sozinho ou devoro você. Você.
Roberto não queria deixar seu pai, desacordado e indefeso, com aquele demônio. Mas não queria ser devorado. Ele era uma criança, pensou. Uma criança não pode lutar contra uma fera, tentou convencer a si mesmo.
Chorando, correu para fora da gruta. Olhou para trás e viu a mulher em forma de jacaré chutar o corpo inerte do seu pai para os animais famintos que rodeavam a margem. Logo um turbilhão se formou ao redor do corpo, os bichos o devoravam vivo.
- Ruim. Carne ruim só serve pra animais, não pra mim. Crianças. Preciso de crianças – repetia a criatura para si mesma enquanto assistia ao espetáculo sangrento.
Roberto correu para longe dali. O dia estava quase amanhecendo. Ele gritava e pedia ajuda. Chegou até a estrada e se deparou com uma família de campistas. O desconhecido lhe perguntava o que tinha acontecido e, tomado pelo medo e pela certeza de descrença, apenas informou que seu pai havia sido atacado por jacarés.
Já dentro do carro do seu salvador, ele olhou pela janela. A luz do dia já banhava a margem do riacho. Ele olhou para o cenário de horror e conseguiu descrever, parcialmente ocultada pela vegetação, a silhueta do demônio reptiliano. A fera olhava diretamente para ele e, com a mão humanamente espalmada, balançava os cinco dedos. Um dissimulado sorriso de setas afiadas lhe foi oferecido. Aquela era uma cena que jamais viria a esquecer.
O garoto não voltou para cumprir o acordo. Não levou nenhuma criança para a bruxa. E jamais pisaria novamente nos arredores daquele lugar maldito, ou assim pensava.
III)
Definitivamente, Roberto não conseguiria dormir. Por mais que tentasse, não seria tocado pelo deus do sono, não daquele jeito, com a mente enevoada. Ele tentava se convencer de que aquele monstro não poderia lhe fazer mal, não mais, afinal já crescera, já não era mais uma criança. Sua infância já se fora, não poderia ser interrompida pelo apetite insano da besta.
Seus olhos pesavam, um torpor inebriante começava a lhe abraçar, a névoa em sua mente ameaçava se dissipar quando o som familiar de uma voz sibilante e repetitiva rasgou seus pensamentos de forma abrupta: “Sua infância você vai perder”.
No princípio ele achou que seria impossível ser agarrado pelas ameaças da bruxa, mas como num estalo, percebeu que a sua infância não era a vida que deixara ao crescer, naquele momento sua infância era Davi, seu filho, uma continuação dele próprio, alguém que poderia sim ser tocado pelas mãos frias e escamosas daquela mulher.
Colocando-se de pé, ele sentiu um aperto tão grande no coração, um sentimento mais intenso do que o experimentado quando viu as criaturas famintas devorarem seu pai. Algo que queimava muito mais do que a experiência de quase ter servido de refeição para o demônio em forma de réptil.
Como se a razão o tivesse esbofeteado, ele percebeu que era um adulto, o pai de uma criança que estava a caminho dos domínios de uma fera secular. Seria preciso encontrar a coragem, uma virtude que o medo insano havia retirado de sua vida. Com a urgência a lhe guiar, perscrutou a garagem, revirou prateleiras e caixas, sem critério ou preocupação. Abriu um sorriso quando encontrou o que buscava: um arpão. O resquício de uma tentativa mal fadada de encontrar um hobby, mas que naquele momento seria a única arma que poderia dispor, e haveria de servir.
Ele pisava no acelerador na esperança de que o motor maltratado do veículo aguentasse. Seriam duas horas de viagem, se tudo desse certo chegaria com o sol se pondo, justamente a hora da fera. Roberto nunca fora uma pessoa de fé, era difícil ser quando se fica cara a cara com o demônio, mas naquele momento clamava aos céus para que André, o infeliz que dormia com a mulher que ele ainda amava, fosse tocado por uma luz superior e levasse seu filho para o mais longe possível daquela gruta.
O céu já ganhava os característicos tons de lilás e violeta quando encostou o carro na parte mais remota do parque. Ele tentou, em vão, contato através do telefone celular, no fundo já sabia que seria uma atitude ineficiente.
Resignado, jogou a alça do arpão no ombro, deslizou o polegar nas ranhuras da lanterna e jogou o facho de luz para a mata. Roberto não precisava de mapa, posicionamento por satélite ou qualquer outro artifício para encontrar a localização do lugar responsável por tanto horror em sua vida. Até mesmo a lanterna era um item desnecessário, pois até de olhos vendados conseguiria seguir o riacho até a deformação rochosa, aquela boca escancarada na parede montanhosa.
Quando chegou à entrada da gruta, ele percebeu que os jacarés não guardavam o local. Cada séquito daquele exército dos infernos estava recolhido. O rapaz conseguia enxergá-los ao longe, o brilho refletivo de seus olhos escapulindo do espelho d’água denunciava sua presença maligna. Mas eles não iriam atacar, por um motivo que Roberto logo descobriria.
Ele entrou e seguiu o caminho das chamas bruxuleantes das velas, da mesma forma que seu pai fizera anos antes. E, igualmente chegou até o caldeirão, o mesmo recipiente de dor no qual vivenciara momentos de horror e onde uma criança estava postada. O garoto estava desacordado, um líquido vermelho e pegajoso escorria de sua cabeça.
- Davi! Davi!
O homem gritava em franca agonia, mas nenhuma resposta veio ao seu encontro, pelo menos nada que pudesse confortar seu coração, muito pelo contrário.
- Menino, menino, você voltou menino. Fome. Ainda tenho fome, menino. Trouxe minhas crianças, trouxe?
A mulher, transmutada em sua forma de fera, parecia mais horrenda do que a memória de Roberto se recordava. Os pelos alourados se mostravam maiores e mais eriçados, ao passo que os dentes afiados haviam duplicado em tamanho e número. O mal em seus olhos saltava pelas órbitas, era quase palpável. Aquilo em seus dedos não eram garras, não, eram ganchos retorcidos e negros, num contraste ao verde reluzente de suas escamas. O monstro estava renovado. De certo havia se alimentado bem nos últimos anos. Pobres crianças.
- Não sua bruxa dos infernos. Não trouxe ninguém pra você. Hoje seu apetite terá fim, bem como sua existência. E isso trará a paz de espírito que preciso para seguir com a minha vida, maldita! Solte meu filho!
Solte-o!
- Menino, menino. Você o quer? Venha buscá-lo, venha!
Roberto correu rumo ao seu destino. Não havia mais medo em seu coração, apenas a sanha de querer se livrar de uma vez por todas de todos os fantasmas que torturavam sua mente.
A bruxa demorou a entender a súbita mudança na atitude do rapaz, mas, ao fazê-lo, correu ao seu encontro. Roberto agarrou com as duas mãos a empunhadura do lançador de arpões e bateu com toda a força que só a raiva era capaz de impulsionar na cabeça da criatura. A fera urrou ao sentir uma dor lancinante percorrer seu corpo, algo com a qual não estava acostumada.
O rapaz aproveitou-se do momento de vantagem para continuar com as investidas cada vez mais contundentes. A força com a qual empreendia seus golpes era tamanha ao ponto de derrubar a bruxa. Com um chute, ele virou o caldeirão, numa tentativa de despertar o garoto. No entanto, ao tirar os olhos do demônio, fora surpreendido por um golpe rasteiro por parte da cauda da oponente, caindo de costas nas pedras irregulares.
Não teve tempo para se lamentar pela dor do impacto, pois outra investida ainda mais incisiva o fez gritar de dor e de raiva. Como um serrote duplo, a bocarra do demônio partiu seu braço esquerdo. E, com o membro decepado preso entre os dentes, a mulher-fera falou:
- Ruim. Carne ruim, não serve de alimento. Comer. Mas vou comer assim mesmo. Prazer. Vou sentir prazer em comer sua carne ruim, menino. Menino.
A besta jogou o braço para o alto e o abocanhou no ar, mastigando os ossos com vontade, emitindo um ruído perturbador com o ato.
Com o sangue jorrando farto do ferimento, Roberto só pensava em salvar seu filho. Assim, olhou para o lado e percebeu que o garoto havia se levantado. Ainda tonto por conta de tudo o que vivenciara até ali, ele olhou para o homem caído e perguntou:
- Quem é você, moço? Onde está meu pai? Você veio me salvar?
Uma confusão de sentimentos era formada no peito do rapaz. Afinal, não era o seu filho ali nas garras da bruxa. Ele não conseguia distinguir se aquilo significava alívio ou desespero, e a fera sabia disso e começou a gargalhar.
- Não é sua infância, menino, menino. Não é. A salvo. Será que ele está a salvo ou será que o devorei? Devorei? Será que o devorei?
Suas gargalhadas e urros se uniam numa mescla que ribombava pelas paredes da gruta. Roberto sabia que pouco poderia fazer, as palavras da bruxa torturavam sua alma. Ele não sabia o que tinha acontecido com seu amado Davi. Também não sabia se sobreviveria, fosse do ferimento ou da dor de uma nova perda, mas sabia que poderia salvar aquela criança diante dele. Poderia tentar se redimir de toda a inoperância de até então. De ter falhado com seu pai. De ter deixado seu filho seguir para um lugar perigoso sem sua proteção. Não. Aquela criança a bruxa não iria levar. Não mesmo.
Reunindo toda a força que ainda era capaz, deslocou a trava de segurança do objeto em seu poder, e, com a eficiência de um só braço fez mira na direção da criatura e disparou.
- Corra garoto! Corra!
A flecha aguçada acertou em cheio o pescoço da fera. Um grito de dor, o mais alto que ela jamais produzira, se fez ouvir. A manifestação foi algo tão assustador que despertou a pressa no garoto prisioneiro, que correu para fora da gruta, mas fez surgir também o auxílio à senhora daquele lugar. Atraídos pelo cheiro do sangue, os jacarés, em rápidos movimentos, venceram a distância até o pequeno lago e puxaram Roberto para dentro d’água.
E foi através dos giros, das mordidas, da busca pelo ar e de uma indescritível dor que Roberto, o menino, o homem, encontrou sua redenção. Mesmo que derrotado, dessa vez ele havia enfrentado o medo e podia finalmente ficar em paz, mesmo que fosse diante da morte.
IV)
Longe dali, mais de um mês após o ocorrido, o pequeno Davi dormia a salvo e totalmente alheio aos eventos que se deram tão perto de onde estava. Ele havia se conformado e não sentiria mais a falta do pai, afinal, aquele homem que sua mãe vivia xingando já não o procurava mais, nem ligava, não fazia absolutamente nada por ele. Em contrapartida, André, a quem sua mãe era só elogios, estava sempre por perto. Fazia de tudo para alegrá-lo. Fora com ele até o acampamento, e, juntos, ganharam o troféu de primeiro lugar na gincana. O melhor dia de sua vida. Não. Não iria mais se preocupar com aquele sujeito. André era seu novo pai. E tudo seria melhor dali em diante.
Mas, seu sono infantil estava prestes a ser perturbado por uma presença que subia lentamente pelas paredes até o segundo andar do sobrado, onde ficava seu quarto. A criatura pegajosa se esgueirava pelo aposento, trazendo nos braços um arpão manchado de sangue ressequido. Ela desejava que a gincana tivesse ocorrido perto de sua gruta, como imaginara a aflição de Roberto, e não a quilômetros de distância. Isso teria poupado tempo e esforço.
- Menino, menino, tenho fome. Fome. Cinco. Traga cinco crianças pra mim, menino, ou te devoro. Devoro.
Sua boca se abria de uma maneira ilógica, escancarando um vão enegrecido e fétido. Gotas de uma gosma esverdeada maculava a maciez alva dos lençóis. De súbito, Davi acordou e a visão monstruosa o fez gritar. E, com o som de seu próprio grito, despertou do pesadelo. Seu peito subia e descia de modo acelerado. Filetes de suor escorriam de suas têmporas e a vergonha o dominou ao perceber sua cama molhada. Ele procurava pela criatura nefasta que o ameaçava, mas não havia ninguém com ele no quarto. Então, reconfortado, tentou se recompor, sabendo que sua querida mãe, bem como seu novo pai, o protegeriam para sempre.
Amparado pelos bons pensamentos, pegou o copo d’água na cabeceira da cama e tomou um gole sentindo a brisa fresca da madrugada em seu rosto. No entanto, se lembrou de que não havia deixado a janela aberta e foi até ela com a intenção de fechá-la. Mas, ao olhar para o jardim, percebeu oculta entre os arbustos, uma figura que havia visto há pouco.
Com um sorriso medonho a criatura olhava diretamente para ele, oferecendo um aceno com a mão aberta, na qual os cinco dedos ornados por garras negras lhe diziam de forma velada o que deveria fazer.